A clínica no era do real1
Esthela Solano-Suárez
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause freudienne/AMP
solano-suarez@orange.fr
Resumo: A prática clínica tem seu lugar na lacuna entre o dito e o dizer, no qual se privilegia o caso a caso e o particular sob transferência. Ao se orientar por uma defesa contra um real sem lei, produzido por uma desordem a partir do discurso da ciência e do discurso capitalista, o fazer clínico acontece a partir da leitura do singular de cada falasser. A psicanálise, numa clínica orientada pelo real, é capaz de transmitir algo de novo que se verifica no entusiasmo do analista praticante.
Palavras-chave: real; inconsciente; sintoma; transferência.
THE CLINIC IN THE REAL MOMENT
Abstract: Clinical practice takes place between what is said and what is being said, and every single case and what is particular to it gets privileged over under transference. Clinical practice takes place guided by a defense against a lawless real, produced by a disorder from the discourse of science and that of capitalism, and from the reading of the singular part of each parlêtre. In a clinic guided by the real, psychoanalysis is able to transmit something new that can be seen in the excitement of the practicing analyst.
Keywords: real; unconscious; symptom; transference.
A clínica psicanalítica não é uma clínica do comportamento, nem de seus transtornos. Ela não se confunde com uma visada educativa que se declina segundo os critérios em conformidade com uma “norma”. Ela não se limita a um puro formalismo prático, que quer explicar aquilo que se faz ou que não se faz (LACAN, 1955/1998, p. 326). A clínica psicanalítica não se encontra em nenhum outro lugar a não ser “no que se diz em uma análise” (LACAN, 1977, p. 7, tradução nossa). Não é, portanto, uma clínica do fazer, mas uma clínica na qual o dito se renova não por uma realidade factual, mas por sua relação com o dizer.
Freud, ao dar a palavra às histéricas, levou a sério seus ditos, revelando uma verdade que só pode se meio-dizer através das formações do inconsciente. Uma verdade variável, recalcada, inconfessável, afirmada em sua denegação, jorrando no desvio de um lapsus, de um Witz, de um tropeço, de um deslize, e testemunhando por seus efeitos a dimensão na qual se cumpre para o sujeito uma secreta satisfação do gozo. Assim, a descoberta freudiana inaugura o espaço inédito de um dizer que “se infere da lógica que toma como fonte o dito do inconsciente” (LACAN, 1972/2003, p. 453).
Na disjunção entre o dito e o dizer repousa o espaço da clínica analítica. Essa disjunção convoca a distância entre o que é da ordem do meio-dizer da verdade e do real do gozo que ex-siste ao dito.
A abordagem de Freud responde à topologia da banda de Moëbiu, em que o relato do caso e a invenção do conceito seguem um traçado que percorre uma só borda. Certamente isso comporta a exigência da formalização, mas esta se enlaça à experiência e se infere de uma leitura dos ditos do analisante. Escutemos Freud a esse respeito:
Via de regra, contudo, a controvérsia teórica é infrutífera. Tão logo o analista começa a desviar-se do material com o qual deveria contar, corre o risco de intoxicar-se com as próprias afirmações e, no final, de apoiar opiniões que qualquer observação poderia contradizer. (FREUD, 1918[1914]/1996, p. 59)
Essa observação de Freud defende que o campo da clínica psicanalítica se subordina ao mais particular do sujeito. É um convite para que a teoria analítica seja posta em questão na análise de cada caso.
Uma clínica sob transferência
Se a clínica freudiana incorpora elementos da psiquiatria clássica, principalmente a distinção dos tipos de sintomas, longe de ser uma clínica mecanicista, ela pretende compreender, a partir de um trabalho de decifração, tanto a função do sintoma quanto suas vias de formação. Ora, se se verifica que há tipos de sintomas identificáveis e diferenciados, isso não quer dizer, no entanto, que os sintomas do mesmo tipo têm o mesmo sentido. Permanecendo fiel à observação de Freud, Lacan (1973/2003, p. 554) considera que: “Os sujeitos de um tipo, portanto, não tem utilidade para os outros do mesmo tipo”. Assim, observa ele, o discurso de um sujeito obsessivo não se encontrará esclarecido a partir do que é dito por um outro obsessivo. Essa clínica do particular nos abre a via de uma formação suscetível de nos incentivar a saber ignorar o que nós sabemos (LACAN, 1955/1998, p. 355).
Ora, o dito do analisante inclui a presença do analista, que não somente o autoriza, mas constitui seu endereçamento. A experiência da palavra, assim acordada, só se desenvolve “ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura, aquele que tem nome: o sujeito suposto saber” (LACAN, 1967/2003, p. 254). A transferência como pivô da experiência analítica comporta a suposição de um sujeito do saber “supostamente presente, dos significantes que estão no inconsciente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). Desse modo, a clínica psicanalítica é uma Clínica-Sob-Transferência (MILLER, 1984, p. 142, tradução nossa). Nessas condições, o laço estabelecido entre os dois parceiros da experiência, o analisante e o analista, responde à estrutura inédita do discurso analítico. No discurso analítico, o saber vem em posição de verdade. O analisante não terá outro saber a não ser os efeitos de verdade produzidos por seu trabalho.
O sujeito suposto saber é uma função relativa à articulação significante. Ela introduz a suposição daquilo que quer dizer o sintoma. Essa função suporta a crença no sintoma como formação linguageira suscetível de dar um sentido, um Sinn. Uma tal pressuposição de sentido está a trabalho pelo simples fato de que o sintoma é comunicado ao analista. Ela é primeira, e presta contas das condições de possibilidade da experiência: “No começo da psicanálise está a transferência. Ela ali está graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação: o psicanalisante” (LACAN, 1967/2003, p. 252).
Jacques-Alain Miller (2010, p. 148) demonstra a dupla articulação da transferência em ação no texto da “Proposição de 9 de outubro…”, de Lacan. De fato, se a relação analítica institui o sujeito suposto saber relativo aos efeitos de sentido próprios à articulação significante – der Sinn –, em seguida virá nesse lugar a Bedeutung enquanto “referencial ainda latente” (LACAN, 1967/2003, p. 254). J.-A. Miller argumenta que se trata aqui da função do analista enquanto objeto libidinal, isto é, enquanto objeto a, referente ainda latente quando se produzem os primeiros fenômenos de interpretação (MILLER, 2006/2007, p. 149, tradução nossa). A função da transferência articula assim a vertente semântica e a vertente libidinal. Em consequência, podemos conceber o alcance da definição da transferência dada por Lacan, que, por um lado, faz apelo ao sujeito suposto saber e, por outro, caracteriza a transferência como sendo “a atuação da realidade do inconsciente”, especificando em seguida que “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (LACAN, 1964/1988, p. 143).
Através de suas formações, o inconsciente interpreta a realidade sexual. Isso permite opor-se aos efeitos de sentido das formações do inconsciente – lapsus, atos falhos e sonhos – nos quais se revela “o estatuto fugidio do ser” (MILLER, 2011, s/p) na fulgurância de um efeito de verdade contingente, surpreendente e imprevisível, feito de furo que ex-siste aos ditos, presentificando o real do sexual.
Se os falasseres – os seres que não detêm seu ser senão pela palavra – testemunham uma relação com o sexo singularmente sintomática, barrada pela inibição e habitada pelo afeto da angústia, isso se inscreve como consequência daquilo que do sexual “não cessa de não se escrever” (LACAN, 1972-73/1985, p. 49), a título de relação sexual. Essa impossibilidade “é um furo do saber no real”, em consequência, “não há no dizer da existência relação sexual” (LACAN,1972-73/ 1985, p. 49).
O real e a clínica
A clínica psicanalítica é uma clínica que se orienta pelo real. Se o real foi definido por Lacan como sem lei e fora de sentido, o real em jogo na psicanálise não é o real da ciência. O real é um pedaço, não um universo, é um caroço, não um todo. Ele é suscetível de ser isolado como o fora-de-sentido do gozo do sintoma, uma vez que este foi despido de seu aparelho de ficções fantasmáticas, a título de “verdade mentirosa” (LACAN, 1976/2003, p. 569).
É o que os testemunhos dos AE informam a partir da construção do percurso de sua experiência de análise e da redução desta a um caroço. Por esse viés, a clínica do passe é uma transmissão daquilo que é o mais singular do sujeito enquanto resto irredutível, no sentido em que se revela ex-sistir “um pobre real que se apaga como um puro encontro com lalangue e seus efeitos de gozo sobre o corpo” (MILLER, 2014, p. 30).
Ao constatar que até hoje “nossos casos clínicos são construções lógicas de uma clínica sob transferência”, J.-A. Miller (2014, p. 31) nos propõe então, como programa de trabalho, em face da desordem no real introduzida pelas consequências do discurso da ciência e do discurso capitalista no século XXI, seguir o caminho de uma clínica psicanalítica orientada pela “defesa contra o real sem lei e fora de sentido” (MILLER, 2014, p. 31).
Um vasto programa que este número de Revue La cause du Désir[2] coloca na ordem do dia sob o tema do “entusiasmo pela clínica” (“l’engouemant pour la clinique”). Com efeito, se o termo provém de “empanturrar-se”, usado no século XVII no sentido de “sufocar ao obstruir a garganta”, sabemos que não é nesse sentido que vamos nos orientar, enchendo o sintoma de sentido. É, antes, uma questão de “privar o sintoma de sentido” (MILLER, 2011, s/p) e passar da escuta do sentido para a leitura do sem sentido, visando assim a opacidade do real. Talvez o entusiasmo tomado no sentido metafórico atribuído ao termo desde o século XVII, no sentido de “estar cheio de, estar repleto de”, seja um afeto correlato, não dos efeitos de sentido, mas aos efeitos de furo no qual o real ex-siste.
Se o real não cessa de não se escrever, ele não se encontra na exatidão da rotina, nem do padrão. É o caminho da contingência e da invenção que ele convoca. Em cada caso, se desenrola uma reinvenção da psicanálise suscetível de nos transmitir algo de novo, do entusiasmo pela clínica.