ANA HELENA SOUZA
O texto de Beckett ao qual recorro aqui é considerado o auge da depuração de sua escrita. Chama-se Worstward Ho, literalmente, “em direção ao pior, vamos”. Traduzi-o como Pra frente o pior (Beckett, 2012)[1]. Essa prosa é construída com extrema desconfiança e cautela. As palavras introduzidas repetem-se, transformam-se, assumem diferentes categorias sintáticas, são recombinadas, produzem ecos, num jogo de permutações que, aos poucos, compõe imagens e uma tênue narrativa.
Beckett disse ter encontrado sua própria voz, ao começar a escrever diretamente em francês depois da Segunda Guerra. Compreendeu que em sua obra devia trabalhar com a falha, a impotência, a ignorância. Radicalizou a experiência de abandono dos recursos literários: reduziu ou praticamente eliminou enredo, personagens, nexos temporais, recursos à verossimilhança e à plausibilidade. Worstward Ho, de 1983, começa assim: “On. Say on. Be said on. Somehow on. Till nohow on. Said nohow on.” (Beckett, 2009, p. 81)[2]. Em português: “Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Idem, 2012, p. 65). Citá-lo em inglês é importante para marcar os significantes básicos que se fazem presentes ao longo de todo o texto: on e o seu inverso espelhado no, que comparece nesse primeiro trecho em nohow. Os verbos do dizer, no presente e no passado, say e said, incitados pelo on, são ao mesmo tempo relativizados pelos advérbios somehow e nohow. A narrativa constitui-se basicamente do que se tem a dizer e, desde o início, é posta à prova. É preciso dizer “de algum modo” até chegar ao dito que não pode “de nenhum modo” prosseguir. O que o texto faz surgir é algo que se forma dentro de um crânio. Adquirem contorno um lugar, um corpo, um olho, uma penumbra e algumas imagens. Escreve-se, assim, o empenho em tornar tanto essas imagens como o dizer que as cria mais precisos, embora a tarefa, nos é dito, esteja fadada ao fracasso.
Para a primeira aproximação desse texto com a psicanálise, cito uma observação de J-A Miller sobre o modo possível de nos referirmos ao real, com os instrumentos do simbólico:
“O fato de o real ser inassimilável faz com que seja sempre introduzido por um ‘não’. É uma positividade que só pode ser abordada pelo negativo – pelo menos no que depende do simbólico –, ou seja, em sua face de impossível. É preciso haver uma articulação simbólica para podermos dizer que alguma coisa é impossível.” (2011, p. 24)[3].
Em Pra frente o pior, o texto se compõe, ao mesmo tempo, sob o signo do ON e do NO – do imperativo de continuar e da impossibilidade. Por isso, permeiam-no referências a um dizer que é sempre qualificado como “mal dito”, como “pior”. Paradoxalmente aqui o pior, definido no texto, implica o que se pode fazer de melhor. É possível entrever, no esforço de ter de valer-se do simbólico, aquilo que no simbólico não se deixa apreender, nem dizer: “Tentar de novo. Falhar de novo. Melhor de novo. Ou melhor pior.” (Beckett, 2012, p. 66)
Vimos que o texto começa com “on”. À medida que a leitura avança, percebe-se que este “on” não apenas iniciou um discurso, mas incluiu nele enunciador e destinatário, bem como lhe deu uma direção de sentido que orienta a ficção. Numa segunda aproximação, relaciono esse começo à observação de Miller sobre a entrada em análise:
“Uma análise começa sob o modo de formalização. O amorfo se vê dotado de uma morfologia. (…) Ao longo das primeiras sessões, a massa mental do amorfo se reparte em elementos de discurso. Só o fato de você convidar a falar aquele que está diante de você faz com que o amorfo mental dele adote uma estrutura de linguagem. (…) O desenho que surge, então, é condicionado, pelo menos em parte, pelo endereçamento, pelo destinatário.” (Miller, 2011, p. 101)
O início de uma análise institui um ordenamento, convida à construção de uma narrativa. Gostaria de destacar na citação de Miller o “endereçamento” e ampliá-lo para não apenas incluir um destinatário, mas um direcionamento temporal. Tal direcionamento é dado por uma expectativa de resolução, de um fim, à medida que toda análise iniciante propõe uma pergunta e deseja chegar à resposta.
No seu livro The sense of an ending, o crítico literário Frank Kermode[4] aborda os sentidos que a presença do fim imprime às ficções. Parte da sua argumentação encontra-se resumida na discussão de como dotamos de sentido o som que um relógio emite:
“Perguntamo-nos o que ele diz: e concordamos que diz tique–taque. Por meio dessa ficção, nós o humanizamos, fazemos com que fale nossa língua. (…) Tomo o tique-taque do relógio como modelo do que chamamos de enredo, uma organização que humaniza o tempo ao dar-lhe forma; e o intervalo entre o taque e o tique representa o tempo meramente sucessivo, desorganizado, do tipo que precisamos humanizar.” (Kermode, 2000, p.44-45)
Segundo Kermode, com o tempo nossas ficções também mudam as formas de dar sentido ao fim. Quando, por exemplo, a ficcionalização linear do tique-taque já nos parece muito fácil, partimos para algo do tipo taque-tique, num enredo como o do Ulysses de Joyce (Idem, 2000, p. 45). De algum modo, parece-me que a entrada em análise, com suas correspondentes formalização e histerização do discurso, e as revelações que ensejam (Miller, 2011, p. 104), equivale em ficção a um enredo ordenado mais em conformidade com o tique-taque simbólico. Esse tipo de ordenamento, que faz com que os eventos se encaixem numa sequência regular de antes e depois, pode ser percebido no desvendamento dos casos de histeria mais simples relatados por Freud.
O caso de Miss Lucy R. ilustra bem um suposto não-saber da histérica que, antes de Freud[5], era muitas vezes encarado como uma mentira, uma ficção. Miss Lucy, inglesa, 30 anos, governanta das filhas de um diretor de fábrica viúvo e morador dos arredores de Viena, procura Freud com sintomas olfativos subjetivos. Sente com frequência um cheiro de torta queimada, além de apresentar um desânimo e uma irritabilidade constantes.
Freud soluciona o caso em etapas temporalmente invertidas. O primeiro sintoma com que Miss Lucy a ele se dirige foi desencadeado pelo evento ocorrido mais recentemente. Brincava de cozinhar com as crianças, quando chega uma carta de sua mãe. A carta lembra-lhe que pedira demissão, e isso a levaria a voltar à casa materna e deixar as crianças, que ela amava e das quais prometera cuidar. Neste momento, a torta que faziam queima.
Com a solução desse primeiro sintoma aparece um outro: o cheiro de fumaça de charuto. Este corresponde ao evento intermediário, ainda não propriamente ao acontecimento traumático. O patrão de Lucy grita com um velho amigo da família que se despedira das crianças com beijos, algo que o pai não tolera. É depois do jantar, e os homens fumam. Daí o incômodo cheiro de fumaça de charuto.
Ao evento traumático propriamente dito não se liga uma conversão histérica. Freud apenas especula que ele tenha gerado o “abatimento de ânimo” da paciente. Os acontecimentos posteriores têm a função de encobrir o acontecimento traumático, de modo que fica claro que o trauma nem sempre dá origem ao sintoma. Freud relaciona os acontecimentos “auxiliares” (2016, p. 179), que produzem o sintoma, a “um intervalo de incubação” e menciona que Charcot a isso se referia como “o tempo de elaboração psíquica”. (2016, p. 193)
A cena traumática, a que Freud chega depois de desvendar as auxiliares, é a acusação e ameaça de demissão do patrão a Lucy, porque uma senhora em visita à casa beijou as crianças, algo que ele abominava, e que ela deveria impedir de acontecer. Sua ira e rispidez levam-na a compreender que não existe nenhum sentimento amoroso da parte dele para com ela. O primeiro dos sintomas, que corresponde ao evento intermediário, sobrevém apenas quando ela presencia cena semelhante, na qual o patrão grita com o velho amigo da família que também beijara as crianças. Já o segundo sintoma, que encobre o primeiro, surge por ocasião do recebimento da carta da sua mãe, lembrando-lhe da intenção de abandonar o emprego e as crianças.
Todos os eventos remetem ao amor despertado em Lucy pelo patrão, quando este, numa conversa mais afável sobre a educação das filhas, dirige-lhe um olhar terno. Freud sugere o sentimento à paciente, por não se convencer que os eventos auxiliares eram bastante significativos para gerar o sintoma. Ela concorda de imediato. Perguntada por que lhe ocultara isso, diz: “Não o sabia de fato, ou melhor, não queria sabê-lo, queria tirar isso da minha cabeça, nunca mais pensar a respeito (…)”(Freud, 2016, p. 170). Numa nota, Freud comenta: “Jamais pude obter descrição melhor do singular estado em que ao mesmo tempo sabemos e não sabemos alguma coisa.” (Idem, ibidem, n.30)
A respeito do esquecimento dos eventos, Freud afirma: “…esse esquecimento é com frequência intencional, desejado. E é sempre bem-sucedido apenas de forma aparente.” (Freud, 2016, p.162) Há, no relato de Miss Lucy, um apego a um não-saber que está longe de ser efetivo, mas que se vale de certos recursos psíquicos para encobrir as lembranças traumáticas. Tais recursos estão presentes também em várias ficções, o que torna possível aproximá-las, neste caso, do desvendamento dos sintomas.
No Seminário 10, Lacan define a angústia como um afeto (o afeto que não engana) e, esclarece que se pode “encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram.” (Lacan, 1992, p. 23)[6] Ora, Miss Lucy sabe que ama o patrão. Mas percebeu que seu sentimento não era correspondido, quando ocorreu a cena entre os dois depois de uma convidada ter beijado as crianças. A reiteração desse saber na segunda cena, desta vez diretamente com outro convidado, produziu o sintoma do cheiro de fumaça de charuto, depois encoberto pelo de cheiro de torta queimada. Aqui há inversão temporal, o último sintoma prevalece sobre o primeiro, na tentativa de empurrar o afeto a que se liga para o esquecimento, e há deslocamento, da raiva do patrão dirigida a ela à raiva dele dirigida ao convidado. Aparece uma estrutura de ficção, no que a ficção pode apresentar como suspense, encobrimento para posterior descoberta, paralelismos, reviravoltas, em suma, no que com frequência se reconhece como mentiras, truques ficcionais. No caso de Lucy, as soluções seguem o tiquetaquear simbólico de um desvelamento linear – mesmo que de trás para a frente. Ainda era o século XIX, as histéricas ainda eram acusadas de mentirosas. Freud lhes dá um direito de defesa:
“Assim, por um lado, o mecanismo que produz a histeria corresponde a um ato de hesitação moral; por outro, apresenta-se como um dispositivo de proteção que se acha às ordens do Eu. Há não poucos casos em que é preciso admitir que a defesa contra o crescimento de excitação, pela produção de histeria, foi mesmo, então, a coisa mais apropriada (…).” (Freud, 2016, p. 178 – grifo meu)
Quando Freud no final pergunta à paciente: “E você ainda ama o diretor?” Ela responde: “Amo-o seguramente, mas isso já não me perturba. Posso pensar e sentir comigo mesma o que quiser.” (Freud, 2016, p. 176) Com os poucos elementos fornecidos, pode-se arriscar dizer que a satisfação de Lucy com a resolução do seu sintoma se sustenta no gozo de um amor não correspondido. Sua análise interrompe-se ainda naquela fase inicial que J-A Miller diz se desenvolver “sob o signo da revelação” (Miller, 2011, p. 104). Esse caso, a meu ver, é bem típico da “talking cure” em seu começos. Começos da psicanálise: o começo freudiano, com o método psicanalítico propriamente dito; mas também o começo lacaniano[7], com a prevalência do simbólico sobre o real. Em ambos, buscava-se chegar à cura pela fala.
Mas quando Freud elabora em Além do princípio do prazer o conceito de repetição, Lacan diz que aí entra em jogo o gozo (Lacan, 1998b, p. 43)[8]. Trata-se aqui de um “gozo opaco”, esse gozo que Miller caracteriza como “insubmisso, rebelde, incompatível aos olhos da estrutura da linguagem e que não se deixa significar” (2011, 190). A existência do real se impõe, sem que a linguagem possa verdadeiramente apreendê-lo, no sentido de fazer com que faça sentido. Lacan coloca as coisas assim: “Porém, o que é verdadeiro? Meu Deus, é aquilo que é dito. E o que é dito? É a frase. Mas a frase, não há meios de fazê-la se sustentar em outra coisa senão no significante, na medida em que este não concerne ao objeto.” (Lacan, 1998b, p. 53) Chega-se assim ao sinthoma como “o elemento que não pode desaparecer, que é constante” (Miller, 2011, p. 11), a um final que pode se presentificar no “passe do falasser, que não é o testemunho de um sucesso, mas de um certo modo de ratear.” (Miller, 2011, p. 124)
Numa ficção, mesmo que não haja nenhuma revelação a ser feita, há de qualquer forma sempre um fim. De volta a Beckett, esse fim diz de si mesmo e, ao fazê-lo, expõe o esgotamento do texto: “De nenhum modo menos. De nenhum modo pior. De nenhum modo nada. De nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante.” (Beckett, 2012, p. 87) Com isso quero dizer que a ficção de Beckett também esbarra no irredutível, de onde revela tanto o fracasso como o sucesso do seu dito, ao expor a falha da linguagem.
[1] BECKETT, S. “Pra frente o pior”, Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2012.
[2] BECKETT, S. “Worstward Ho”, Company etc. Faber & Faber: London, 2009.
[3] MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Trad. Vera Avellar Ribeiro. Rio De Janeiro: Zahar, 2011.
[4] KERMODE, F. The sense of an ending: studies in the theory of fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000.
[5] FREUD, S. Obras Completas (1893-1895), v. 2: Estudos sobre a Histeria, em coautoria com Josef Breuer. Trad. Laura Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[6] LACAN, J. (1962-1963) O Seminário. Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
[7] LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998a, p. 591-652.
[8] LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.