CIRILO AUGUSTO VARGAS
Defensor público, mestre em Direito pela UFMG
e aluno do Curso de Psicanálise do IPSM-MG.
cirilo.vargas@gmail.com
Resumo: A partir do clássico Ana Karenina, romance atemporal publicado por Liev Tolstói em 1877, o artigo aborda o tema da pulsão de morte em seu entrelaçamento com o gozo mortífero e o suicídio. Freud, ele próprio um mestre das letras, já apontava a utilidade de investigar personagens inventados por grandes escritores, dada a abundância do seu conhecimento da alma. A experiência destrutiva de uma melancólica capturada pelo espiral trágico da repetição assume relevância atual em um cenário político-social de conflagração e ódio. Ana Karenina convida à reflexão, ilustrando como a morte é companheira inseparável do amor.
Palavras chaves: literatura; pulsão de morte; gozo; melancolia; suicídio
THE TWO DEATH OF ANA KARENINA
Abstract: Based on the classic Ana Karenina, a timeless novel published by Leo Tolstoy in 1877, the article approaches the theme of the death drive, in its intertwining with the deadly jouissance and suicide. Freud, himself a master of letters, already pointed out the usefulness of investigating characters invented by great writers, given the abundance of his knowledge of the soul. The destructive experience of a melancholic woman, captured by the tragic spiral of repetition, assumes current relevance in a political-social scenario of conflagration and hatred. Ana Karenina invites to reflection, illustrating how death is an inseparable companion of love.
Keywords: literature; death drive; jouissance; melancholy; suicide.
Para Cristina Drummond
Ana Arkadievna Karenina, imortalizada nas palavras de Liev Tolstói, não abriu mão de seu desejo e, assim como Antígona, pagou um preço elevado: morreu duas vezes. A primeira, ao abandonar seu marido e filho para se entregar a uma aventura amorosa. A segunda morte aconteceu anos mais tarde, quando Ana se jogou sobre os trilhos em uma estação de Moscou. De um lado, o perecimento social, que assumiu ares de morte civil. Do outro, a efetiva destruição corpórea. Na tragédia russa, o objeto de amor é o conde Alexei Vronski, jovem oficial da cavalaria, em relação a quem Ana desenvolve, no decorrer da narrativa, os mais ambivalentes sentimentos: paixão irrefletida, culpa, ciúme e ódio delirantes que culminam no desejo de vingança.
Não é aleatório o recurso a um ícone da literatura para tratar do tema da tragédia em torno da satisfação do gozo mortífero. A alta sociedade russa pré-revolução, de certo modo como a brasileira contemporânea, prescrevia um sistema rígido de normas morais inerentes aos arranjos familiares tidos como convenientes. E a personagem central, manancial de ambiguidades e contradições, não encontrou conforto ou segurança, seja adequando-se às leis sociais, seja obedecendo aos seus desejos.
Ana Karenina é uma subversiva que, regida pela pulsão de morte, transcende a ficção. E sua vida e mortes interessam à psicanálise. Afinal de contas, qual é a leitura possível do mal-estar e da desintegração psíquica experimentada pela personagem de Tolstói? O que a levou ao cometimento do que consideramos duplo suicídio? Como a realização de um desejo de amor transformou-se em ato de vingança? Vingança contra quem? E por quê? Tentaremos apontar respostas ao longo deste trabalho.
A aristocrata transgressora
Ana Karenina pertencia à alta sociedade de São Petersburgo, âmbito restrito de relações sociais estabelecidas entre funcionários públicos, intelectuais e aristocratas propriamente ditos, a “sociedade dos bailes, dos banquetes e dos vestidos elegantes”. Enquanto pôde, transitou com naturalidade nesse universo, fazendo bom uso do que Freud chamou de “autossuficiência” da mulher bela (FREUD, 1914, p. 34). A beleza era apenas um de seus atributos narcísicos: o que causava fascínio era a combinação de graça, inteligência e desenvoltura. Sua personalidade misteriosa dava-lhe um ar quase inacessível às outras mulheres. Quando entrava em um salão, “o que vestia passava despercebido”. Ana era uma sedutora. Que tirava proveito dessa condição.
Revelava-se no seu íntimo, todavia, profunda insatisfação com a realidade. Além de considerar falsos aqueles à sua volta, mantinha um relacionamento frio, protocolar com o marido, fruto de um casamento de conveniência. E pelo filho nutria sentimento ambíguo: o prazer “quase físico ao senti-lo junto de si” não inibia o mesmo descontentamento que experimentava quando estava ao lado do marido.
Nesse contexto de frustração generalizada, Ana conheceu o militar Alexei Vronski, a quem seduziu e por quem se deixou seduzir publicamente, antecipando o escândalo iminente. O amor clandestino, levado às vias de fato, sedimentou o gozo da transgressão, sempre perpassado por culpa, vergonha e alegria. Em sonho, Ana fantasiava Karenin e Vronski como seus maridos a lhe acariciar, num estado de júbilo. Despertava esmagada pela angústia, no encontro com o real. Convicta da sinceridade de Vronski, Ana optou pela ruptura, ciente de que abandonar o marido, escravo da opinião pública, implicaria perder tudo: a honra e o contato com o filho. Colocou-se, como disse Lacan, “à prova de um destino sem rosto, como um risco do qual o sujeito, tendo-se safado, encontra-se depois como que garantido em sua potência” (LACAN, 1959-1960, p. 234). Paradoxalmente, o ato de coragem marcou a mudança do seu comportamento em relação ao amante. Antes terna e servil, passou a dar sinais de ciúme e beligerância. Compreendeu que pagaria sozinha, como criminosa, o preço da aventura. Começou então a sonhar com a própria morte, certa da sua proximidade.
Durante o autoexílio do casal na Itália, Ana experimentou uma ilusão fugaz de felicidade, facilitada pela busca inútil de Vronski pela satisfação dos seus desejos. O tédio logo os reconduziu à Rússia e Ana Karenina tornou-se ainda mais “fria, irritável e hermética”. Injustificadamente, colocou em xeque o amor que recebia e passou a interpretar os menores atos para confirmar a suposição.
A parte final da obra descreve Ana em Moscou completamente absorvida pelo delírio de abandono. Refratária a qualquer ponderação do amante, acirrou a postura persecutória, alheia à realidade. Essa compulsão fez com que as tentativas de pacificação gerassem efeito oposto. Fez também com que sua morte se revelasse como única alternativa para se vingar de Vronski e, simultaneamente, obter seu amor. Por derradeiro, quando ele vai à casa da mãe para cumprir uma formalidade, ela, certa de que Vronski teria ido ao encontro de outra mulher, perde o controle dos seus atos e dirige-se às cegas para a estação, “esquecida por completo aonde ia e porque razão”. Antes de se atirar sobre o trilho, pensou: “Castigá-lo-ei e livrar-me-ei de tudo e de mim mesma”.
O gozo do horror
Ana Karenina é introduzida no romance como Eros e Tânatos fundidos em uma só pessoa. Ao mesmo tempo em que se apresenta em seu esplendor de mulher autossuficiente, agregadora, dela emerge forte estímulo destrutivo, provisoriamente recalcado. Nos capítulos iniciais, ao desembarcar na estação de trem de Moscou, para onde fora com o intuito de pacificar a relação conjugal do irmão, Ana se defrontou com a cena de um homem morto após cair nos trilhos. Sob forte emoção, afirmou: “É mau presságio”. Pouco tempo depois, usou seus encantos para arruinar, com indisfarçável satisfação, o noivado de Vronski. Aparentemente Tolstói construiu sua personagem mais célebre a partir da ambivalência amor-ódio que ele próprio experimentou a certa altura da vida. Em Uma confissão, autobiografia escrita após finalizar Ana Karenina, ele comenta:
“A força que me atraía para longe da vida era mais poderosa, mais completa do que uma vontade comum. Era uma força parecida com a antiga aspiração de vida, só que voltada no sentido contrário. (…) A ideia de suicídio me veio de maneira tão natural quanto, antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida” (TOLSTÓI, 2017, p. 36).
Tenha ou não caráter autobiográfico, o romance retrata situações vivenciadas pela protagonista que permitem a articulação de dois temas: a pulsão de morte e o gozo da transgressão. Sobre a primeira, Freud apontou, em Além do princípio do prazer, um elemento nuclear das pulsões, definido como compulsão à repetição, recurso psíquico originário e elementar que “revelaria a eficácia de uma pulsão de morte, cujo livre curso em direção ao seu alvo encontra a barreira das pulsões sexuais e das pulsões do ego, reunidas e rebatizadas de pulsões de vida” (SANTOS, 1991). Associada à ideia de destruição/agressão, a pulsão de morte freudiana constitui mecanismo biológico original (e necessário) do ser vivo — alheio à dicotomia prazer/desprazer — destinado a assegurar um regresso ao estado inanimado. “A meta de toda vida é a morte” (FREUD, 1920, p. 137). É o que se constata, por exemplo, no masoquismo, constituído pela reversão da pulsão sádica contra o próprio eu, admitindo-se o sadismo como perversão precedente (FREUD, 1914, p. 65).
A trajetória de Ana Karenina é definida por um gozo mortífero, fruto da reiteração de atos e pensamentos de autoagressão, sobre os quais ela não exerce controle e que tão somente fazem recrudescer seu sofrimento: autocolocação em situações de expiação pública e de humilhação perante o marido, atitudes persecutórias direcionadas ao amante e sonhos traumáticos. E é justamente desse movimento repetitivo que ela retirava sua satisfação paradoxal, eis que sempre permaneceu latente o “sincero desejo de sofrer”. Só a iminência do desastre lhe apaziguava.
A literatura está a ilustrar um caso específico em que a compulsão à repetição desempenha papel dominante no processo de destruição pessoal[1]. Seria possível, então, inferir que a pulsão gregário-conservativa (de vida) constitui elemento acidental da pulsão por excelência, que é a pulsão de morte? Lacan, no Seminário 11, sustenta a distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte, porém, não como espécies diversas do gênero pulsão, nos moldes do dualismo proposto por Freud, mas como dois aspectos desta konstante Kraft cujo destino é contornar o objeto a. Isso, ele pondera, desde que se possa
“(…) conceber que todas as pulsões sexuais se articulam no nível das significações no inconsciente, na medida em que, o que elas fazem surgir, é a morte — a morte como significante, e, nada mais que como significante, pois será que se pode dizer que há um ser-para-a-morte? Em que condições, em que determinismo, a morte, significante, pode ela brotar toda armada na cura? É o que só pode ser compreendido por nossa maneira de articular as relações” (LACAN, 1964, p. 249).
Éric Guillot propõe que em “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” há um “novo giro” na abordagem da pulsão. Quando Lacan recorre ao simbólico, “é a dimensão significante da pulsão de morte que se adianta, e quando recorre ao registro do real para dar conta da libido freudiana, é o gozo que é considerado como indo no sentido da morte” (GUILLOT, 2014). “Gozo” torna-se nome lacaniano da pulsão de morte freudiana.
Lembra-se, a partir das lições de Miller (2012), que, no Seminário 7, diferentemente do que foi elaborado no seminário sobre “Os quatro conceitos…”, “temos o gozo conectado ao horror e é preciso passar pelo sadismo para compreender alguma coisa disso”. Verifica-se nessa fase do ensino lacaniano que, “Quando se está no lugar do gozo, algo da ordem de uma terrível fragmentação corporal se produz — e não basta, a Lacan, somente uma morte para dar conta disso: ele acrescenta uma segunda morte” (MILLER, 2012). Alude-se à tragédia de Antígona, que guarda semelhança com a de Ana Karenina. Em ambas, cai o semblante de bondade característico das personagens, emergindo a crueldade. Isso em paralelo com a total indiferença ante as “leis da cidade” e o destino sacrificial reservado aos criminosos.
É justamente pelo paradigma do gozo como “transgressão heroica”, estabelecido em “A ética da psicanálise”, que trabalhamos o percurso da personagem de Tolstói. Ana Karenina não se identifica com o círculo aristocrático ao qual pertence. Enxerga-se acima dos protocolos de falsidade que lhe envolvem. Reivindica o reconhecimento do Outro (opondo-lhe violência) pelo exercício de autonomia para, na condição de mulher casada, vincular-se a um homem pela via do amor. Então, despida do sentimento de igualdade ou altruísmo, goza tripudiando da moralidade hipócrita imposta pela alta sociedade. Não se opera na sua consciência o que Lacan denominou “lei de igualdade”, freio para submissão à vontade geral (inibindo o ato transgressor). Ao contrário. Seu prazer advém da agressividade incontrolável, cuja consequência é a solidão e a destruição pessoal. O processo da perversão se consolida com a passagem do sadismo ao masoquismo, retornando o ódio ao ponto de origem.
Da substituição da realidade ao suicídio
A ideia de suicídio tornou-se consciente para Ana Karenina quando a dúvida sobre o afeto de Vronski se fez acompanhar da fantasia de abandono. Ela não se limitou, nessa altura, a negar a realidade. Ana substituiu a realidade para sustentar o gozo de automartírio (“No seu ciúme cego, via em todas as mulheres a rival”). Um quadro psíquico delirante compatível tanto com a neurose quanto com a psicose (FREUD, 1924, p. 221). O ciúme projetado constitui mecanismo neurótico através do qual a pessoa infiel reconhece a infidelidade do amante em lugar da sua própria, mantendo-a recalcada, de maneira a aplacar a recriminação (FREUD, 1922, p. 194).
O ciúme não parece, todavia, ser o ponto chave para compreender o percurso da personagem ao autoextermínio, mas sim seu estado melancólico, reação à perda imaginária do objeto de amor. Em “Luto e melancolia”, texto fundamental sobre o tema, Freud define melancolia (ou “delírio de pequenez”) como abatimento doloroso acompanhado de “diminuição de autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição” (FREUD, 1915-1917, p. 173). Na tese de doutorado A dor moral da melancolia, Maria da Fátima Ferreira, ao abordar caso clínico envolvendo uma melancólica, percebe o predomínio de uma “culpa maciça” e de um “excesso desafiante”. E, exatamente como em Ana Karenina, as aventuras “só serviam para agravar seu desespero e seu sentimento de humilhação” (FERREIRA, 2014, p. 196).
Questão que surge é como esse quadro de empobrecimento do Eu pode se conciliar com a ideia de vingança, bem expresso no pensamento de Ana em relação a Vronski: “Tudo acabará com a minha morte. E, quando eu estiver morta, ele há de arrepender-se da sua conduta, há de chorar por mim, amar-me-á”. Freud observa que, na melancolia,
“os doentes habitualmente conseguem, através do rodeio da autopunição, vingar-se dos objetos originais e torturar seus amores por intermédio da doença, depois de se entregarem a ela para não ter de lhes mostrar diretamente sua hostilidade. (…) Assim, o investimento amoroso do melancólico em seu objeto experimentou um duplo destino: parte dele regrediu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito da ambivalência, foi remetida de volta ao estágio do sadismo, mais próximo desse conflito. Apenas esse sadismo nos resolve o enigma da inclinação ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante — e tão perigosa” (FREUD, 1915-1917, p. 184).
O que se percebe ao final de Ana Karenina é o acting out da protagonista, ato que, segundo Jésus Santiago, surge para tamponar a incapacidade do sujeito de falar ou simbolizar algo (apud CAMPOLINA, 2020, p. 126). Um apelo, sob a forma de cena pública, dirigido não apenas ao amante, mas principalmente à alta sociedade russa, modeladora da lei e da cultura, em cujos parâmetros a heroína transgressora optou por não se inserir. Uma demanda de amor que, ao fim e ao cabo, se revelou inútil, porque todo o amor possível já lhe havia sido dado. O “ganho secundário” do suicídio histérico (vingança) culminou no aniquilamento do objeto de amor, impotente diante de uma força destrutiva que nunca conseguiu compreender. Ana, tal como na tragédia de Sófocles, passou ao imaginário popular na condição de signo eterno.