Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise.
Doutora em Educação pela Faculdade de Educação/UFMG e
pós-doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
coutomargaret@gmail.com
Resumo: O artigo discute como a crença na existência de um corpo natural sustenta a tentativa operada pelas Terapias Cognitivas Comportamentais de reduzir o ser falante ao organismo. Trata-se de um corpo que supostamente poderá ser quantificado, domesticado e, portanto, adaptado aos ideais da cultura. Ao contrário disso, a psicanálise nos ensina que um corpo habitável não é um dado biológico. Ele é fruto do choque com a linguagem, lugar do gozo.
Palavras-chave: Corpo; Psicanálise; Gozo.
The TCC’s and it’s attempt to reduce the speaking being to the organism
Abstract: The article discusses how the belief in the existence of a natural body supports the attempt operated by Cognitive Behavioral Therapies (TCC) to reduce the speaking being to the organism. It is a body that supposedly should be quantified, domesticated and, therefore, adapted to the ideals of culture. On the contrary, psychoanalysis teaches us that a habitable body is not a biological datum. It is the fruit of the clash with language, the place of jouissance.
Keywords: Body; Psychoanalysis; Jouissance.
Um dos modos de rechaço à psicanálise que temos enfrentado no cotidiano de nossa clínica tem ocorrido por meio do encaminhamento em massa, especialmente de crianças e adolescentes, para as psicoterapias de orientação cognitiva comportamental. Os pais ou responsáveis relatam que esse direcionamento é realizado pelo médico pediatra, por diferentes profissionais da saúde, como também pelos profissionais da educação. Com a promessa de eficácia, objetividade e rapidez nos resultados, a terapia cognitiva comportamental (TCC) opera uma nova forma de governo da infância e da subjetividade.
Constatamos também a invasão dos ideais adaptativos dessa abordagem terapêutica na formação tanto dos profissionais da saúde como dos profissionais da educação.
A suposição de um corpo naturalizado, que existiria de forma independente da linguagem, ancora a tentativa de reduzir o ser falante ao organismo. O fascínio provocado no meio médico e educacional por essa proposta terapêutica se verifica em função da crença que é possível se ter o acesso a esse corpo de forma direta e, assim, quantificá-lo, padronizá-lo e adaptá-lo aos ideais vigentes. A promessa da eficácia promove uma verdadeira simplificação que exclui o sujeito, o gozo e o real na difícil tarefa de habitar um corpo.
Desconstruindo a TCC
Encontramos, de acordo com Aflalo (2012), uma aliança neo-higienista da psiquiatria biopsicossocial e o ideário da TCC. Nessa aliança, a clínica psiquiátrica é esvaziada de seu conteúdo e a investigação diagnóstica é substituída pela prática de questionários. Seus métodos contribuem para a propagação de uma ideologia duvidosa que sustenta um novo racismo científico. A psiquiatria psicobiossocial se faz passar por um humanismo científico, embora seja especialmente uma espécie de biorreligião a serviço das TCCs.
A discussão de cinco pontos nos permitirá estabelecer as bases da TCC e seus limites teóricos:
1. O pretenso cognitivismo das TCCs
Para Laurent (2007), a cognição a que se refere o termo terapia cognitivo comportamental não é a cognição definida pelas chamadas ciências cognitivas. Ela não permite estabelecer nenhum laço demonstrativo entre a prática das TCCs e os modelos teóricos propostos pelas ciências cognitivas. O pretenso cognitivismo das TCCs é, antes, uma bricolagem teórica. As terapias do mesmo nome são, na verdade, uma aplicação direta e técnica de duas teorias, inclusive opostas em seus princípios: a teoria comportamental e a teoria cognitivista. A concepção da natureza humana não é a mesma para os partidários do comportamentalismo e do cognitivismo. Para os primeiros, homem e animal são idênticos, pois não há diferença entre a adaptabilidade do comportamento humano e a do rato em laboratório. O humano seria apenas a soma de comportamentos, haveria apenas o organismo. Para os cognitivistas, o ser humano estaria identificado com um de seus órgãos, o cérebro, reduzido ao funcionamento de um computador. O pensamento não passaria de uma soma de programas informáticos e haveria apenas linguagem, porém, reduzida a um código.
Os dois projetos se opõem fundamentalmente. Entretanto, o que uniu essas duas formas de pensar o ser humano, apesar de suas diferenças de origem, foi a rejeição do humano como um ser de fala. Sua abordagem reducionista lhes permite afirmar que o psiquismo obedece apenas ao determinismo do organismo. Sejam quais forem os ideais em jogo, a etologia do comportamentalismo ou a máquina artificial do pretenso cognitivista, nega-se a dignidade do ser falante e a verdade de sua queixa.
2. A falsa ideia da saúde mental
A crença na existência de uma “saúde mental” é uma viga central do edifício da TCC. Entretanto, sabemos que é impossível definir cientificamente o que seria essa “saúde mental”; ela é, contrariamente, definida por uma norma moral. Os especialistas da TCC mascaram esse impossível, fazendo da saúde mental um conceito estatístico. Substituem a realidade dos fatos pela realidade estatística como se os cálculos bastassem para fazer existir a realidade do que é calculado.
Após definirem que existe uma norma mental e uma normalidade psíquica, todos os que dela se afastam, que não se tornaram a média estatística, são os desviantes, portadores de patologias mentais a serem reeducadas.
Assim, os teóricos da TCC desconhecem que a condição de ser sexuado e mortal do ser falante está na origem de vários sofrimentos “psi” e que o real do psiquismo, do mental, é o gozo.
3. Protocolos e questionários: a propagação de um cientificismo
O método dos questionários busca garantir que os comportamentos possam ser observados, codificados e quantificados. Desse modo, os comportamentos são reduzidos às listas de questões simples, às quais são atribuídos valores numéricos. A metodologia se resume à fabricação do questionário com o objetivo de formular questões objetivas e elaborar um protocolo, entendido como um conjunto de perguntas.
A prática dos questionários se afasta muito da experiência clínica. A cotação das respostas da avaliação substitui a qualidade pela quantidade, a descrição dos fenômenos por números que são organizados em estatísticas feitas para velar a falha estrutural do saber. Essa máquina enlouquecida da avaliação pretende uniformizar tudo em uma espécie de código universal.
4. O supermercado dos diagnósticos e a demissão da clínica
A psiquiatria é a única disciplina médica em que os diagnósticos são estabelecidos com base não na causa real da doença, e sim no efeito que os medicamentos têm sobre ela. As classificações do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) são fabricadas com o mesmo procedimento de avaliação: são objeto de cálculos estatísticos. O DSM não originou nenhuma verificação independente que levasse em consideração o princípio da falseabilidade ou refutabilidade de suas descobertas, princípio fundamental de certificação de um conhecimento científico de acordo com Karl Popper.
Nessas classificações, nunca se trata do sujeito nem da clínica do caso. Está em jogo apenas o consenso dos psiquiatras. Trata-se de uma espécie de “ditadura do consenso” (AFLALO, 2012), ou seja, o que se leva em conta não são fatos em si, mas sim o consenso dos especialistas, que devem satisfazer também as companhias seguradoras para as quais trabalham. Na impossibilidade de verificar os sintomas “psi”, os especialistas os negociam, mantendo apenas o que pode fazê-los concordar entre si.
5. Sintoma: um erro cognitivo
As TCCs tentam impor a ideia segundo a qual o sintoma “psi” é um distúrbio, cuja origem seria tripla: falta de aprendizagem, componentes biológicos e sociais, motivo pelo qual se tornou “biopsicossocial”. Há uma operação de redução do sintoma “psi” por meio de três operações:
1) Transforma o normal em normativo: esconde o fato que a norma “psi”, inacessível à ciência, sempre se fundamenta num julgamento de valor, ou seja, decorre da moral.
2)Transforma o mental em orgânico: utiliza-se das estatísticas para assentar o mental com as ferramentas conceituais aplicáveis ao organismo. Na falta de poder ver o órgão mental, cujas disfunções valeriam para todos, a norma do mental é fabricada com estatísticas que se fazem passar por uma verdade universal.
3) Utiliza-se do artifício do cálculo estatístico forçando a passagem do patológico para o normal, da doença mental para a saúde mental. A média estatística se torna a norma estatística e, por fim, a normalidade mental.
Para se tornar avaliável, o sintoma é transformado numa grande quantidade de itens simplórios. É reduzido a pequenas unidades de comportamentos ou de cognições, a fim de encontrar uma significação constante, facilmente calculável. O sintoma é reduzido a uma quantidade excessiva a ser corrigida. Desse modo, estabelecem listas de sintomas, ou seja, “faltas observáveis de comportamento e de pensamentos” que sempre esbarram nas questões do ser vivo e sexuado. A ineficácia dessa fabricação de sintomas impele sempre a inventar outros, principalmente ditos de personalidade. Assim, as TCCs tropeçam sempre no problema da persistência dos sintomas e das personalidades desviantes, refratárias às recompensas dadas para normatizá-las ou fazê-las desaparecer.
O sintoma é concebido como um erro que não tem a ver com a verdade, mas como um erro de consciência, do cognitivo. Nessa perspectiva, as terapias da TCCs são aprendizagens padronizadas, metódicas e breves.
Por fim, encontramos, nesse empuxo à quantificação e nesse modo de abordagem terapêutica, a tentativa de desembaraçar-se do sujeito, do gozo e do real. Por outro lado, o sujeito da experiência analítica demonstra ser intraduzível às neurociências e ao código das TCCs e demonstra como a consistência do corpo do falasser depende de uma amarração singular.
O corpo sinthomatizado e a presença do analista
No último ensino de Lacan, o corpo é abordado em sua vertente de gozo, em sua vertente real para além do campo da imagem. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico indicando que sua consistência não se dá naturalmente, ao contrário, precisa sempre de algum artifício para se sustentar. Um corpo relativamente habitável, unificado e estável não é um dado biológico. A maneira como esse corpo se mantém e a forma pela qual se dá a união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se para Lacan um verdadeiro mistério (LACAN [1972-73]1985).
Como uma caixa de ressonância, o corpo é o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos pelo ser falante. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele é traumatizado por essa língua primeira, que deixa marcas de gozo. Nele se deposita o gozo, que não é subjetivado e nem transformado em enunciação, e, por isso, não pode ser apropriado pelo sujeito. Trata-se, portanto, de um corpo parasitado pela linguagem, marcado por signos que evocam a presença muda de um gozo que ultrapassa o registro fálico (MILLER, 1999).
Desse modo, o corpo traumatizado por alíngua se difere radicalmente do corpo, supostamente natural e já dado por antecipação da TCC. Para as TCCs, o corpo é uma máquina, regulado por leis naturais, separado do campo da linguagem, do Outro e especialmente do gozo.
Nessa perspectiva, Laurent, em “O avesso da biopolítica” (2016), discute como o discurso da ciência busca identificar o ser falante ao seu organismo, eliminando o gozo. O discurso da evidência orgânica recorre à imagem do corpo para fazer desaparecer o real do gozo. O corpo-máquina faz par com o corpo-imagem, por um lado, dividindo esse corpo em unidades sempre mais numerosas e mais complexas, e, por outro, fazendo uma falsa imagem unificada, que se reproduz em variadas telas. A forma do corpo, bem como a multiplicação de suas imagens, fascinam e se oferecem como remédio contra a angústia contemporânea.
“A força da imagem em todos os níveis é encarnar, num objeto separado, o que da lógica subjetiva escapa à representação. Não se vê o sujeito, mas se veem as imagens do corpo, de sua forma e de seu funcionamento. Querer reduzir o sujeito ao seu corpo faz parte da tentativa de identificar o ser falante (être parlant) ao seu organismo” (LAURENT, 2016, p. 16).
Lacan, ao contrário desse discurso da tecnociência, enfatizou a divisão entre o sujeito e sua imagem. A ideia de si mesmo como um corpo implica uma crença, a crença de tê-lo diante do fato que ele, o corpo, escapa o tempo todo. “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN [1975-1976], 2007 p. 64).
É o que nos ensina Samantha, uma garota de 12 anos que, após ter passado por uma TCC e serem constatados problemas relativos ao corpo, nomeados desordem do movimento postural-ocular e déficit de integração, chega à análise. Tratado como um caso de um organismo defeituoso, como um transtorno, nada do corpo, como caixa de ressonância do gozo de lalíngua, é vislumbrado nesse tratamento. Como consequência, seu modo singular de vivificação e amarração desse corpo vacilante, que ameaçava escapar o tempo todo, foi desconsiderado. É durante o tratamento analítico que Samantha inventa uma solução validada pela analista: ela passa a se utilizar do cosplay1, um recurso imaginário que lhe permitiu dar consistência ao seu corpo e protegê-lo de um gozo devastador.