RODRIGO ALMEIDA
Psicanalista, psicólogo, mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG
romabh2003@yahoo.com.br
Resumo: O presente trabalho propõe uma articulação entre alguns pontos dos “discursos de gênero” e suas teorias no que eles se contrapõem à psicanálise, examinando de forma breve o discurso da psicanálise, sua prática e seu lugar no social. Posto isso, interrogamos de que maneira o debate com as teorias de gênero pode contribuir para os psicanalistas na leitura da subjetividade de sua época.
Palavras-chave: Gênero; queer; discurso; sexuação; falasser.
Gender discourses and psychoanalysis: possible interlocutions
Abstract: This paper discusses some aspects of “gender discourses” and their theories in what they counterpose to psychoanalysis by briefly reviewing the discourse of psychoanalysis, its practice and place in the social sphere. With that said, we interrogate how the debate with gender theories can contribute to psychoanalysts in reading the subjectivity of their time.
Keywords: Gender; queer; discourse; sexuation; parlêtre.
Em nossa condição de seres falantes e sexuados, chegamos ao mundo onde diversos discursos nos precedem antes mesmo de nosso nascimento. Somos atravessados pelo real e pelo encontro sempre traumático com o sexual. Lacan (1977, inédito, tradução nossa), mais ao final de seu ensino, afirma que “o sexo é um dizer”. Para além do falo, o ser sexuado pode ser lido em termos de sexuação, portanto, o que vamos levar em conta é a posição de gozo do sujeito.
O discurso psicanalítico demonstra seu alcance como “um instrumento poderoso” (LAURENT, 2016, p. 219) para questionar tanto outros discursos quanto os corpos e seus modos de gozo. O conceito de falasser, ao incluir o corpo e, por extensão, a noção de inconsciente político, possibilita interrogar a relação do sujeito com o discurso. Seguindo com Laurent (2016, p. 213), “O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado”. Há assim uma dimensão coletiva, que surge em suas nomeações e desencontros, em que a subjetividade individual é marcada pela época em que se inscreve. Nas palavras de Brousse (2018, p. 137), “Trata-se de considerar os falasseres como solidões numerosas e irremediáveis, que fazem série e não grupo. A experiência analítica nos cura do Nós, ao preço de uma perda do sentido, frequentemente gozoso”. Podemos afirmar que a psicanálise, ao levar em conta o real e o gozo, ao ler a subjetividade de sua época, vai mais além dos discursos vigentes. Com relação aos discursos de gênero, o que ela teria a dizer?
Diante dessa questão, vale ressaltar que qualquer ideia de normatização da sexualidade não está presente na psicanálise de orientação lacaniana, pois ela opera para além dos gêneros com os quais o falasser possa se identificar. Constatamos, hoje, a propagação dos discursos de gênero abarcada pelas chamadas teorias queer, que se propõem a reorganizar o discurso sexual, interrogando outros saberes e a sociedade, que aparecem como reguladores de corpos e de sua vivência da sexualidade e identidades. Importante salientar que o que chamamos aqui de discurso de gênero tem relação com os enunciados que governam e norteiam momentos históricos específicos, e a noção de discurso fundamenta-se em conceitos foucaultianos. Conforme Salih (2009, p. 69), “Foucault está interessado particularmente na posição de sujeitos pressupostas pelos enunciados e no modo como os sujeitos são discursivamente constituídos”.
Com a disseminação de tais discursos, a psicanálise se viu convocada a revisitar as elaborações lacanianas sobre a diferença sexual, colocando em relevo a tábua da sexuação, o não-todo e a conjugação do corpo com o gozo, confrontando-se, assim, com o lugar privilegiado de saber sobre a sexualidade. Nos últimos anos, foi possível observar que a psicanálise foi alvo de diversos posicionamentos contrários ao seu discurso teórico, e até mesmo à sua ética. Desse modo, julgamos relevante abordar alguns pontos sobre o “discurso de gênero” e suas teorias, tentando localizar pontos de diálogo para o debate e que podem nos interessar enquanto praticantes da psicanálise.
Nessa interlocução de saberes proposta pelas teorias de gênero, a psicanálise está presente como instrumento de leitura e diálogo com seus teóricos. A partir da insurgência de um debate, a psicanálise se vê convocada não só a responder, como também a marcar seu posicionamento diante do contemporâneo, norteado por sua ética e sua política. Cada vez mais a prática clínica se vê interrogada por aqueles que buscam uma análise, seja, inicialmente, para um acompanhamento em um processo de transição — no caso de sujeitos trans —, seja para aqueles que se interrogam sobre as mudanças advindas pela diversidade sexual diante de suas escolhas e do outro do laço social.
Na obra Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade, vista por muitos como referência para os estudos queer, Judith Butler afirma, num primeiro momento de suas formulações, que a teoria feminista presume a existência de uma identidade definida e que a “(…) concepção dominante da relação entre teoria feminista e política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis e permanentes” (BUTLER, 2020, p. 18). A filósofa — que hoje se identifica como gênero não binário e que atualmente propõe pensar as questões de gênero a partir da ideia de decolonização e racismo —, em seus primeiros estudos, demonstrava a complexidade de presumir certa identidade fixa e a impossibilidade de conjecturar um feminino universal. Butler afirma que várias pessoas não se identificam ou não se veem representadas pelo feminismo. Esse movimento pode ser notado também em outros grupos minoritários, como o de gays e de lésbicas. Há dissidências dentro dos próprios grupos; a vivência da sexualidade é diferente para cada sujeito e as ideias se movimentam, o que leva a distintas noções de identidade. Poderíamos dizer que, para Butler, o queer origina-se de uma ruptura com o que se estabelece enquanto norma na construção de uma identidade. A autora vai propor que as identidades se constroem a partir de um corpo social e se conecta à ideia de performance e performatividade na elaboração de sua teoria sobre o gênero. Butler faz uma interface com a psicanálise, o estruturalismo e a genealogia foucaultiana em suas formulações.
Em relação à psicanálise, ela vai interrogar, a princípio, se não seria a psicanálise mais um saber, entre outros, que propõe uma leitura das identidades com base em uma matriz heterossexual e que funciona a favor de uma hierarquia já estabelecida em relação ao gênero. Vale ressaltar que o conceito de gênero ordena um conjunto interdisciplinar de saberes, devido à sua complexidade. Para Butler (2020, p. 27), “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscriçãocultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos”. Tanto o queer quanto as teorias de gênero trazem em sua origem a semente da recusa a um enquadramento, levando-se em consideração resistir à possibilidade de domesticação acadêmica.
Rafael Leopoldo (2020), em seu livro Cartografia do pensamento queer, esclarece sobre a palavra inglesa queer: inicialmente, sua acepção era de insulto e nomeava o estranho e bizarro, estando fora do que se nomeava como normal. Um fora de lugar, nem lá nem cá, nem isso nem aquilo, simplesmente queer. Esses corpos excluídos e marcados, muitas vezes, de forma violenta, rechaçados do social e do espaço público, apropriam-se do termo e fazem dele outro uso, um uso como ferramenta de ruptura frente à normalizaçãoda sociedade. De acordo com Leopoldo:
“O queer, ante isto, toma outra forma; não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização e normalização. (…) O queer vai questionar esses saberes de forma contundente e propor, a todo momento, que haja dentro desses outros grupos uma mutação” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).
A questão do gênero não é formulada pela psicanálise da mesma forma que para os estudos de gênero, visto que aquilo que a psicanálise entende por homem e mulher em relação ao gênero se difere do que propõem os estudos de gênero. Tomamos aqui uma definição oferecida por Leguil:
“Para a psicanálise, o gênero é da ordem de uma posição subjetiva dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro. (…) Para a psicanálise, o gênero é, antes, aquilo atrás do qual o sujeito corre, tentando, assim, ir ao encontro de alguma coisa de seu ser, sem nunca sê-lo totalmente” (LEGUIL, 2016, p. 40).
Marie-Hélène Brousse (2019) nos diz que o gênero se torna um significante mestre no lugar do sexo; o termo “gênero” vai evitar o equívoco que se apresenta no significante “sexo” em relação ao binário masculino/feminino, introduzindo assim um terceiro termo, o neutro. Parece ser importante a possibilidade de adentrar no debate das questões de gênero e identidade, apoiando-se na ética da psicanálise e para além da noção do discurso do mestre, levantando as modificações que surgem no social e o que dela é possível recolher no discurso dos analisantes.
Se, antes, a diferença sexual e o binarismo homem/mulher serviam de bússola para o sujeito, as questões de identidade e de gênero vêm, de certa maneira, reorganizar o conjunto dos discursos. Brousse (2019, p. 73) ressalta ainda que Lacan, ao final de seu ensino, “mudou a distribuição dos mecanismos de identificação”; há uma destituição do Outro e o sujeito é pensado a partir dos três registros.
Em relação ao falasser, Miller observa: “(…) não se trata mais do sujeito, do sujeito do significante, do sujeito da identificação” (MILLER, 2009, p. 110). Com a ideia do falasser, o Outro não é mais o lugar das identificações; em seu lugar está o corpo, o corpo próprio. Corpo e gozo se conjugam na identidade daquele que fala. Assim, o processo de identificação vai surgir não mais do Outro, mas de Um-corpo, esse corpo que o falasser adora por acreditar que o tem, esse corpo que se conjuga com o gozo.
Recebemos cada vez mais sujeitos que interrogam sobre o gênero e suas identificações, recolhendo assim os efeitos do discurso de gênero na clínica. Se, enquanto analistas, nos orientamos pelo sintoma e o gozo, indo além da ideia de identidade, cabe a nós acolher a forma como o falasser se apresenta, assim, “tomamos a identidade sexual como qualquer outra portada pelo falasser” (FAJNWAKS, 2017, p. 38).
Para Lacan, a existência do inconsciente é inseparável da noção de sexualidade; o inconsciente é o índice do fracasso do biológico e do cultural. Importante salientar que Lacan, ao teorizar sobre a sexualidade, não a coloca em termos de gênero, mas de gozo. Alguns estudiosos do gênero que mantêm uma interlocução com a psicanálise afirmam que Lacan (2008), ao propor as fórmulas da sexuação e ao estabelecer o lado homem e o lado mulher em seu quadro, acaba criando uma padronização das identificações reduzida ao binarismo homem/mulher. De acordo com a leitura de Butler, “(…) a versão lacaniana do sexo e da diferença sexual coloca suas descrições de anatomia e desenvolvimento em um quadro não examinado de heterossexualidade normativa” (BUTLER, 2019, p. 195). Para ela, o que Lacan chama de posições sexuadas se estabelece “relegando as identificações não heterossexuais ao domínio do culturalmente impossível (…)” (BUTLER, 2019, p. 195).
Posto isso, interrogamos se, para os teóricos do gênero, os importantes desdobramentos das formulações lacanianas sobre a sexuação não são levados em conta no embate, visto que o que vai interessar à psicanálise é a posição de gozo do ser falante e o feminino que se localiza em cada falasser. De acordo com Ambra, Silva Jr. e Laufer:
“(…) a aposta lacaniana em localizar a sexuação numa diferença radical que aponta para o real subverteria os apegos imaginários identitários presentes em diversos usos das teorias de gênero. Mais ainda ficariam desarmadas as críticas feministas à centralidade do falo como significante privilegiado da subjetividade, na medida em que tais fórmulas de Lacan apontariam outro domínio da experiência, não todo marcado pela castração” (AMBRA; SILVA JR; LAUFER; 2019, p. 3).
Lacan, em “Les non-dupes errent”, propõe o aforismo: “O ser sexuado se autoriza de si mesmo e de alguns outros” (tradução nossa). Essa sentença que reverbera entre os psicanalistas não reduz a ideia da escolha para o ser sexuado. A questão simbólica imposta pelo binarismo homem/mulher permite também avançar teoricamente a partir das fórmulas da sexuação. Nas palavras de Lacan:
“(…) o ser sexual se autoriza de si mesmo. É nesse sentido que… que ele tem a ‘escolha’. Quero dizer que isto a que a gente ‘se limita’ enfim para classificar como ‘masculino’ ou ‘feminino’ no registro civil… enfim, isso… Isso não impede que haja escolha. (…) Ele não se autoriza senão por ele mesmo e eu acrescentaria: e por alguns outros.” (LACAN 1973, aula de 9/2/1974).
Fajnwaks (2020) nos diz ser importante interrogar quem são esses alguns outros, pois não se trata mais do grande Outro, mas do outro do imaginário. É importante ressaltar que, mesmo que Lacan proponha suas fórmulas da sexuação a partir do binarismo e evocando a ordem simbólica, ele inclui a dimensão do imaginário. Alguns outros fazem parte da escolha e da ideia de reconhecimento que o sujeito busca em suas identificações. Nesse percurso de leitura, aventamos a hipótese de que o discurso de gênero objetiva o Um da identidade ofertado pelo discurso do mestre contemporâneo. Nas palavras de Musachi “(…) nessa tentativa se opera um certo ‘empuxo’ ao Um da identidade, o que produz uma suspensão em relação às identidades” (MUSACHI, 2020, n/p, tradução nossa). Ao tomarmos como referência a orientação lacaniana, a partir das fórmulas quânticas da sexuação, temos uma leitura da sexualidade em que não se trata de universalizar, mas de singularizar o gozo, considerando o encontro de um real com lalíngua, que habita o falasser e determina suas identificações.
Se, para alguns teóricos, a questão do gênero concerne apenas à performatividade, a psicanálise não se limita a apenas uma questão de semblantes, mas busca interrogar as mutações no sexual, a partir do desacordo entre os lados feminino e masculino da sexuação. A psicanálise, ao se apropriar do aforismo lacaniano de “que não há relação sexual” (LACAN, 2008, p. 19), não trata as questões contemporâneas concernentes ao gênero como uma simples aparelhagem dos semblantes sem relação com o gozo. Em nossa clínica, recebemos sujeitos que se dizem trans e que colocam em xeque a construção de uma identidade. Para a psicanálise, diferentemente do que propõem algumas teorias de gênero, não há um unarismo do gozo no acolhimento da diversidade sexual. Para ela, a sexualidade é diversa em relação às soluções únicas que o próprio sujeito encontra para lidar com o gozo.
Enquanto praticantes, sabemos que a diferença sexual não se inscreve no inconsciente, mas é na relação com o inconsciente que o sujeito situa sua vida sexual numa outra cena, não se limitando, assim, à questão da anatomia e das normas sociais. Em tempo, parece importante não cairmos na idealização da psicanálise como absoluta, que tudo pode enunciar — vale lembrar que tanto Freud quanto Lacan se valeram de outros saberes diante daquilo que a prática clínica de sua época lhes interrogava. Assim, não devemos nos eximir de nossa responsabilidade ética e política diante da alteridade nem dos fenômenos contemporâneos.