MÁRCIA MEZÊNCIO
Legítima Defesa?
Não por acaso, um significante chamou-me a atenção no trabalho de Mariana. Não será difícil adivinhá-lo: trata-se do significante “defesa”. Ela o traz para apresentar, via trocadilho, a questão que, para ela, constituiu o impasse que a levou ao Ateliê de Psicanálise Aplicada: como fazer a defesa do sujeito e do singular, atuando sob a égide do discurso do universal no espaço de uma política de defesa social? Como fazê-lo sem fazer da psicanálise um ideal, um S1 na direção de uma instituição do aparelho regulador do Estado? Como se utilizar das ferramentas da psicanálise nesse dispositivo de controle social?
No dicionário Aurélio, encontrei 14 significados para a palavra defesa, abrangendo suas acepções na linguagem comum, na linguagem jurídica, na psicologia, na tipografia, no futebol… Registra-se também um uso específico no Brasil, que remete ao “jeitinho brasileiro”: “proveito que habilmente se tira de algo, arranjo, cavação” (FERREIRA, 1975, p.426). E ainda: ato de defender: socorro, auxílio; aquilo que serve para defender: arma de defesa; ato ou forma de repelir um ataque; resistência; contestação de uma acusação; justificação, alegação; resguardo, proteção; impedimento, interdição… enfim, um vasto campo semântico. Em seu sentido brasileiro, ressoa a incorporação de uma prática utilitarista. Retenhamos essa concepção utilitarista, que nos pode orientar ainda sobre a proposta de uma “defesa” social, orientada pelos paradigmas do controle e avaliação, pelo funcionamento das normas e consequente segregação do sujeito.
A partir do significante defesa, no campo da psicanálise, podemos derivar: mecanismos de defesa, a ideia de que as estruturas clínicas se apresentam como defesas contra o real, o ato analítico como uma forma de perturbar a defesa, a proposta de se pensar a transferência na psicose pela vertente do analista como defesa (ou como ajuda) contra o Édipo. Não se trata de uma lista exaustiva, pensei apenas em levantar algumas indicações e direções possíveis para uma pesquisa sobre o tema.
Assim, percebe-se em Freud um longo percurso desde a introdução do termo defesa, em 1894, em “As neuropsicoses de defesa”, confundido com ou equivalente ao recalque, até a precisão do conceito de defesa como proteção do eu contra as exigências pulsionais, em “Inibição, sintoma e angústia”, em 1926. Proposição que permite uma aproximação da proposta de Miller (1996) de pensar as estruturas clínicas como diferentes modos de defesa contra o real do gozo.
Também no seminário “A experiência do real na experiência analítica”, de 1998-1999, Miller (2003) afirma que a defesa qualifica, de maneira eletiva, a relação subjetiva com o real. Ele remete ao Seminário 7, de Lacan, em que este afirma que a defesa qualifica a relação inaugural do sujeito com o real. A prática analítica, que se apoia na palavra, isola o real, ainda que o analista se confronte com um vacúolo de real, em inclusão interna à sua prática. Miller discute as relações entre Real e semblante e a correspondência dessas categorias com as noções de defesa e recalque e faz alguns esclarecimentos importantes:
– A defesa não recai sobre um significante.
– Resistência não é defesa. Se, para os pós-freudianos, a resistência é tida como conceito global, que inclui defesa e recalque, Lacan, em “Variantes do tratamento-padrão”, afirma que a resistência está relacionada ao recalque e não à defesa. Referida à cadeia do discurso, a resistência faz obstáculo à emergência da verdade. Os analistas pós-freudianos acreditavam poder interpretá-la. Em paralelo à interpretação de sentido, que busca vacilar o sentido do enunciado, também se pode interpretar a resistência, quando não há o enunciado do sujeito, com o objetivo de extraí-lo. Mas o registro é ainda o simbólico.
– Defesa não se interpreta. Para Freud, qualifica uma relação com a pulsão para a qual não se indica a interpretação.
Assinalo que a relação ao real é o ponto de convergência da noção de defesa que privilegiaremos, seguindo Freud, Lacan e Miller. A orientação de perturbar a defesa não indica a interpretação. Miller, em sua intervenção de encerramento do VIII Congresso da AMP, reafirma essa indicação de Lacan.
“No século XXI, a psicanálise deve seguir outra via: a da defesa contra o real sem lei e sem sentido. Lacan nos indica a via do real, assim como Freud fez com o conceito mítico da pulsão. O inconsciente lacaniano, do último Lacan, está no nível do real, digamos para simplificar: ‘sob’ o inconsciente freudiano. Para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se centrar na maneira de incomodar a defesa, de desregrá-la contra o real” (MILLER, 2012).
Observe-se que o caráter da defesa aqui colocado apresenta-se em vertente negativa: uma defesa “contra”. O que propõe Mariana segue uma orientação contrária: ela fala de defesa, tal como nos processos jurídicos (o que é apropriado ao contexto das medidas socioeducativas), como falar a favor, posicionar-se do lado do sujeito. No dicionário (1975, p.426), encontramos essa definição: “Pessoa que, em juízo, patrocina outra”, e ainda uma última acepção, que também remete ao campo jurídico: “Legítima defesa — o emprego dos meios necessários para resistir à força ou agressão, sem que ultrapassem os limites da razão ou da justiça natural”.
Registremos, ainda, que, “na era do direito ao gozo”, observa-se o incremento dos movimentos de defesa dos direitos, sejam os das minorias segregadas, das comunidades de gozo, dos consumidores…
O Contexto: A Psicanálise Aplicada
Laurent (2011, p.45), em “O delírio de normalidade”, afirma que os psicanalistas “somos os últimos a falar do um por um”, ainda que, ou, talvez, mesmo em decorrência de uma expansão do discurso democrático e de uma ampliação inusitada da psicanálise aplicada. Ele coloca em questão esse sucesso, na medida em que implicou um “falar a língua do Outro” que ele chama de uma tentativa de sedução do discurso do mestre, num contexto em que era necessário lembrar a força e a utilidade social da psicanálise. Estavam, então, em questão a regulamentação da psicanálise e os protocolos avaliativos. Curiosamente, ao final desse artigo, apresenta também uma ideia de defesa — a ideia de que devemos nos defender do delírio de normalidade e de que devemos fazê-lo pelo esforço constante de mostrar que a saúde mental, o laço social e a psicopatologia não existem. É necessário saber disso para que nos aproximemos do sintoma como Real, ele afirma.
Parece-me que se trata de considerar o “esforço de cada sujeito para tratar do seu sintoma e do acolhimento que lhe damos em instituições que, sem nossa presença, teriam a tendência a tratá-lo como categoria” (LAURENT, 2011, p.45). É nesse ponto que me parece importante discutir (ou seria afirmar?) a pertinência da presença dos psicanalistas nessas instituições. Discussão que é o fio do trabalho apresentado por Mariana, que poderíamos formular pelas questões seguintes: De que forma pode-se pensar a psicanálise no espaço de execução de medidas socioeducativas? E, particularmente, no caso de sua localização no campo de uma política de defesa social? Ou seja, uma política que responde aos protocolos da gestão e da ordem e aos paradigmas contemporâneos de avaliação e controle e de problema-solução. A defesa social incorpora esse viés do controle, via segregação.
Resta verificar a acepção do significante defesa nesse contexto, aqui, em substituição aos significantes “segurança”, “repressão”, “justiça”. Vivemos sob o imperativo do politicamente correto. Ressonâncias da equivalência recalque-defesa com as quais Freud se embaraçou a princípio, até discernir o campo do recalque como o que concerne ao inconsciente e o da defesa concernindo ao real do gozo, do indizível e intraduzível, não interpretável.
A contribuição da psicanálise localiza-se mais além das classificações, que apontam para a irresponsabilidade do sujeito e, portanto, para sua segregação. A estratégia da psicanálise é de resistência ao controle social, “deslocando-se a ênfase do ideal da instituição para o real em jogo para cada sujeito”, como nos assinalou Elisa Alvarenga na abertura dos trabalhos do Núcleo no ano passado. Segundo ela, na relação da psicanálise com a instituição, não se trata de perguntar qual o lugar da psicanálise, mas que sujeitos, pacientes e praticantes, podem beneficiar-se dela para orientar seu tratamento ou sua prática (ALVARENGA, 2011).
A questão da responsabilidade me parece localizar um ponto de convergência/divergência entre o discurso jurídico e o discurso analítico. Ponto onde a “defesa” do sujeito pode-se assentar, na medida em que a responsabilidade somente pode ser remetida a um sujeito, ela não é anônima. Lembremos mais uma vez o dito de Lacan: “De nossa posição de sujeitos somos sempre responsáveis.”
Toda intervenção analítica no campo jurídico requer uma operação na qual o sujeito seja extraído do campo social. A sociedade é anônima, mas, para a psicanálise, o social não é anônimo. “A psicanálise como procedimento é uma experiência que opera sobre um sujeito e só a partir de respeitar essa singularidade pode-se esperar uma ação no social” (GREISER, 2009, p.11). Trata-se de uma nomeação não referida a uma classificação.
A subjetividade muda com as mudanças de época, mas o mal-estar em si mesmo é o irredutível que atravessa épocas e lugares e organizações sociais. Esse irredutível é a pulsão de morte e, como tal, impossível de educar ou interpretar. Não entra nas trocas sociais. A pulsão é associal, já o inconsciente é político, pois implica o laço do sujeito ao Outro, dado pelas ofertas identificatórias que variam segundo as sociedades e épocas. Ainda que a pulsão seja associal e ineducável, cada sociedade e cada época dão acolhimento diferente ao gozo. O discurso jurídico é uma forma pela qual esse acolhimento se apresenta. É o que Laurent explicita, de alguma forma, ao dizer que o mestre pós ou hipermoderno integrou as formas de contestações em seu próprio discurso. Ou que o discurso do poder inclui todos os discursos críticos ao exercício do poder. É o que se verifica no campo socioeducativo, por exemplo, com a passagem da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral. Situação também da psicanálise aplicada em relação ao discurso do mestre: passamos de uma definição da terapêutica como um saber clínico para a definição de normas sociais — protocolos. Então, tem-se uma passagem da psicanálise aplicada (à terapêutica) à psicanálise aplicada às novas normas do ideal.
O contexto histórico no Brasil delineia a relação da psicanálise aplicada com as novas normas e ideais, colocados a partir da redemocratização do país. Vemos o enorme sucesso e a extensão do discurso psicanalítico aplicado e adaptado às novas normas do discurso do mestre. A questão que se colocam Miller e Laurent é a de saber se, em nossa tentativa de seduzir o mestre, não sucumbimos à sedução desse mesmo mestre e de seus novos ideais. A resposta deles é positiva e a conclusão é a de que se deve refletir e tomar medidas sobre isso. Colocam como proposta: fazer usos dos semblantes como resposta, ou seja, de discursos que fazem semblante de laço social. Remetem à afirmação de Lacan no seminário Ou pior…, de que só há laço social no discurso, quer dizer, que não há um laço social. Significa fazer uso dos discursos sem perder-se neles, mantendo a diferença própria ao discurso analítico.
Brousse (2007) propõe três pontos de ancoragem para evitar que o discurso analítico se dissolva nos discursos dominantes, tendo de responder a imperativos em contradição com seu discurso. Para estar nas instituições socioeducativas e permanecer no discurso da psicanálise, a resposta não pode ser a denegação, tampouco a colaboração. Os três pontos são os elementos operatórios do tratamento analítico, que ela denomina de os três S do matema da transferência — Sujeito-Suposto-Saber — e os apresenta como segue:
– S barrado: Sujeito dividido entre efeito de significantes e objeto de gozo desse Outro do significante. O sintoma não é social, ainda que seja uma forma de socialização, é do sujeito e nomeado pelo Outro. Manter a barra sobre o sujeito implica não abordá-lo a partir dos significantes segregatórios ou categorias que servem ao patrulhamento do gozo, mas abordá-lo a partir de sua própria fala.
– Suposição: Diz respeito ao estatuto do Outro (que não existe) em psicanálise, que é uma ficção, um semblante. A ética do discurso analítico se assenta no matema A barrado e tem como consequência a recusa do serviço dos bens, do Bem soberano, das boas intenções.
– Saber não é referencial, é textual. O saber a ser obtido, em psicanálise, é um texto de letras, que não quer dizer nada em particular, mas deve constituir, através da linguagem das fórmulas matemáticas ou do tratamento do sentido pela poesia ou pelo chiste, uma forma de ordenação e de acesso ao real.
Mantê-los, os três S, como referência, é a forma pela qual a psicanálise pode objetar ao tratamento do sujeito pela foraclusão produzido pelo discurso do mestre moderno e levar o sujeito à destituição de seu lugar de objeto. Assim, se, como propõe Laurent, o laço social não existe, a psicanálise opera através de um laço inédito — transferencial — que introduz a possibilidade de o sujeito se apresentar, destituído do véu de um significante-mestre e do lugar de objeto de um gozo do Outro.
Contra-Sociedade
A presença da psicanálise, nesse dispositivo regido pelo imperativo do bem-estar e inclusão, deve apontar para o tratamento do gozo singular e das incidências da intervenção da norma jurídica sobre o sujeito. Se a lei e a política pública se regem pelo universal, para o psicanalista, interessam o modo singular que cada um tem de subjetivar essa lei e a relação com o que para ele funciona como interdição, como limite ao gozo (como defesa?).
Tomarei a afirmação — “A medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização” — que pode ser lida reiteradas vezes nos “Termos de Audiência” e que resume, a meu ver, uma série de fundamentos políticos/filosóficos de ordenamentos legais e normativos. Essa medida é, pois, uma sanção. Ela só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente, mas considera a “condição peculiar de desenvolvimento” e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato através da “socioeducação” e da “inclusão social”. Em resumo, trata-se da responsabilização do adolescente pelo ato cometido — através de uma pena privada da finalidade de castigo — e da sociedade — pela garantia dos direitos de cidadania do mesmo. Registro aqui que existem aqueles, mesmo fora do campo do discurso analítico, que discordam dessa concepção e articulam o direito à punição como condição da responsabilidade e da cidadania.
Para o analista, a questão é operar a partir da ética da psicanálise, não respondendo com a normatização do gozo — uma medida para todos — mas valendo-se da orientação da “medida” dada pela satisfação de cada um, fazendo do dispositivo ofertado pelo Outro social, que responde a uma ordem baseada no controle coletivo e na gestão, um lugar para o acolhimento da verdade singular, possibilitando ao sujeito responsabilizar-se pelo seu gozo.
O primeiro desafio é a questão da demanda, pois o que se apresenta é o sintoma social, e o demandante é o juiz. É necessário criar uma demanda a partir de uma oferta paradoxal e da condição de obrigatoriedade da sanção e daí extrair a singularidade do sujeito. Ou seja, estabelecer para cada caso o estatuto do ato e a relação de cada sujeito com a lei, de que forma se articulam o Outro, a culpa e a responsabilidade. Fazer da responsabilidade penal a condição da responsabilidade subjetiva. Recebemos sujeitos que não se enquadram na norma vigente, mas que podem encontrar acolhimento em um laço social inédito criado pela psicanálise, o laço transferencial. A posição do analista não é a de prover assistência e direitos, nem a defesa e restauração do tecido e da paz social, mas a de ofertar um lugar de escuta que ultrapasse o tratamento do sintoma social e caminhe no sentido de tratar o sintoma do sujeito, franqueando, para além dos efeitos terapêuticos — a dita ressocialização — efeitos propriamente analíticos ou efeitos do inconsciente. Segundo Miller (2008), um analista não pode funcionar se não estiver em conexão direta com o social, o que, para ele, significa dizer que a extraterritorialidade é um devaneio ou uma ironia de Lacan, pois a conexão com o inconsciente tem relação com a reconexão com o discurso do Outro.
A questão que nos ocupa, diante de uma demanda de intervenção nos dispositivos jurídicos, centros de assistência, centros socioeducativos, prisões, é: como deve responder o psicanalista? Deve ter em mente que não se trata de responder com o discurso do Outro, mas fazer uso dessas demandas e responder com suas próprias ferramentas, que não são as dos juízes, dos assistentes sociais, dos educadores.
“Fazer do sintoma social um laço social, sabendo que o laço social supõe sempre a particularidade do um por um. Por isso, Jacques-Alain Miller define a posição do analista como contra-sociedade, que não quer dizer colocar-se contra a sociedade, mas colocar-se na posição de extimidade, exclusão interna, que produz o discurso analítico que como tal é o avesso do discurso do mestre massificante” (GREISER, 2009, p.48).
É nesse sentido que Brousse (2007, p.23) cita Lacan em “A terceira”: a sobrevivência da psicanálise “depende de o real insistir. Para isso, é necessário que a psicanálise fracasse” — ela completa e esclarece — a psicanálise deve fracassar, justamente, em satisfazer a demanda do mestre moderno.