Contradições em um caso clínico1
Lucia Mello
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
delimaebp@gmail.com
Resumo: A autora comenta o ensaio clínico de Freud sobre um caso de paranoia, publicado em 1915, ressaltando as modificações conceituais decorrentes dessa pesquisa que abrangem a clínica do sujeito, a fantasia fundamental, a pulsão e fixação. Nesse relato clínico, Freud extrai consequências da contradição entre a teoria que advém de sua pesquisa decorrente do ato de dar a palavra ao paciente.
Palavras-chave: paranoia; fantasia fundamental, pulsão; fixação.
CONTRADITIONS IN A CLINICAL CASE
Abstract: The author comments on Freud’s clinical essay on a case of paranoia, published in 1915, highlighting the conceptual changes resulting from this research covering the subject’s clinic, fundamental fantasy, drive and fixation. In this clinical account, Freud draws consequences from the contradiction between the theory derived from his research and the act of giving the patient a voice.
Key words: paranoia; fundamental fantasy; drive; fixation.
Comentar o ensaio clínico de 1915 intitulado “Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica” provoca surpresa desde seu título, acarreta indagações diversas sobre o tema da paranoia, conduz às conexões, releituras com outros textos e tanto amplia quanto demonstra o trabalho de Freud seguindo as implicações do sujeito como categoria operatória na trama dos elementos que constituem sua história.
O caso clínico
Um advogado amigo de Freud o procura com solicitação de parecer sobre o diagnóstico de uma jovem de 30 anos, atendendo ainda o pedido de proteção que esta lhe fizera diante das perseguições de um homem. Ela relata em ocasiões diferentes as experiências vividas com um funcionário do instituto onde trabalhava, um homem atraente por quem se sentia interessada, mas que estava impedido de casamento por razões externas. Aceita o convite de encontro na casa onde ele residia e, depois de muita insistência, vai visitá-lo. Até então, ela não havia procurado ligações com homens, vivendo sozinha com sua mãe.
Algumas ocorrências durante os dois momentos amorosos com esse homem atraente promovem, progressivamente, a transformação do candidato a namorado em perseguidor. Na primeira, no meio de uma cena de amor, vivida tão somente através de abraços e beijos, ela se assusta com um barulho repentino, pancada ou clique vindo da escrivaninha e pergunta ao namorado qual origem do ruído acidental. Na segunda, quando deixa a casa, passa por dois homens na escada, que ao vê-la, murmuraram alguma coisa entre si. Um deles carregava um objeto embrulhado que parecia uma caixa. Ela começa a pensar que se tratava de um aparelho fotográfico e que os homens haviam registrado escondido seu encontro.
O namorado, quando inquirido pessoalmente e através de cartas, não oferece respostas convincentes, pelo contrário, lamenta que uma relação de início tão bonita tenha sido destruída por esta “infeliz ideia doentia”. Ela procura o advogado, conta sua experiência e mostra-lhe as cartas na tentativa de justificar, comprovar seu depoimento.
Freud acrescenta mais duas interpretações produzidas pela jovem, quando esta surpreende o namorado conversando em voz baixa com a chefe do serviço, senhora de cabelos brancos, “como sua mãe” , que até então lhe tratara com carinho. A suspeita se intensifica mais uma vez na certeza de que o homem e a senhora mantinham relações e, nessa ocasião, ele relata a aventura amorosa ocorrida anteriormente. Os protestos veementes sobre o que chamou de insinuações absurdas, principalmente com respeito à traição mencionada, não conseguiram atenuar as interpretações delirantes da jovem.
Freud inicia sua pesquisa examinada na condição de caso clínico, considerando a natureza da demanda dirigida pelo advogado e confessando de sua parte haver outro interesse além do diagnóstico. Solicita a presença da jovem e acolhe não apenas a queixa, mas o depoimento do reiterado abuso sofrido e praticado por um homem que, em diferentes situações do encontro amoroso, convoca espectadores desconhecidos para registrarem sua cena. Esse homem pretendia envergonhá-la e as fotos, se reveladas, iriam obrigá-la a deixar seu emprego. Ela foi induzida a uma ligação amorosa, mas o perseguidor original, entretanto, será apenas revelado através da leitura de uma aparente contradição.
Questões teóricas
Uma breve resenha dos textos de Freud sobre a paranoia, desde o “Manuscrito H”, demonstra a interessante progressão na pesquisa psicanalítica derivada da experiência clínica, construção cuidadosa, nem sempre linear, um trabalho ao mesmo tempo rigoroso e sutil decididamente marcado pela incompletude e indagações inovadoras.
No “Manuscrito H”, de 1895, Freud situa a paranoia, ao lado da loucura obsessiva, como psicose intelectual, diferenciada em parte, da paranoia crônica, modo patológico de defesa diante de uma representação intolerável para o Eu, projetando seu conteúdo no mundo exterior, válido para todos os tipos de paranoia: querelante, de grandeza, de ciúme, de perseguição. A ideia delirante é uma cópia ou o oposto da representação rechaçada e a referência a si mesmo sempre tenta provar que a projeção está correta.
Freud examina, no “Manuscrito K”, de 1896, a partir de casos clínicos, a noção de vivência primária, diferenciada da neurose obsessiva. Nesta, o sintoma primário que se forma, a desconfiança, é decorrente do mecanismo da recusa e consequente projeção da crença na recriminação. A lacuna no psíquico é elemento interessante encontrado nessa época e desenvolvido em pesquisas posteriores.
O encontro de Freud com a autobiografia de Schreber, publicada anteriormente em 1903, resultou nas “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”, de 1911, no qual assinala que o delírio político-teológico, impregnado nesse caso da ideia de eternidade e o Deus de Schreber com o qual o paciente iria criar uma nova raça de homens, é associado aos fenômenos de linguagem, entre os quais se destacam os fenômenos de código e mensagem, além das alucinações. A partir desse caso clínico produz investigações substanciais para a chamada “doença da mentalidade”.
Freud considerava que o delírio paranoico era resposta e gênese do conflito homossexual, além de apresentar várias formas de defesas localizadas em Schreber nas frases: “eu, um homem, amo ele, um homem”; o amor invertido em ódio, porque o perseguidor, uma pessoa amada ou seu representante, torna-se o autor que justifica, no delírio, o ódio: “eu não o amo, eu o odeio, porque ele me persegue”.
O retraimento libidinal malsucedido do narcisismo na paranoia encontrará apoio na realidade, e a pesquisa desse caso fundamentará, três anos depois, um desenvolvimento mais preciso do conceito de narcisismo.
“Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica”, publicado após a vastidão de seu trabalho sobre Schreber, em um primeiro momento retoma a questão da luta do sujeito contra a intensidade de suas tendências homossexuais que remetem a uma escolha narcísica do objeto. O perseguido, do mesmo sexo, é representante de alguém que foi amado no passado pelo perseguidor, e sobre ele recai o conjunto das interpretações e certezas delirantes. “Freud nos adverte que as análises dos paranoicos nos ensinam que o delírio se presta a um remendo colocado onde havia surgido uma fissura, uma reparação na relação do eu com o mundo exterior”, resultando em defesa bem sucedida, portanto a psicose (CAMPOS, 2022, p. 31).
No caso da jovem paranoica apresentado por Freud, ao mesmo tempo em que ela tenta se libertar das ligações com a imagem primordial da própria mãe através do recurso do delírio paranoico, acusa o namorado de ser suspeito, opondo-se aos argumentos formulados por ele, além de buscar em um advogado apoio para seus delírios aferrando-se à crença de seus julgamentos, embora o perseguidor original resida na “instância de cuja influência ela quer escapar”, ou seja, a mãe. Realiza a dupla lógica gramatical proposta por Freud, negação e projeção, presentes na paranoia.
O que parece estranho, comenta Freud, é que a jovem consiga defender-se do amor pelo homem com ajuda do delírio paranoico, embora considere que fantasias e sintomas comportam deslocamentos e substituições. Esse achado se contrapõe às suas hipóteses anteriores da prevalência da paranoia nos homens e, como argumento, evoca no plano das fantasias as observações sexuais dos pais feitas pelas crianças, no complexo parental, e constata que os sintomas embora substitutos não conseguem encerrar os conflitos.
A luta sintomática, portanto, é prolongada por novos componentes, e o próprio sintoma sucumbe, torna-se objeto dessa luta opondo-se à mudança. A pesquisa conduzida através desses novos componentes implicará em vários remanejamentos conceituais, tais como inconsciente, pulsão, repetição.
Na redação final do último parágrafo do texto, Freud sugere que, na própria experiência clínica, através do exercício de escuta e leitura do caso, reside tanto a contradição quanto o argumento, que se serve dessa contradição para promover novas investigações. Seria a pesquisa o ponto de interesse para além do diagnóstico, vislumbrado e confessado inicialmente por Freud? A nota final dos tradutores desse texto informa que a contradição, nesse caso, é apenas aparente, e a argumentação freudiana se mantém sustentando uma construção original.
Freud verifica a presença de uma inércia psíquica, encontrada também na neurose, que se opõe às mudanças. Essa inércia representa um dos fatores que participam da fixidez e repetição sintomáticas.
Se rastrearmos o ponto de partida dessa inércia especial ela se revela como expressão de enodamentos de pulsões – estabelecidos muito cedo e difíceis de desatar –, com impressões e com os objetos nelas existentes, através de cujos enodamentos se deteve a continuidade do desenvolvimento desses componentes pulsionais. (FREUD, 1915/2022, p. 95)
O salto nas argumentações freudianas é imenso a partir desse parágrafo. Até então, a identificação ao objeto amoroso primordial justificava em parte as construções delirantes, como em Schreber, mas a fixação do sintoma apresenta na clínica outros elementos que resistem às mudanças, o principal deles, na esfera pulsional, diz respeito aos modos de satisfação, presentes no jogo entre vida e morte.
Para melhor cernir a importância dessa questão, buscamos provisoriamente dois pontos de orientação.
O primeiro ponto de orientação, mais imediato, mas difícil de determinar, supostamente pode ser localizado no texto “Além do princípio do prazer”, de 1920 – mais especificamente no posfácio de Marco Antônio Coutinho Jorge (2021) à edição brasileira desse texto pela Autêntica, que se serve da leitura das construções lacanianas, contribuindo assim para o aclaramento de algumas questões relativas ao caso clínico:
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- O narcisismo é etapa decisiva, necessária, mas insuficiente, na constituição do sujeito, implicado na estrutura psicótica na forma positiva, no caso da paranoia, e na forma negativa, na esquizofrenia. Freud evidencia o narcisismo diretamente ligado à pulsão sexual, mas manifesto em sua dupla vertente – vida e morte. O mito de Narciso veicula essa dupla vertente pulsional, visto que a presença do amor e da morte são marcantes tanto na ficção quanto na realidade.
- A repetição comparece na clínica em dois tempos: em 1914, vinculada à pulsão sexual, à fantasia e ao princípio do prazer; e, em 1920, a repetição mostra sua face oculta, a pulsão de morte, o real impossível de ser simbolizado, para além, portanto, do princípio do prazer.
- A fantasia, passível de ser definida como associação entre inconsciente e pulsão de morte, sexualiza a pulsão de morte e localiza o gozo ilimitado e mortífero.
- Nas psicoses, entretanto, a foraclusão impede a operação do recalque originário e a instauração da fantasia fundamental. O delírio é o que vem tentar suprir a falta, no caso o vazio de registro, marca qualquer para produzir localização do gozo no sujeito psicótico.
- Freud concluirá, em “Neurose e psicose” e em “A perda da realidade na neurose e na psicose”, que há perda da realidade, remendo ou invenção, criação de um mudo novo, correlativos à onipresença tanto da fantasia, quanto da interpretação, nas duas estruturas. A diferença entre essas interpretações dependerá dos recursos subjetivos de cada um.
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A segunda orientação advém das diferenças, anunciadas em 1915 por Freud, entre fantasia e fantasia fundamental. Diferentes das fantasias consideradas como formações do inconsciente, as fantasias primordiais encontradas em todas as crianças – que incluem, além da “observação” da relação sexual dos pais, a sedução, castração –, fazem parte do que Freud considerou como recalque primário, inacessível à lembrança, suporte do longo trabalho das construções em análise.
Neste ensaio, a importância do conceito de fantasia fundamental e sua função compensatória na psicose, desenvolvido por outros pesquisadores, é mencionado pela primeira vez, e o caso clínico apresentado confirma o quanto a fantasia é realizada na psicose e imaginarizada na neurose. As investigações mais recentes apresentadas pela clínica das compensações na psicose através da fixidez e repetição das imagens indeléveis informa: “Por não ter podido construir uma fantasia fundamental que venha responder ao enigma do desejo do Outro, o sujeito psicótico se encontra em uma relação de íntima proximidade com um Outro que se apresenta como gozador” (MALEVAL, 2020, p. 199, tradução nossa).
Feitas essas considerações, voltemos ao caso clínico. A vida aparentemente pacífica de uma jovem de 30 anos é perturbada pela demanda amorosa. Quando o corpo dessa jovem é solicitado na resposta à demanda amorosa, e na impossibilidade de encontrar palavras ou atos para cernir essa experiência, surge a cascata de interpretações decididamente marcadas pela certeza. A fixidez de seus julgamentos não dá margem para a dúvida: as intenções do Outro são más. O enigma ou o vazio proposto pela relação sexual encontra sua resposta absoluta fazendo equivaler imaginariamente realidade e fantasia.
A partir de um simples caso clínico, com elementos colhidos em poucas entrevistas, Freud constrói pontes que franqueiam a leitura de uma experiência inédita e permitem que a psicanálise ilumine detalhes despercebidos na passagem das identificações para o circuito pulsional e seus modos misteriosos de satisfação.
O enorme trabalho de investigação que marcou sua incidência sobre o narcisismo e as identificações, até permitir acesso ao silêncio pulsional, requereu muitos anos de pesquisa de Freud, retomados por Lacan e Miller, que, no campo freudiano, fazem da contradição fonte renovada de trabalho.
As transformações subjetivas e seu elemento invariante, que nesse ensaio clínico Freud nomeou como fixação, ou inércia especial, se repete na história singular e na clínica em geral, decorre da experiência ímpar, em torno de um vazio, lugar da criação de algo sempre novo… ainda.
Referências
CAMPOS, S. de. Investigação lacaniana das psicoses: As psicoses extraordinárias. Vol. 1. Belo Horizonte: Topológica, 2022.
FREUD, S. Manuscrito H: Paranoia (24.01.1895). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1895).
FREUD, S. Manuscrito K: As neuroses de defesa (01.01.1896). In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. (Trabalho original publicado em 1896).
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Trabalho original publicado em 1920).
FREUD, S. Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Neurose, psicose e perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. (Trabalho original publicado em 1915).
JORGE, M. A. C. Posfácio – Incidências clínicas: o terceiro passo de Freud. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Além do princípio do prazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
MALEVAL, J. C. Coordenadas para la psicosis ordinária. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2020.