Neurose e psicose: um início de compreensão1
Luciana Silviano Brandão
Psicanalista, Membro Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
lucianasbl@gmail.com
Resumo: O presente texto visa fazer um apanhado teórico do texto de Freud intitulado “Neurose e psicose”, publicado em 1924. Diante da questão sobre qual seria o mecanismo de defesa da psicose, a autora discorre sobre o conceito de foraclusão em Lacan.
Palavras-chave: neurose; psicose; foraclusão.
NEUROSIS AND PSYCHOSIS: A BEGINNING OF UNDERSTANDING
Abstract: The present text aims to make an overview of Freud’s text “Neurosis and psychosis”, published in 1924. Faced with the question of what the defense mechanism of psychosis would be, the author discusses the concept of foreclosure in Lacan.
Keywords: neurosis; psychosis; foreclosure.
No pequeno texto “Neurose e psicose”, escrito e publicado por Freud em 1924, há, pela primeira vez, a ocorrência do termo “psicose” em um título. Vê-se também a separação entre duas entidades clínicas: neurose e psicose. Vale lembrar que as concepções tratadas aqui são fruto dos avanços do psicanalista em sua elaboração da segunda tópica e, especialmente, depois de “O eu e o isso”, publicado no ano anterior.
A diferença entre neurose e psicose será pensada em termos do conflito entre as novas instâncias psíquicas, ou seja, entre o Eu, o Isso e o Super-Eu. Em poucas palavras, “a neurose é o resultado de um conflito entre o Eu e seu Isso, ao passo que a psicose é o resultado análogo de uma perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 271).
Para Freud, as neuroses de transferência se originam da seguinte forma:
O mais curioso é que o “Eu, ao fazer essa operação de recalcamento, está obedecendo as leis do Super-Eu, que, por sua vez, tem origem nas influências do mundo real exterior e que no Super-Eu encontraram sua representação” (FREUD, 1924/2022, p. 272). O fato é que
O Eu tomou partido dessas forças, que suas exigências são nele mais fortes do que as exigências pulsionais do Isso e que o Eu é a força que promove o recalcamento contra aquela parte do Isso e o fortifica através de um contrainvestimento da resistência. A serviço do Super-Eu e da realidade, o Eu entrou em conflito com o Isso; eis o estado de coisas em todas as neuroses de transferência. (FREUD, 1924/2022, p. 272)
Vê-se, dessa forma, que o Eu se torna refém tanto das forças do Isso, quanto das do Super-Eu. O aparelho psíquico não suporta o desprazer e faz o que pode para evitá-lo, por isso essa “dança”, para que sua economia se mantenha estável.
No caso da psicose, Freud considera ser fácil mencionar exemplos de mecanismos de defesa que apontam para a perturbação das relações entre Eu e mundo exterior. Cita um exemplo grave, a amência de Meynert, que se caracteriza por uma aguda confusão alucinatória, na qual o mundo exterior não é percebido, ou sua percepção permanece totalmente ineficaz.
Na “normalidade”, o mundo exterior governa o Eu de duas maneiras: “primeiro, através de percepções atuais e sempre renováveis; segundo, através do repertório de percepções antigas que, como ‘mundo interior’, configuram um patrimônio e um componente do Eu” (FREUD, 1924/2022, p. 273). Já na amência, a aceitação de novas percepções é recusada, o mundo interior tem sua significação retirada e o Eu cria para si um novo mundo exterior e interior.
Em outras formas de psicose, como nas esquizofrenias, percebe-se um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo exterior. Em relação à gênese das formações delirantes, a hipótese é que sejam uma tentativa de remendo colocado onde originariamente havia surgido uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior.
Então, na amência, o mundo exterior é completamente abolido, e, nas outras formas de psicose, o sujeito se embota afetivamente e há perda da participação do mundo. Portanto, verifica-se a gravidade da primeira forma.
Freud propõe que a etiologia para o início de uma psiconeurose, ou psicose, continue sendo o impedimento:
Freud afirma que o Super-Eu introduz uma complicação, que é a unificação em si tanto do Isso quanto do mundo exterior, tornando-se, de certa forma, um modelo ideal daquilo a que visa todo o anseio do Eu, ou seja, a reconciliação com suas diversas dependências.
Continuando seu raciocínio, o psicanalista acredita haver afecções que têm por base um conflito entre o Eu e o Super-Eu. Em relação a esse conflito específico, ele afirma ser o caso da melancolia o melhor exemplo dessas “psiconeuroses narcísicas” (FREUD, 1924/2022, p. 275), distinguindo-a, assim, das outras formas de psicoses.
Ele conclui, nesse momento, que a “neurose de transferência corresponde ao conflito entre o Eu e o Isso; a neurose narcísica, a um conflito entre o Eu e o Super-Eu; a psicose, a um conflito entre o Eu e o mundo exterior” (FREUD, 1924/2022, p. 275).
No entanto, mesmo diante da informação de que tanto a neurose, quanto a psicose, se originam do conflito entre o Eu com as várias instâncias que o controlam, a questão de como saber como o Eu consegue sair ileso desse conflito – que estão sempre presentes – é algo a ser discutido.
Ao final de seu texto, Freud coloca uma questão importante: qual seria o mecanismo análogo ao do recalcamento, pelo qual o Eu se desliga do mundo exterior, na psicose?
A foraclusão
Lacan, no primeiro tempo de seu ensino, desenvolverá a ideia da foraclusão (Verwerfung) como o mecanismo específico da psicose. A Verwerfung como um mecanismo de defesa fora utilizada por Freud em seus escritos a fim de demarcar a ação de uma barreira, de uma rejeição ou uma abolição. Mas Lacan (1956/1985, p. 174), no Seminário 3, lhe dá uma noção mais radical:
De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranoia. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo significante.
Na passagem, percebe-se a clara diferença entre Verwerfung e Verdrangung (recalque). Na Verdrangung, mecanismo clássico da neurose, há chance de o sujeito ter acesso aos conteúdos recalcados através do retorno do recalcado, como os sintomas, sonhos, lapsos. Já na Verwerfung, isso é impossível, pois há uma “exclusão de um dentro primitivo” tornando o que foi suprimido completamente inacessível.
No final desse Seminário sobre as psicoses, Lacan adotará o termo em francês forclusion, em vez de verwerfung: “Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido, proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser melhor – a foraclusão” (LACAN, 1956/1985, p. 360). Sabe-se que o psicanalista toma de empréstimo a foraclusão do vocabulário jurídico, que se refere a um processo acabado legalmente, prescrito. Ou seja, nesse primeiro tempo de seu ensino, ele se apropria desse termo para mostrar a inexistência do Nome-do-Pai na psicose e como esse significante fica fora do simbólico.
Percebe-se que, na primeira clínica de Lacan, baseada na foraclusão, há um acento naquilo que falta ao psicótico, pois falta-lhe o Nome-do-Pai como o que lhe permitiria significantizar o gozo do seu corpo e o gozo do corpo do Outro.
Como entender a foraclusão do Nome-do-Pai? Para isso é necessário compreender a noção da metáfora paterna.
A fórmula da metáfora paterna deriva da noção de metáfora, em que um significante substitui um outro criando um efeito de significação. No caso da metáfora paterna não se trata de um significante qualquer, mas de um especial, o do Nome-do-Pai, que deve atuar sobre outro significante, o do Desejo da Mãe.
O Desejo da Mãe é sempre uma incógnita, pois ninguém sabe o que a mãe quer e um filho nunca estará à altura do que ela quer. Consequentemente, isso se torna um X, um enigma que cada sujeito tentará dar uma significação. O que acontece na psicose é que o Nome-do-Pai falta e não opera sobre o Desejo da Mãe – que poderia produzir a significação fálica. O Desejo permanece uma incógnita, deixando o sujeito sem condições de responder como falo, pois o Nome-do-Pai não está inscrito no campo do Outro, pois foi foracluído.
Por essa razão, o psicótico não consegue responder usando a significação fálica. A psicose seria, portanto, a consequência da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica, levando Lacan a afirmar que o que é foracluído no simbólico reaparece no real.
José
José é um senhor de 70 anos que trabalhou a vida toda em uma grande instituição no campo do transporte. Veio de uma família simples do interior e, com seu ofício, se destacou no seio familiar no quesito financeiro. Começou a trabalhar muito jovem e, mesmo depois de sua aposentadoria, continuou ativo no sindicato daquela empresa. A função desse sindicato é auxiliar os trabalhadores em relação a problemas jurídicos que tenham com a empresa, além de esclarecer seus direitos e deveres. José teve cargo na diretoria dessa instituição por longo período e sua chapa saía vitoriosa por mais de 20 anos nas eleições.
Pode-se dizer que o trabalho e a função no sindicato lhe deram uma sustentação fálica nesse longo tempo. Entretanto, e sem que suspeitasse, sua chapa perdeu as eleições, forçando-o a se aposentar definitivamente.
Poucos meses depois dessa derrota, José entrou em um estado alucinatório e delirante. Acreditava que seu apartamento fosse desmoronar, além de ouvir gritos de pessoas pedindo socorro no elevador. Ou seja, uma catástrofe acontecia ao seu redor. José chegou a tentar se jogar da janela de seu apartamento ao ouvir vozes alucinadas dizendo que o perigo se aproximava. Não conseguia sair da cama e permanecia com olhar estuporado. Depois que sua família conseguiu levá-lo para tratamento, José conseguiu se estabilizar e está aparentemente sem alucinações. No entanto, encontra-se incapaz de retomar a “vivacidade” dos tempos de antes do desencadeamento.
Esse caso ilustra bem como um sujeito, ao se deparar com a ausência da significação fálica – no caso de José, ao se ver destituído do posto que lhe dava isso de forma imaginária –, responde com o desencadeamento psicótico. Ou seja, como afirmava Lacan em sua primeira clínica, o que foi foracluído no simbólico, retorna no real.
Referências
FREUD, S. Neurose e psicose. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 271-278. (Trabalho original publicado em 1924).
LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).