RODRIGO ALMEIDA
RODRIGO ALMEIDA- GUSTAV KLIMT
O tema do masoquismo aparece na obra de Freud em sua elaboração sobre as perversões, na fundamentação da criança perverso-polimorfa e, posteriormente, em relação aos sintomas neuróticos, em que sadismo e masoquismo só devem ser considerados patologias em casos extremos.
Na elaboração da teoria das pulsões, Freud afirma que as pulsões de autoconservação são também pulsões sexuais. Em “As pulsões e seus destinos” (1914), aponta os quatro destinos da pulsão: reversão a seu oposto, retorno ao próprio eu, recalcamento e sublimação. Detendo-se aos dois primeiros, no retorno ao próprio eu, Freud propõe que o sadismo é anterior ao masoquismo e que o masoquismo é um sadismo contra a própria pessoa.
“A observação analítica realmente não nos deixa duvidar de que o masoquista partilha da fruição do assalto a que é submetido e de que o exibicionista partilha da fruição de sua exibição. (…) não podemos deixar de observar, contudo, que nesses exemplos o retorno em direção ao eu do indivíduo e a transformação da atividade em passividade convergem ou coincidem.” (FREUD, 1914, p. 132)
Notamos, nesse momento de sua construção teórica, que o masoquismo encontra satisfação sexual no sadismo. A mudança da atividade para a passividade faz parte do mecanismo pelo qual a pulsão busca a satisfação.
No texto “Uma criança é espancada” (1919), Freud busca esclarecer sobre o masoquismo e faz uma leitura das perversões, argumentando que as fantasias sádicas ou masoquistas podem estar presentes nas neuroses, em que algo de um traço perverso permaneceu. A primeira fase, representada pela frase “meu pai está batendo na criança que eu odeio”, acontece em um período muito precoce, em que o sadismo ou o masoquismo não se define muito bem, visto que aquele que cria a fantasia não é o mesmo que espanca; a segunda, “estou sendo espancada pelo meu pai”, é importante porque mostra um caráter masoquista, em que o que é colocado em evidência são os aspectos psíquicos, e não a dor. Freud nos orienta que o agente de mudança da fantasia é a culpa, esta que aparece com a interdição do incesto. Assim podemos aferir que algo do amor que foi interditado e da culpa estão presentes no masoquismo.
Na terceira, “O meu pai está batendo nas crianças, ele só ama a mim”, apesar de sádica, Freud orienta que nessa fantasia a satisfação é masoquista, pois a outra criança nada mais é que a própria criança.
Uma nova mudança se dá em 1920, em “Além do princípio do prazer”. Atento ao que percebe como compulsão, a repetição em sua clínica, Freud nota que o que está em jogo não é uma busca pelo prazer, mas algo que se satisfazia ali no ato de repetir uma experiência desprazerosa para o sujeito. Com o dualismo pulsional, pulsão de vida e pulsão de morte, Freud propõe que sadismo e masoquismo estão presentes em todo sujeito.
Porém a grande mudança em relação ao masoquismo se confirma em sua elaboração de 1924, “O problema econômico do masoquismo”, em que no par de oposição prazer-dor há um ponto de vista econômico em relação ao princípio do prazer e à ameaça que o masoquismo representa para a vida psíquica. O masoquismo, sempre “enigmático”, aparece agora no que guarda relação com os componentes libidinais em cada indivíduo.
Nesse texto, o masoquismo não é mais oriundo de um sadismo. Freud reconhece e nomeia três formas de masoquismo: o primário, o feminino e o moral. Este último permite a Freud avançar em relação aos problemas ligados ao sentimento de culpa. “O masoquismo apresenta-se a nossa observação sob três formas: como condição imposta a excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento” (1924, p. 179).
Essa dimensão econômica, colocada aqui de forma mais evidente, nos abre os olhos para a pulsão de morte que, de forma silenciosa, se apresenta nos sintomas do sujeito. O masoquismo é o sinal da presença da pulsão de morte na pulsão de vida.
No masoquismo moral, o que vai importar é o sofrimento, já que o verdadeiro masoquista sempre oferece a face, onde quer que a oportunidade se apresente.
É o que se pode observar nos fragmentos de um caso clínico que trazemos. João relata situações nas quais o outro sempre se aproveita da sua boa intenção e da sua disponibilidade. Apesar de saber que ao final ele será prejudicado, não consegue negar ao outro que lhe pede. O mal-estar que dizer não ao outro produz em João é que faz com que o sentimento de culpa apareça. Podemos perceber a satisfação que a culpa traz a este sujeito, que na sua estratégia para lidar com o outro abraça o seu sintoma. O que importa é manter o sofrimento.
“A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o bastião do indivíduo no lucro que aufere da doença (…) o sofrimento acarretado pelas neuroses é exatamente o fator que as torna valiosas para a tendência masoquista.” (FREUD, 1924, p. 183)
Recolhemos outros pontos na fala deste sujeito, que colocam mais luz sobre o seu modo de gozo. O fato de sempre “se colocar em risco”, como deixar o carro em lugar que pode ser roubado ou arriscar-se contratando garotos de programa e indo com eles para lugares desertos, tendo sido por duas vezes espancado e roubado, atesta para o seu modo de masoquismo. É como se apenas ser roubado ou espancado fosse pouco para este sujeito, que está sempre à espreita para que algo pior lhe aconteça. A dimensão mortífera e silenciosa da pulsão aparece como que orientando a sua vida.
O outro, que aparece aqui como um abusador, e o sujeito que não sabe sobre o seu próprio gozo nos colocam diante do seu caráter masoquista. Vemos, assim, a prevalência do que Freud nomeia de verdadeiro masoquista, que está sempre pronto para dizer ao outro como abusar dele, e alcançar a punição. O masoquista é quem diz como quer ser espancado, tem a posição ativa mascarada pela passividade, pois é quem procura por aquele que vai lhe infligir a tortura; tortura essa que vá de encontro ao ponto fantasmático do seu sintoma.
Lacan (1956), ao retomar Freud em “Uma criança é espancada”, nos aponta a questão da satisfação pulsional. No primeiro momento existe o ódio ao rival espancado pelo pai, o segundo momento é quando, através da fantasia masoquista primordial, o sujeito dá sua entrada no simbólico, onde se coloca na dialética significante. É no terceiro momento que Lacan propõe uma reformulação: bate-se numa criança, acrescentando o índice de indeterminação do sujeito, em que a função paterna surge de maneira vaga. A produção fantasística faz com que qualquer um possa bater, não só o pai. A posição do sujeito será por ele reeditada nos seus sintomas e na sua repetição. Podemos pensar este como o momento em que o sujeito fabrica a sua fantasia.
A atualização deste ponto fantasmático é o lugar de onde o sujeito constrói sua relação com o outro. Acreditamos ser importante abordar o sujeito obsessivo e sua relação com o Outro:
“Mas aquele que importa é o Outro diante de quem tudo isso se passa. É esse que é preciso preservar a qualquer preço, o lugar onde se registra a façanha, onde se inscreve sua história. (…) O que o obsessivo quer manter acima de tudo, sem dar a impressão disso, com um jeito de quem almeja outra coisa é esse Outro onde as coisas se articulam em termos de significante.” (LACAN, p. 431)
Ainda no caso de João, um indicativo dessa importância com o Outro aparece no seu relacionamento amoroso, em que o dinheiro não pode deixar de se apresentar nada pode faltar ao Outro. Diz ele: “quando o dinheiro acaba, o amor voa pela janela”. Com o relacionamento a que ele sempre se refere como “abusivo”, podemos articular várias questões: sua posição de gozo, sua forma de não suportar a falta do Outro e a dimensão da culpa.
Durante o seu percurso de análise, João pergunta por que se coloca sempre em risco, por que se deixa abusar. “Deixa?” é a forma com que intervenho na tentativa de implicar o sujeito em seu modo de gozo. Mais adiante, ele passa a falar de situações pontuais no trato com o outro em que se destaca sua própria demanda de ser abusado. Conclui, destes relatos, que ele mesmo busca situações sem saída, como se tivesse entre a cruz e a espada.
João se sente culpado de negar o que o outro lhe pede. A necessidade de punição aparece ao se colocar em situações de risco e o sujeito se vê sem saída, a culpa cumpre seu papel, fazendo o desejo ficar subsumido, e a dimensão do gozo aparece no que ela guarda de mais mortífero para este sujeito. A punição está sempre no seu horizonte.
Podemos pensar aqui no que concerne à culpa e ao supereu na neurose obsessiva. O supereu desempenha o papel de figura feroz.
Como nos orienta Freud em “O mal-estar na civilização”:
“O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo deste agente crítico, a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela da pulsão voltada para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego”. (FREUD, 1930, p. 139)
Portanto, vemos que a agressividade que é percebida como tensão pelo ego retorna ao próprio ego em razão do supereu. O eu, ao tornar-se masoquista, cria uma relação erótica com o supereu. Esse ponto se apresenta pelo sentimento de culpa, o eu vai usar da culpabilidade para se proteger.
Neste fragmento clínico, as relações do obsessivo com a culpa e o gozo estão presentes; a culpa se apresenta de forma silenciosa, advinda dessa satisfação masoquista do eu em que o sujeito está sempre à espera de punição.
Outro ponto importante é a relação do obsessivo e seu desejo, no que diz respeito ao Outro, à demanda e ao gozo. Em O seminário, livro 5, Lacan nos fala sobre o obsessivo e seu desejo, denegado pelo sujeito. Para o teórico, essa denegação vai surgir como a expressão do sentimento de culpa. Esta se inscreve, no que concerne ao desejo e à demanda. Como percebemos no obsessivo, a culpa seria o sinal do desejo. Na relação com a demanda que o mata, nada pode ser desejado pelo obsessivo sem que esteja recoberto pela culpa. “O obsessivo resolve a questão do esvaecimento de seu desejo fazendo dele um desejo proibido. Faz com que ele seja sustentado pelo Outro, precisamente pela proibição do Outro”. (LACAN, 1957-8, p. 427).
Preservar o Outro é a estratégia pela qual o obsessivo consegue tornar válido algo do seu desejo. Portanto, o mecanismo de defesa do obsessivo está posto em relação ao seu desejo.
João passa a se antecipar antes de ser capturado pelo seu gozo de arriscar-se. Um saber sobre o seu sintoma começa a ser construído. Começa a se perguntar se não está se colocando em risco e se a resposta é sim, tenta fazer diferente. Diante disso, lhe observo que ele está trazendo uma novidade. João se posiciona como aquele que sabe algo sobre a sua repetição e a satisfação presente no seu sintoma. Então ele questiona se realmente é preciso oferecer tudo ao outro, quando intervenho com um corte e a pergunta: “o que é possível oferecer ao outro?”
Mais adiante admite que se não tivesse buscado uma análise, poderia já ter morrido. Vemos aqui algo desse gozo mortífero, com que o sujeito, nesta frase direcionada para a sua análise, demonstra que foi possível conter algo da ordem da sua atuação.
Nosso tema não se esgota neste artigo. Propomos, para além deste trabalho, uma articulação em torno da questão da defesa no fazer da clínica. Para pensar na direção da cura na neurose obsessiva, é preciso levar em conta os pontos da defesa nas estratégias do sujeito, em que reconhecer a inconsistência do outro não traga algo de terrível e que não necessite mais ser um trabalhador incansável do supereu.