MARIA JOSÉ GONTIJO SALUM
De cabeça erguida[1], uma produção francesa de 2014, mostra situações da vida de um adolescente em conflito com a lei – que guarda similaridades com o que acomete muitos desses jovens no Brasil. O filme relata o percurso do personagem principal, Malony, pelas instituições assistenciais e socioeducativas que percorreu durante a maior parte de sua vida.
Logo no início, vemos o primeiro encontro de Malony e sua família com a justiça, aos seis anos de idade. Na primeira cena do filme, ficamos sabendo que sua mãe fora denunciada pelo Ministério Público por não se responsabilizar pela escolaridade do filho. Anteriormente, a escola e o serviço social haviam tentado fazer contato sobre o problema escolar da criança. Como ela não se manifestou, ocorreu a intimação a pedido do promotor. Ela comparece ao juizado com Malony e seu outro filho, um bebê. Quando indagada pela situação educativa do filho, ela se mostra acuada e tenta se defender atacando àqueles que ela julga acusarem-na: professores, assistentes sociais, promotor, juíza. Por fim, a mãe entrega seu filho para a justiça e a juíza o encaminha para um abrigo.
Quanto a Malony, ele demonstra curiosidade pelo que está acontecendo. Ele conversa, responde, brinca, interage, se interessa pelo que está sendo dito. Ele mostra seu laço com o Outro: olha, atentamente, para os que estão na sala, fala com as pessoas presentes e recebe os afagos da assistente social quando sua mãe vai embora.
Na cena seguinte, Malony tornou-se um adolescente e está com a mãe e o irmão, agora criança. Ele dirige um carro no qual os três estão juntos, e vibram com o passeio. A mãe se empolga com as manobras que o filho realiza ao dirigir e grita: Malony, campeão do mundo!
Após essa cena, vemos Malony e sua família retornarem ao tribunal, para a primeira de muitas audiências com a juíza por toda a sua adolescência. Ficamos sabendo que ele é bastante conhecido na pequena cidade de Dunquerque pelos furtos de carro que comete com frequência. O Outro social o vê como um delinquente. De boné, ele se mantém de cabeça baixa, cortando o olhar e a fala: ele não olha para as pessoas no juizado, se esconde por trás do boné, não fala, não se interessa pelo que está acontecendo, pelo que estão falando, e não responde ao que lhe é perguntado.
A partir dessa cena, inicia-se a entrada de Malony no que seria o equivalente francês das medidas socioeducativas no Brasil. Primeiramente, ele é advertido pela juíza e, na sequência, percorre as instituições para adolescentes em conflito com a Lei; desde as educativas até as prisionais. No decorrer do filme, até os 17 anos, Malony estará às voltas com as medidas jurídicas em resposta às suas infrações.
As atuações de Malony são a tônica do filme. Não somente aquelas que são tipificadas como atos infracionais, mas, também, suas agressões diante dos embaraços e impasses para lidar com as situações difíceis da vida: retorno à escola, não ver a mãe, afastamento do irmão, ter um trabalho, estabelecer uma relação com uma mulher. Percebemos como essas atuações acontecem nas vezes em que ele se mostra angustiado.
A adolescência é um sintoma da puberdade, como nos indicou Stevens (2004)[2]. Ser adolescente, identificar-se com esse significante é uma maneira de tentar atravessar esse difícil túnel, a puberdade, como metaforiza Freud (1905/1969)[3]. E essa travessia não se faz sem angústia. No encontro com a angústia, usualmente, o sujeito busca saídas pelo via sintomática ou pela inibição, tão típicas da adolescência. Mas, também, pela passagem ao ato ou pelo acting-out. No caso de Malony, prevalecem os acting-outs como formas de tentar lidar com a angústia suscitada por suas dificuldades consigo mesmo e com o outro.
Essas diferentes saídas frente à angústia ocorrem por circunstâncias distintas, como nos esclarece Lacan (1962-63/2004)[4]. Uma resposta sintomática acontece quando o sujeito encontra, em sua história, coordenadas simbólicas para subjetivar a castração como falta, tanto a sua como a do Outro. Isso ocorre quando a saída encontrada está relacionada ao dispositivo simbólico. Assim, de forma metaforizada, o sujeito pode dizer de suas dificuldades e embaraços.
A passagem ao ato e o acting-out são formas de atuar no lugar de dizer. Isso acontece quando a via sintomática não consegue se formular, ou seja, quando não se elabora, subjetivamente, uma resposta. Nessa situação, no lugar de surgir o sujeito do desejo inconsciente, aparece um atuar. É isso o que ocorre nas passagens ao ato e nos acting-outs. Essas duas formas de agir dizem respeito a um sujeito que não encontrou um apoio simbólico para inscrever a castração como falta. Dessa forma, ou ele reproduz seu embaraço em uma encenação, caso do acting-out, ou sucumbe a ele, como na passagem ao ato.
No filme, vemos os atos infracionais de Malony acontecerem como uma sequência de acting-outs, a cada vez que ele se depara com os impasses próprios da adolescência. Inicialmente, sem o amparo das coordenadas simbólicas do Outro, Malony não consegue construir uma forma sintomática de atravessar o túnel que concerne à adolescência. Ele se encontra sozinho e sem recursos para enfrentar esse real. Mas, ao longo do filme, vemos surgir para ele as figuras do Outro, e elas adquirirem importância para que ele possa construir novos caminhos e projetos para sua vida. Ele passa a estabelecer laços com a juíza, o educador, a namorada, a própria mãe. Com muita dificuldade, Malony vai mostrando-nos a contundência da frase de Lacan, que nos adverte: “No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele.” (LACAN,1973/2003 p. 533)[5]. Inicialmente, Malony não pensa, ele age. As figuras do Outro e seu desejo permitem a ele separar-se do gozo ao qual se encontrava entregue, colocando um corte na repetição de atuações.
Pode-se dizer que o filme retrata a construção, com muita dificuldade, dos dispositivos simbólicos para enfrentar a dureza da vida de um adolescente. Aos dezessete anos, Malony vai recuperando o olhar, a voz, o laço com o Outro que vimos no início do filme, quando ele era uma criança. Nesse processo, ele vai se colocando como um sujeito que pode desejar: uma mulher, um trabalho, um filho, um projeto. Ele pode, com seu desejo, investir na vida. Torna-se alguém que pode fazer uso dos objetos do desejo para circular no social, podendo dispensar as falácias das atuações para fazer-se reconhecer no campo social. Como efeito, ele pode erguer a cabeça, olhar e tomar a palavra.