SUZANA FALEIRO BARROSO
“Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto, basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos que manipular e que se chama pulsão. Parece então haver aqui referência a um dado último, ao arcaico, ao primordial. Tal recurso, ao qual meu ensino os convida, para compreender o inconsciente, a renunciar, parece aqui inevitável.”
(LACAN, 1964/1985, p.154)
A Pulsão, A Criança E O Sonho De Freud
A pulsão tem um percurso na psicanálise desde Freud até Lacan não sem passar pelos pós-freudianos. Ela implica a desnaturalização do corpo a partir da incidência da linguagem no mais íntimo do organismo. Desse modo, a função orgânica é habitada pela pulsão. O inconsciente estruturado como linguagem tem como parceiro o Outro enquanto corpo reduzido à gramática das pulsões. Por meio do circuito pulsional, os órgãos e as funções biológicas se inscrevem enquanto funções de gozo.
Conceito limite entre o psíquico e o somático, a pulsão também implica limites quanto às “mudanças, transformações e mutações que a análise pode efetuar nos modos de gozo do sujeito” (MILLER, 2005, p.49). Por sua dupla face de significante e de silêncio é que a pulsão interroga que o fato de falar pode acarretar mudanças no modo de gozo do sujeito. É com relação à pulsão que Lacan vai localizar o desejo do analista, como o que, em última instância, opera na cura.
Com esse operador clínico, a saber, o desejo do analista, Lacan fazia uma intervenção no campo dos ideais analíticos que o precederam com relação aos destinos da pulsão. Freud já nos havia advertido quanto aos limites e mesmo quanto ao fracasso da análise correlacionado ao impossível de educar e governar a vida pulsional. Ainda assim, parece ter sonhado com a eficácia do simbólico para promover o governo da pulsão.
A correlação entre a criança e a pulsão se encontra no conceito freudiano do perverso polimorfo. Trata-se da criança sob um regime anárquico de gozo a ser organizado e humanizado pela intervenção da ordem simbólica da qual se esperam a submissão do gozo à castração e a instalação do regime fálico de gozo. A humanização do desejo atribuída à incidência da autoridade parental sobre o caráter selvagem da pulsão interfere nos seus destinos segundo a lei do pai. Desse modo, podemos distinguir a neurose da perversão e da psicose segundo o fracasso da submissão da pulsão à autoridade paterna e suas consequências para o corpo e o gozo.
Na neurose, temos o exemplo do Pequeno Hans, que, segundo Freud, foi um modelo de todos os vícios. Esse caso ilustra a intervenção humanizadora da metáfora fóbica na vida pulsional, promovendo a extração de gozo e sua localização fora do corpo. Verifica-se, nos circuitos do Pequeno Hans, a montagem da pulsão. Na perversão, contrapondo-se ao Pequeno Hans, temos o caso de Gide, cuja falha na humanização do desejo e na sua compatibilização com o laço social fez com que a masturbação se mantivesse desde sua infância até a juventude enquanto satisfação selvagem da pulsão. Na psicose, o caso de Robert ilustra os efeitos da não inscrição do circuito da pulsão devido à não extração de gozo do corpo. A linguagem reduzida a um significante sozinho promoveu devastação e não simbolização ao nível do corpo e do gozo, de modo que foi pela via do ato que Robert tentou obter a extração de gozo.
Educar e civilizar a pulsão é o que a sociedade sempre esperou da família, motivo pelo qual a psicanálise com crianças foi de início questionada ou socialmente consentida desde que sustentasse uma aliança com a educação. Como aceitar um método que iria contra o processo de educação da criança, visto que ele supostamente liberaria seus impulsos os mais antissociais e contrários aos ideais da civilização? Disso decorre a inauguração do debate que envolveu a psicanálise e a educação.
De fato, não só Lacan reinventou a psicanálise como também as transformações sociais foram muitas desde o tempo de Freud. De modo que, a partir da orientação lacaniana, podemos pensar em como promover o laço social não a partir dos ideais, e sim a partir da pulsão.
Muitos analistas de crianças tentaram dar conta da questão da pulsão e do laço social, a exemplo de Anna Freud e de Melanie Klein. Anna Freud associou a tarefa de analisar com a de educar, acreditando que o analista deveria promover uma regulação da vida pulsional infantil. Para cumprir esse objetivo, ela defendia a ideia de um pacto com os pais, de uma aliança terapêutica, ou seja, aliança do analista com os pais em prol do fortalecimento do eu. Melanie Klein, ao voltar-se, sobretudo, para a vida pulsional, privilegiou o papel das pulsões estruturantes das relações objetais, o que lhe conferiu o apelido de “Tripeira”, dado por Lacan.
Ambas as analistas abordaram, cada uma à sua maneira, as duas faces da pulsão, a face que implica o Outro e a cadeia significante de sua demanda endereçada à criança e a face de gozo que implica o objeto mais-de-gozar. Enquanto Anna Freud parece ter valorizado demais o papel do Outro parental na organização da vida pulsional, em detrimento do objeto visado pela pulsão, Melanie Klein, ao contrário, valorizou, acima de tudo, o objeto, porém desconhecendo que a pulsão é capturada num sistema de significantes.
Lacan deslocou esse debate ao valorizar o fator satisfação implicado na pulsão, o que se sobrepõe à sua aliança com os ideais e a verdade. A satisfação da pulsão pode infiltrar-se até mesmo no processo de análise, na fala, na transferência e na interpretação. O problema, cada vez mais evidente, mediante o declínio da autoridade paterna e dos termos freudianos da organização edipiana da pulsão, é a tendência da pulsão de se satisfazer autoeroticamente, portanto, até certo ponto, à revelia do Outro e do laço social.
De fato, quanto à satisfação das pulsões parciais, nunca foi evidente a referência ao campo do Outro, à cultura, ao laço social. A pulsão genital, suposta pelos pós-freudianos como aquela que coroaria o desenvolvimento pulsional infantil para além de seus interesses parciais, não existe. Disso decorre a possibilidade de pensarmos a constituição do laço social a partir da parcialidade da pulsão. É o que a teoria lacaniana dos discursos vem demonstrar, desde que Lacan insere no âmago da estrutura discursiva o objeto mais-de-gozar.
As Duas Faces Da Pulsão
O Seminário 11 constitui um marco para a noção de pulsão em Lacan, visto que aí ela ganha o estatuto de conceito fundamental, ao lado do inconsciente, da transferência e da repetição. Nesse seminário, a pulsão é relançada além da primazia do simbólico, segundo a qual ela foi abordada, precisamente por meio da concepção da tríade necessidade, demanda e desejo. Para além de sua inscrição simbólica, definida até então pela fórmula do grafo do sujeito, ($◊D), Lacan concebeu as noções de alienação e de separação. São operações de constituição do sujeito que incluem as duas faces da pulsão, a simbólica e a real, respectivamente, o valor de verdade e de gozo, a face que fala por meio de uma gramática e a face silenciosa. Enquanto a dimensão simbólica da pulsão, representada pela intervenção da demanda do Outro sobre o organismo do falasser, concerne à operação de alienação, a dimensão real implica o mais-de-gozar e concerne à separação. A separação coloca em jogo o organismo vivo, a libido, os objetos pulsionais. Cada um dos objetos pulsionais é especificado por certa matéria na medida em que a esvazia. O objeto a, na verdade, é, para Lacan, uma função lógica, uma consistência lógica que consegue encarnar-se naquilo que cai do corpo sob a forma de diversos dejetos. É a dessubstancialização do objeto que evidencia a sua consistência lógica de vazio, de cavo (MILLER, 1994).
Lacan nos lembra, em 1964, do dizer de Freud de que as pulsões são nossos mitos e acrescenta que é o real que elas mitificam, reproduzindo a relação do sujeito com o objeto perdido.
“Não faltam objetos que passam por lucros e perdas para ocupar seu lugar. Mas é em número limitado que eles podem desempenhar um papel que se simbolizaria da melhor maneira possível pela automutilação do lagarto, por sua cauda desprendida com desolação” (LACAN, 1964/1998, p.867).
A noção freudiana de pulsão é por excelência a demonstração de que a fala tem efeito e ressoa no corpo. “O conceito de pulsão, explicado por Lacan, designa um traço comum às palavras e ao corpo. É o que é designado pelo traço do corte” (COTTET, 2000, p.70). Além disso, “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p.18). Para que esse dizer ressoe, é preciso que o corpo seja sensível, o que concerne aos seus orifícios dos quais o mais importante é o ouvido. “Porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz” (LACAN, 1975-1976/2007, p.19).
O corpo sensível às palavras está em jogo na constituição do circuito das demandas lastreado pelas zonas erógenas a partir da incidência do discurso do Outro sobre o infans. No encontro do ser vivente com a língua materna, o corpo se constitui não somente como imagem, mas também como eco pulsional do dizer do Outro. A substância corporal coloca em relevância a capacidade do dizer de afetar o corpo, de imprimir marcas sobre o corpo e desalojar o gozo. Trata-se da implicação da função do signo e sua incidência sobre o corpo mais do que a função do significante, visto que este sempre vem no lugar de uma falta, opera pela negatividade e não enquanto presença.
A montagem da pulsão supõe a constituição de um circuito de gozo em torno do furo deixado pela extração do objeto. O paradigma da extração do objeto é o fort-da freudiano, matriz da relação do sujeito com o significante e com o objeto. Ao observar o brincar de seu neto de um ano e meio de idade, Freud descreveu o jogo que ficou conhecido como jogo do fort-da e que marca a inserção da criança na dimensão simbólica. Ao afastar de si o carretel com o qual brincava, a criança enunciava o fort e, ao recuperá-lo, trazendo-o para junto de si, enunciava o da, expressando a alternância do desaparecimento e do retorno do objeto. “Foram esses jogos de ocultação que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos que o momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce para a linguagem” (LACAN, 1953/1998, p.320).
A criança demonstra aí seu compromisso com o discurso do Outro, reproduzindo, em seu fort e em seu da, os significantes que dele recebe.
“Pois sua ação destrói o objeto que ela faz aparecer e desaparecer na provocação antecipatória de sua ausência e sua presença. Ela negativiza assim o campo de forças do desejo, para se tornar, em si mesmo, seu próprio objeto. E esse objeto, ganhando corpo imediatamente no par simbólico de dois dardejamentos elementares, anuncia no sujeito a integração diacrônica da dicotomia dos fonemas, da qual a linguagem existente oferece a estrutura sincrônica e sua assimilação” (LACAN, 1953/1985, p.320).
Observa-se bem que o ato da criança, aparentemente ingênuo, é um ato de palavra que anula o objeto e implica uma cessão de gozo acarretada pela entrada no discurso. “Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui […] que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito” (LACAN, 1964/1985, p.63).
Uma das interpretações mais correntes do fort-da é que, nesse jogo, por meio da repetição, a criança estaria elaborando a perda relativa à ausência da mãe, fazendo-se agente dessa perda. Nesse contexto, o carretel é a mãe. Para Lacan, fazer-se agente da perda torna-se um fenômeno secundário em relação à importância fundante do sujeito nesse jogo. O psicanalista desloca a questão da separação do par mãe-criança para a criança e o objeto, ao mesmo tempo íntimo e exterior a ela mesma. O carretel é, então, o objeto a. A necessidade do retorno da mãe poderia manifestar-se pelo grito. Há, portanto, algo mais do que o grito e a demanda que se inscreve no jogo do carretel e que o eleva à dimensão de um ato. O fort-da testemunha a perda inerente à introdução do sujeito na dimensão simbólica.
“A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura — onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a auto-mutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva” (LACAN, 1964/1985, p.63).
O que chamou a atenção de Freud foi, sobretudo, a necessidade da criança de repetir o jogo reiteradamente, revelando o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma. A repetição típica do fort-da é uma presentificação em ato do encontro com o real que Lacan nomeou de tiquê, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
“É a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito — superada pelo jogo alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali, e que só visa, em sua alternância, a ser o fort de um da e o da de um fort. O que se visa é aquilo que, essencialmente, não está representado” (LACAN, 1964/1985, p.63).
A observação de Freud esclarece como o sujeito se produz a partir de sua inscrição na cadeia significante (fort-da). O que se destaca aí é a condição dessa operação, a saber, a extração do objeto que introduz uma negativização do gozo.
“O carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha […] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura […] É com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que começa a encantação” (LACAN, 1964/1985, p.63).
O sujeito como efeito de significação é resposta do real à ausência do Outro. “O jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio — a borda do seu berço — isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN, 1964/1985, p.63). O salto é o ato e indica uma clínica do objeto para além de uma clínica do sentido.
Esse jogo infantil se tornou para Lacan o paradigma das operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação. Pode-se extrair daí uma clínica do fort-da, isto é, uma clínica das relações do sujeito com o significante e com o objeto. O par fort-da corresponde ao par S1 – S2, necessário para definir a estrutura do Outro, segundo a primeira linha do discurso do mestre, no qual se inscreve a identificação do sujeito. A clínica do objeto concerne a uma orientação que prioriza a extração do excedente de gozo. O objeto a definido como um furo no Outro, um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar.
A angústia na neurose demonstra a positividade do objeto e sua presença avassaladora para o sujeito nas “aparições, perturbações e separações” do objeto a (MILLER, 2005, p.54). As aparições dizem respeito a toda presentificação do objeto ali onde ele deveria faltar, a saber, no lugar de -. Nesse ponto, onde o neurótico sentiria angústia, devido a uma vacilação dos semblants, o psicótico sente horror e perplexidade, provocados, portanto, pela irrupção do gozo no corpo.
O menino do fort-da ilustra como a castração impõe a articulação da linguagem e faz com que uma palavra tenha que se articular a outra para produzir sentido, não sem uma perda de seu valor de gozo autoerótico. A passagem de uma alíngua à linguagem, isto é, o acesso à oposição mínima de dois significantes necessária à produção de sentido, supõe uma operação discursiva.
“Essa elucubração de saber pode ser vista como a incidência do discurso do mestre sobre alíngua, na perspectiva de sua decomposição, do isolamento de sua unidade elementar, no estabelecimento de suas relações fundamentais e de seu reordenamento numa estrutura de linguagem” (MANDIL, 2010, p.234).
Para pensar então o percurso infantil de alíngua à linguagem, a teoria lacaniana dos discursos torna-se fundamental. Com a formulação dos discursos, Lacan estabeleceu uma conjunção de elementos heterogêneos, isto é, o efeito de significação promovido pela oposição dos significantes S1 e S2 e o efeito da produção de mais de gozo, condensado no objeto a. O objeto a como mais-de-gozar advém da renúncia ao gozo exigida pela inserção do ser falante no discurso.
A Clínica Do Objeto E O Laço Social
Diante das transformações provenientes da inexistência do Outro da ascensão do objeto a ao zênite na civilização, Éric Laurent explica, no artigo “O objeto a pivô da experiência analítica” (2007), que o tratamento pelo objeto a pode ser uma via de abertura ao campo do Outro, ali onde o sujeito goza do autismo de seu sintoma. Ele defende que, a partir do objeto de gozo, a exemplo do que é a droga para o toxicômano, possa-se refazer o laço com o Outro. O objeto anal, na contemporaneidade, por exemplo, poderia vincular o sujeito ao Outro, ao promover a paixão pelas acumulações, fusões e aquisições financeiras, embora sempre à beira de uma ruptura, quebra ou crise. Com relação ao olhar, é a paixão para ver tudo que vem sendo explorada insistentemente, inclusive pela mídia.
No artigo “Uma clínica do objeto a em instituição” (2011), Rabanel define dois movimentos civilizatórios, dois modos de inserção social, a saber, por meio do Outro e por meio do gozo. A inserção social por meio do Outro depende das interdições, limites, normas, prescrições e aprendizagens, o que restringe bastante as chances de laço para o psicótico, sobretudo, o autista. Mas, por meio do objeto, seja a voz ou o olhar, por exemplo, alcança-se alguma inserção do sujeito, a partir de suas invenções.
A partir do Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, a noção de discurso e de mais-de-gozar implica diretamente a pulsão em sua função de laço social.
“É um modo de, com o objeto, re-inscrever esse sujeito, supostamente separado de tudo, em um discurso […] este gozo também reúne o sujeito com o Outro. Ele não é só separação como exclusão, e sim um lugar êxtimo deste gozo no Outro” (LAURENT, 2007, p.115).
Longe de ser algo que só destrói os laços sociais, que significa uma ameaça para esse laço, pode ser, precisamente, o laço social que resta. A psicanálise pode então sustentar uma clínica do objeto visando à extração do excedente de gozo inclusive na psicose infantil. Trata-se de localizar o gozo fora do corpo por meio de intervenções voltadas para uma redução do gozo, sem a qual não há laço social possível.
Do lado do efeito de significação, os discursos promovem a falta-a-ser e a identificação do sujeito, sustentam a comunicação e o endereçamento ao Outro. Do lado do efeito de produção, os discursos localizam o ser do sujeito, um efeito de real e de gozo, que não comunica nem endereça nada ao Outro. Segundo a leitura de Miller (2009), por incluir no discurso os quatro elementos articulados, $, a, S1, S2, num sistema de quatro lugares, Lacan obtém a essência da estrutura clínica em psicanálise, para além de uma mera classificação, pois faz valer o acréscimo da causa às classes. O falasser, ser falado falante, é o conjunto dessa articulação e, por isso, adquire uma densidade especial.
O discurso visa a distinguir os elementos de alíngua, S1 e S2, estabelecer relações, articulações e fundar laços sociais. O significante, que se define apenas como uma diferença em relação a outro significante, é extraído de alíngua a partir da introdução da diferença enquanto tal pela operação do traço unário. Há estrutura de linguagem, propriamente dita, quando o S1 se articula a S2. Há, portanto, um real prévio à estrutura, definido como matéria de estrutura, fora do sentido.
“O último ensino de Lacan começa com essa clivagem entre a estrutura e os elementos prévios de acaso, os quais ela encaixa e significa. A prática da psicanálise ganha então outra ênfase. Trata-se de reconduzir a trama de destino do sujeito da estrutura aos elementos primordiais, fora de articulação — ou seja, fora do sentido e, por serem absolutamente separados, podemos dizê-los ‘absolutos’ — reconduzir o sujeito aos elementos absolutos de sua existência contingente” (MILLER, 2009, p.28).
A estrutura quer dizer efeito de sentido e produção de mais de gozo, ou seja, é a estrutura do discurso. O laço social requer a relação com os significantes S1-S2 com produção de a, cuja resposta é o sujeito barrado. Antes que o par ordenado dos significantes inscreva o sujeito num discurso, o falasser está alienado a um gozo prévio que não se articula com a linguagem como um sistema de significantes. “Esse ser prévio é um ser de gozo, quer dizer, um corpo afetado de gozo” (MILLER, 2000, p.98). A incidência traumática de alíngua sobre o corpo instala o enigma do gozo, que poderá ser submetido ao seu regime paterno, no caso da neurose.
Numa análise, mediante a associação livre, o sujeito faz emergirem de sua narração sobre o que lhe acontece os axiomas que tecem a trama do sentido de sua existência, transformando a contingência em articulação. Um S1, ao acaso, articula-se com um S2, e se produz um efeito de sentido articulado, organizando os elementos do acaso que precedem a estrutura.
Os discursos estruturam modos diferentes de conjunção e disjunção das palavras e dos corpos. A condição maior da montagem de um discurso é uma perda, ou seja, a exclusão do gozo. De uma parte, encontra-se a antinomia entre o discurso e o gozo, delimitando a exterioridade absoluta do gozo em relação ao campo discursivo e, de outra parte, uma recuperação do gozo por meio da função do mais-de-gozar no discurso. A teoria dos discursos conta, portanto, com a solidariedade e não com a incompatibilidade do significante e do gozo. O gozo não contraria a ordem simbólica, mas supõe sua incorporação e o seu funcionamento. A prova maior de que o gozo não contraria o simbólico e que, ao contrário, se imiscui nele está no próprio processo civilizatório.
Cada um dos quatro discursos, a saber, o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista, busca recuperar algo do gozo do corpo que foi exilado sob a forma do mais-de-gozar. Os quatro discursos consistem em quatro aparelhos de tratamento do real do gozo por meio dos laços sociais. Os laços sociais escritos pelos discursos são articulados a partir do real como impossível de ser escrito, tributário da pulsão de morte e irredutível ao simbólico. Enquanto laços sociais, os discursos fazem conexões entre dois campos, o campo do sujeito e o do Outro. Cada discurso implica um modo típico de tratamento do gozo.
O ponto de inserção do aparelho significante é, portanto, o gozo. O paradigma do gozo discursivo não supõe uma lógica autônoma do significante, independentemente dos corpos, nem é transcendente ao corpo, mas, ao contrário, implica o corpo. O corpo é uma das condições de gozo, um corpo afetado pelo inconsciente, cujo gozo satisfaz a uma pulsão. O gozo implica a vertente da repetição que não conhece limite, senão a consumação do próprio organismo. A introdução de um modo de gozo estranho à sobrevivência do organismo e ao saber natural e instintivo do corpo torna esse gozo equivalente à pulsão de morte.
O campo do sujeito, no discurso do mestre, é regido pelo falo, que é também um dos nomes do S1, visto que esse significante determina a castração. O campo do Outro é ocupado pelo saber e pelo objeto mais-de-gozar. A fantasia comporta algo da vida, do corpo vivo e libidinal, por meio da inserção do pequeno a enquanto imagem de gozo capturada no simbólico. Sem o recurso de um discurso estabelecido, o sujeito não tem como levar em conta o lugar de objeto indizível que é ele mesmo e dar um tratamento a esse objeto pelo enquadramento fantasmático. O discurso do mestre está correlacionado ao discurso da família edípica, que insere a criança na civilização a partir da articulação dos significantes fundamentais, pai e mãe, que representam o sujeito, impõem uma renúncia à pulsão e permitem a localização do ser de gozo numa fantasia.
Quando uma criança é socializada e entra no discurso, ela apreende muito cedo a norma civilizatória que regula a sua relação com o corpo, ao internalizar a lei do pai, as regras do convívio social. “Ao tomar a palavra nesse discurso estabelecido, o sujeito recebe uma forma de regulação do vivo que agita seu ser, que Lacan nomeava falasser” (LACADÉE, 2009, p.1). Mas nem tudo da dimensão do vivo é regulado pelo discurso do mestre. Assim demonstra o Pequeno Hans, criança que se vê tomada pela angústia diante de um órgão, o fálico, que escapava à captura do corpo pelo discurso do mestre. A inscrição do sujeito no discurso leva em conta o lugar do objeto indizível que é ele mesmo. O significante do Nome-do-Pai tem efeitos de significação fálica, isto é, dar sentido e orientação à falta, em face do enigma do desejo do Outro. De início, o sujeito localiza uma parte de seu gozo nessa falta, separando-se e inscrevendo-se na linguagem que vem aparelhar o gozo em excesso.
Noutro texto, Há um final de análise para as crianças (1999), Éric Laurent já discutia a formalização da psicanálise com crianças e a direção da cura do ponto de vista da teoria fálica de Lacan e da teoria do objeto a. À medida que a promoção do objeto a como real se faz insistente, surge a crítica à referência exclusivamente edipiana na análise de crianças. A questão subjacente a essa crítica é a de que o aporte psicanalítico sobre o gozo, segundo a estrutura edipiana, demonstra-se insuficiente para o tratamento do gozo, na época do declínio social da imago paterna. Há outro artigo mais recente de Laurent, “A análise de crianças e a paixão familiar” (2010), em que ele ratifica essa contribuição anterior ao definir o que é a análise de criança. “Ela é a exploração dos circuitos pulsionais graças a esse objeto transicional fálico e também, mais além, a exploração do que é a versão cada vez mais particular de como funcionou a articulação entre o objeto pulsional e o falo” (LAURENT, 2010, p.31). Laurent nos indica então que o matema a/- se torna precioso para nossa investigação. Ele acrescenta que
“[…] analisar seria poder, ao mesmo tempo, articular estes dois planos: o plano da relação com a significação fálica e o da criança como objeto da fantasia da mãe. Analisar uma criança, então, é poder, com ela, extrair a história do que foi sua relação com essas duas classes de objetos, por meio da família, pai e mãe” (LAURENT, 2010, p. 32).
Essa definição abre uma série de possibilidades de investigação, a saber, as variedades clínicas derivadas das articulações e desarticulações de a e -. Proponho algumas perguntas: 1) quais os impasses contemporâneos para essa articulação? 2) como o corpo da pulsão é tomado nessa articulação? 3) o que se passa na neurose infantil e na psicose infantil a propósito desses elementos estruturantes do laço social? 4) o que a angústia revela sobre o objeto e o falo? 5) como as ficções familiares podem tratar esses elementos?