PHILLIPE LACADÉE
PHILLIPE LACADÉE
Ana Lydia Santiago: Jacques-Alain Miller, em seu texto “Em direção à adolescência”, apresenta a sua análise da demanda incondicional de respeito dos adolescentes: “Eu quero ser respeitado”. Segundo sua tese, o que especifica essa demanda é o fato de não ser articulada ao Outro. Ninguém sabe quem pode satisfazer essa carência, enquanto a questão do Outro permanece obscura. Na sua opinião, a que responde o vazio dessa demanda que o adolescente endereça ao Outro?
Philippe Lacadée: Analisei a demanda de respeito a partir de um momento preciso, na França: um movimento de estudantes de segundo grau em que adolescentes – eram moças – pediam respeito. Fiz disso um dos nomes do sintoma da adolescência tanto mais porque, naquele momento, eu estava especialmente interessado nos movimentos rap e hip hop e percebi que muitos desses adolescentes se mostravam desrespeitosos. E, na falta de respeito deles, o que queriam era receber respeito do outro. A palavra respeito vem do latim respectus, que significa nos voltarmos para olhar o outro. É como se, através de seus movimentos ou comportamentos desrespeitosos e provocativos, os jovens nos demandassem olhar para eles e distinguir o elemento de novidade que carregam em si. Essa é a tese de Hannah Arendt, em A crise na educação: cada criança ou cada adolescente carrega em si um elemento de novidade e deseja que o outro que cuida dele – seja o adulto parental ou o outro do mundo da educação – distinga, nele, seu lado particular, sintomático. Por isso mesmo a demanda de respeito é uma demanda invertida, já que normalmente aquele que tem direito ao respeito é, de preferência, o adulto ou o pai. Entretanto, como há uma carência da função paterna, ou uma carência do simbólico, os adolescentes não encontram outra solução para o que vivem em seus pensamentos ou em seus corpos senão colocar suas sensações em evidência para que se destaque o que eles são. Isso é muito importante porque não tem nada a ver com o respeito, tal como Kant o compreendia. Para esse filósofo, o respeito era um tipo de reciprocidade imaginária: “eu te respeito porque você me respeita”. Os adolescentes de hoje, muitos deles, se referem preferencialmente ao lado desrespeitoso, tal como bem mostrou um outro filósofo, Blaise Pascal: “eles pedem respeito para que possamos lhes distinguir”.
Ludmilla Feres: No início de nossa conversa, você citou o caso de um jovem que matou o próprio pai para ficar livre das exigências dele de participar do tráfico de drogas. Observou que o ato desse esse jovem foi uma tentativa de se separar de seu pai. Podemos ler, nesse caso, uma demanda de respeito do rapaz?
P.L.: Sim, claro! Podemos responder a essa questão retomando dois momentos precisos em que Lacan tratou a questão do respeito. Em “De uma questão preliminar…”, diz que o pai tem direito ao respeito em função do caso que faz a mãe de sua palavra. É como se, de fato, fosse muito importante para as crianças respeitar o pai porque a mãe dá crédito à palavra dele. E, ao final de seu ensino, Lacan diz que o pai só tem direito ao respeito se fizer de uma mulher o objeto causa de desejo. E, mais ainda, que o pai deve ter um cuidado paterno por seus filhos, o que poucos pais fazem. No caso desse jovem que matou o seu pai, do qual falei, o pai o utilizava apenas como um objeto de gozo, para obter dinheiro para o tráfico de drogas. Ele o desrespeitava como filho, de modo que o filho não podia mais respeitar seu pai. Esse é o problema da civilização moderna. Hoje, na França, temos problemas com as civilizações que vêm do Magreb, da África do Norte, onde a questão do respeito é muito importante. Nas famílias tradicionais de origem árabe, o pai é extremamente respeitado, o que faz com que o respeito esteja bem colocado. Tem-se, nesse caso, uma demanda invertida: a criança demanda respeito para ser considerada uma criança.
A.L.S.: Na adolescência, observa-se uma modificação sintomática na relação dos jovens com o saber. O próprio Freud a notou, em sua época. No entanto, isso toma uma nova configuração após a era digital, após a incidência do mundo virtual. Você poderia comentar essa modificação no saber a partir de sua experiência de Conversação em escolas?
P.L.: Uma professora escreveu um livro que se chama Presente[1], que mostra muito bem que os professores devem estar presentes na escola ou ter habilidade nas respostas para efetivamente conseguir transmitir um saber. O professor deveria ser capaz de transmitir sua disciplina da melhor maneira, encarnando-a, demonstrando como ele sabe saber-fazer com isso, pois se há algo que mudou em nossa civilização é o fato de certas crianças e adolescentes estarem diretamente conectados ao mundo virtual, através do Google, e, assim, podem ter acesso a conhecimentos que, no meu modo de ver, não são obrigatoriamente um saber. Para que o saber possa existir para os jovens, é preciso ser transmitido por um adulto. É o que se espera dos professores e, mesmo, de um pai ou de alguém que cuida de uma criança. Ou seja, não se trata de receber um saber desencarnado, que se arquive em meio a uma série de conhecimentos. Para que um saber possa ser transmitido, o adulto, o professor, deve conseguir demonstrar como o saber transformou sua própria existência. Essa é a verdadeira função da transmissão. Os alunos são muito sensíveis a duas dimensões essenciais nos professores – o olhar e a voz –. No entanto, é na maneira pela qual o professor dá vida à transmissão que o que ele ensina pode se elevar à dignidade de um saber.
Virginia Carvalho: Freud indica a “construção” como uma estratégia para lidarmos com o que a palavra é incapaz de dizer. A propósito, ele evoca o trabalho do arqueólogo, que precisa reconstruir culturas e sociedades antigas unindo os vestígios materiais que encontra. Ou seja, diante de peças soltas, inventa uma coerência para que constituam um todo. No CIEN Minas estamos trabalhando esse tema das “construções adolescentes”. Você poderia nos dizer algo sobre as construções contemporâneas que tem acompanhado no CIEN na França?
P.L.: Sim, há uma frase de Freud, em O nascimento da psicanálise, que permite esclarecer essa questão: ele diz que todo excesso de sensação impede a tradução em imagem verbal. Todo excesso de sensação inédita, de gozo que muitos adolescentes vivem, os impede de traduzir, de construir com palavras – pois o que Freud chama de imagens verbais são os significantes –, os impede de construir algo na língua do senso comum – língua dos adultos –, que eles rejeitam. No fundo, esse é o problema dos adolescentes: eles querem se fazer escutar em suas construções, que são feitas seja a partir do que resta da sua infância, seja a partir do que eles vivem. E é por isso que se veem surgir, no momento da adolescência, muitas construções – como eu mesmo vi, nos laboratórios do CIEN, no início, quando me interessei pelos textos dos cantores de rap e do hip hop – que retomam o resto das civilizações de seus pais. Como a teoria dos Griottes[1], tradição rejeitada pela geração que se mudou para a França para viver em uma civilização onde não se podia mais viver como vivia nos campos: os jovens dessa geração tiveram a ideia de utilizar esse resto de civilização para elevá-lo à uma dignidade da modernidade, introduzir isso em uma música e retomar os movimentos corporais, que são muito mais livres na África do Norte. Vê-se muito bem como, com isso, conseguiram construir um tipo novo de linguagem, muito ligada ao corpo e ao manejo do gozo. É preciso notar que tudo isso poderia muito bem ser tomado como algo do senso comum, da língua clássica, que os adolescentes rejeitam. Por isso, é preciso dizer sim aos que apresentam como construção, para não deixá-los isolados, sozinhos. Por isso me interessei pelo texto de suas músicas, para demonstrar que, nesses textos, os adolescentes retomavam questões fundamentais.
A.L.S.: Você está em Belo Horizonte a convite do 1º Colóquio Internacional OCA, promovido pela UFMG e pelo IPSM-MG, cuja proposta foi a de discutir o tema Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas. A seu ver, qual foi o ponto mais candente desse debate? Você acredita que o tema da sexuação é apropriado para uma abordagem nos laboratórios do CIEN?
P.L.: Assisti a um colóquio formidável! E devo confessar que a discussão dos casos clínicos, no primeiro dia, me deixou preocupado e um tanto angustiado com a constatação de que, hoje, não precisamos mais ficar aprisionados no nosso próprio corpo, podemos trocar de sexo, trocar de gênero. De fato, é inquietante ver como uma criança pode querer modificar seu sexo, desde muito cedo. A pergunta que devemos nos fazer: como acompanhar esses casos? Deixamos as crianças, os adolescentes, e, mesmo, alguns pais responderem tão prontamente a essas modificações corporais e de sexo? Por isso acho muito importante poder trabalhar essas questões nos laboratórios do CIEN e nos núcleos do IPSM-MG, pois talvez seja preciso se dar conta de que, nessas demandas, pode haver sujeitos que sofrem de uma experiência de vida que designamos psicose, em que, em nome de uma certeza, pode-se acreditar que a simples mudança de sexo resolveria todos os problemas. Por esse motivo, considero também importante, como foi feito no Colóquio, voltar a Freud, retomar seu texto As metamorfoses da puberdade, em que se encontra uma diferenciação precisa entre sexo e sexualidade. Para Freud, a sexualidade não se reduz ao sexo. Há uma sexualidade que pode passar por objetos pulsionais, como o olhar e o objeto voz, que faz com que sensações de gozo se articulem a esses objetos pulsionais e não obrigatoriamente passem pelo órgão sexual. É importante também diferenciar as respostas, como faz Lacan em sua releitura de Freud, ao destacar que, mesmo para uma criança que se situa na lógica fálica, no momento em que ela se depara com a questão do seu sexo – como ocorreu com o pequeno Hans –, ela pode viver a ereção de seu pênis como um gozo estrangeiro, que chegaria até mesmo a persegui-lo. E sob o pretexto se livrar-se desse elemento estrangeiro que vive em seu corpo, pode acreditar que a supressão de seu pênis resolveria a questão. Não sou especialista, mas recomendo a leitura dos textos apresentados no Colóquio OCA e também da coletânea organizada por Fabian Fajwacks: Subversão lacaniana das teorias do gênero, em que se encontram oito textos sobre essa questão. E como bem disse François Ansermet durante o X Congresso da AMP, no Rio (abril/16), entraremos em uma época em que a criança poderá exigir o direito de não mais se enclausurar no corpo que recebeu como menino ou menina, e corremos o risco de chegarmos muito longe com essa questão. E é isso que me inquieta.
L.F.: O encontro da criança e do adolescente com um gozo estrangeiro, estranho, é retomado por você em vários momentos dessa nossa conversa, até a propósito do jovem magrebino, na França. Qual a abordagem da psicanalise para isso, que é da ordem do estrangeiro?
P.L.: No fundo, a psicanálise é uma experiência de palavra, que ajuda o sujeito a traduzir o que ele experimenta como estrangeiro, em seu interior, ou fora dele, mesmo sem conhecer a significação do fato. O que não quer dizer que o analista dará a sua própria significação. O analista pode permitir o sujeito traduzir melhor o que ele vive em seu corpo. Entretanto, sempre haverá um resto, uma opacidade sobre as questões do sexo, do corpo, porque a vida é assim, não se pode traduzir tudo para a linguagem.
A.L.S.: Em Bordeaux conversamos sobre a ampla literatura publicada atualmente sobre o Estado islâmico, e você mencionou seu trabalho com profissionais que estiveram em contato com jovens franceses envolvidos com a causa ideal do E. I., também designada A armadilha Daech, para utilizar o título do livro recente de Pierre-Jean Luizard[2]. Você poderia falar para o Almanaque sobre sua experiência?
P.L.: Sim. Nos bairros da periferia de Paris fui contatado pela responsável do “conselho tutelar” da infância, que conhecia os trabalhos que realizei em uma escola de Bobigny. Juntamente com uma juíza da infância de um tribunal, também de Bobigny, propuseram-me supervisionar um grupo de psicólogos cuja intervenção consistia em escutar jovens franceses que estavam se radicalizando e partindo para a Síria. Ela me falou de um grupo de 35 jovens parisienses que teriam partido e não retornaram: foram assassinados na Síria. Na França, atualmente, há algo muito preocupante que corresponde à crise da adolescência. De minha parte, prefiro falar da crise da língua articulada ao Outro, pois o Estado islâmico, Daesh, compreendeu que era preciso oferecer ao jovem um discurso que eles pudessem articular. É muito simples o que propõem. Dizem-lhes, por exemplo: “Desconfie de seus pais, eles não te dizem a verdade”. Assim, propõem uma certa verdade. Efetivamente, na adolescência, o jovem deve se desembaraçar da autoridade dos pais, dos semblantes, e o Estado islâmico chega dizendo-lhes: “Nós lhes propomos a verdade”. Por outro lado, fazem saber que, uma vez criado o Estado islâmico, haverá um caos – que corresponde à pulsão de morte –, e é a partir desse caos que poderá surgir o profeta – o Midas –. “E, se você se juntar a nós, poderá, você mesmo, se tornar esse profeta”. Os jovens tem então a impressão de que, se deixarem o discurso dos semblantes dos pais, porque eles não dizem a verdade – é a teoria do complô, muito presente na França atualmente, há um complô organizado –, e se largarem tudo isso pelo discurso jihadista, encontrarão a verdade e poderão encarnar esse profeta que surgirá. É por isso que funciona! Quando éramos adolescentes, o importante era ir para Índia, ou para Catmandu. Era a época dos hippies. Pensávamos que a verdadeira vida estaria lá, onde, então, estaríamos diretamente conectados… com…
GIULIA PUNTEL