MARIA WILMA S. DE FARIA
Psicanalista, membro da EBP/AMP
Coordenadora da Rede TyA Brasil
mwilma62@gmail.com
RESUMO: O corpo falante testemunha o discurso como laço social e traz em si suas marcas enquanto corpo socializado. Tendo como referência o segundo ensino de Lacan, no que toca ao falasser político, o texto indaga o que pode hoje a psicanálise frente à toxicomania que nossa época promove. Interroga os sintomas contemporâneos que têm a toxicomania como paradigma, bem como as adições generalizadas, o uso excessivo de remédios, as instituições segregativas e a violência discriminatória exercida sobre usuários e dependentes de drogas e/ou em uso prejudicial de álcool.
PALAVRAS-CHAVE: Toxicomania; Clínica; Psicanálise; Política; Falasser.
The event of body political and psychoanalysis today
ABSTRACT: The speaking body witnesses the discourse as a social bond and bears in itself its marks as a socialized body. Taking Lacan’s second teaching as a reference regarding the political parlêtre, this essay questions what psychoanalysis can do today in face of the drug addiction that our time promotes. It interrogates contemporary symptoms that have drug addiction as a paradigm, as well as generalized additions, excessive use of medication, segregative institutions, and discriminatory violence against drug users and addicts and/or those in harmful use of alcohol.
KEY WORDS: Drug addiction; Clinic; Psychoanalysis; Politics; Parlêtre.
O tema de trabalho deste semestre, proposto por Lilany Pacheco (diretora-geral do IPSM-MG) e Cristiana Pittella (diretora da Seção Clínica), nos convida para começar uma investigação de conceitos preciosos do último ensino de Lacan, à luz da transmissão de Miller, tais como falasser, sintoma como acontecimento de corpo, laço social, gozo e corpo político, articulando-os e tentando fazer uma leitura do mundo atual globalizado, com sua lógica capitalista.
Em tempos marcados pelo desvanecimento do Ideal do Eu, assistimos à queda do pai como moderador de gozo, o que, por sua vez, leva a um empuxo à primazia de modalidades de gozo que não incluem o Outro. Cabem aqui todas as manifestações sintomáticas nas quais o excesso faz presença: bulimias, toxicomanias, obesidades, anorexias, comunidades de gozo. Enfim, sintomas, no limite do dizível, que chamam à cena o corpo em suas inúmeras dimensões. No discurso da ciência, tudo pode ser nomeado, quantificado, diagnosticado: para cada mal-estar, um tratamento, um protocolo, classificações e prescrições. Na lógica biomédica, é apropriado lidar com a questão das toxicomanias como elemento de controle, apresentando-a como doença a ser tratada e curada com pílulas de felicidade. Já no discurso capitalista, temos a lógica de que tudo pode ser comprado e adquirido sob a promessa da plenitude. O toxicômano faz-se um consumidor ideal, sempre fiel ao mesmo artefato, o que desemboca em ser consumido pelo próprio objeto de gozo. No entrecruzamento desses dois discursos, podemos tomar a toxicomania como paradigma dos novos sintomas, sintoma fruto de nossa época.
Para entender um pouco a toxicomania, tomemos uma referência de Miller, que parece ser preciosa:
“A repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível. Desde então, o sujeito se encontra ligado a um ciclo de repetições cujas instâncias não se adicionam e cujas experiências não lhe ensinam nada. Hoje, chamamos isso de adição a fim de qualificar essa repetição de gozo. Chamamos assim precisamente porque isso não é uma adição, já que as experiências não se adicionam. Essa repetição de gozo se faz fora do sentido” (MILLER, 2011a, p. 109).
Esse gozo que se itera e reitera presente nas toxicomanias só tem relação com o significante Um, S1. Ele não se direciona ao S2 como saber, e é um “autogozo do corpo. E o que faz função de S2, no caso, o que faz função de Outro desse S1 é o próprio corpo” (MILLER, 2011a, p. 109). Assim, temos o corpo como Outro, e desde sempre operamos na clínica das toxicomanias com esse desafio.
Uma importante pergunta que Miller faz em “Ler um sintoma” (MILLER, 2011b) é se o gozo presente no sintoma seria primário. Ele responde que, em um certo sentido, sim. “Pode-se dizer que o gozo é o próprio corpo como tal, que é um fenômeno de corpo. Nesse sentido, um corpo é o que goza, reflexivamente. Um corpo é o que goza de si mesmo, o que Freud chamava de autoerotismo” (MILLER, 2011b). Mas isso é verdade para todo corpo vivo, não só para os toxicômanos. Será que poderíamos pensar que os toxicômanos ficam fixados aí no gozo autoerótico?
“Assim, pode-se dizer que gozar de si mesmo é o estatuto do corpo vivo. O que distingue o corpo do ser falante é que seu gozo sofre a incidência da fala. E precisamente um sintoma demonstra que houve um acontecimento que marcou seu gozo no sentido freudiano de Anzeichen (sinal) e que introduz um Ersatz (substituição/ estepe/ peça sobressalente), um gozo que não deveria, um gozo que perturba o gozo que deveria, isto é, o gozo de sua natureza de corpo. Portanto, nesse sentido, não, o gozo em questão no sintoma não é primário. Ele é produzido pelo significante. E é precisamente essa incidência significante que faz do gozo do sintoma um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma demonstra que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo após o qual o gozo natural entre aspas, que se pode imaginar como sendo o gozo natural do corpo vivo, encontrou-se perturbado e desviado. Esse gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá, e o faz por meio de seu sintoma como interpretável” (MILLER, 2011b, n/p.).
Assim, podemos diferenciar o conceito de sintoma freudiano como aquele passível de ser decifrado, compreendido, interpretado, e o conceito lacaniano tendo o sintoma como aquele que não fala, mas que se inscreve sobre o corpo, silencioso, pura presença de gozo, próximo assim às apresentações sintomáticas dos toxicômanos. Esses se apresentam de forma bruta, com seus corpos depauperados, alquebrados, pura presença.
É na conferência em que anunciou o X Congresso da AMP em 2014 (MILLER, 2016) que Miller aponta a substituição do “inconsciente” feita por Lacan, em seu ensino, para o termo “corpo falante ou falasser”. Tal proposição assinala como a fala impacta o corpo, em um ponto de real, unindo os dois, linguagem e corpo (S1a). Isso porque o falasser não é o seu corpo, mas tem um corpo. Essa abordagem do falasser vai nos permitir aproximar da expressão usada por Lacan em “Intuições Milanesas”: “o inconsciente é a política”.
“A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan. ‘O inconsciente é a política’ é um desenvolvimento de ‘O inconsciente é o discurso do Outro’. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. ‘O inconsciente é a política’ radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir. A análise freudiana do Witz justifica o fato de Lacan articular o sujeito do inconsciente a um Outro, e qualificar o inconsciente como transindividual. É possível passar de ‘o inconsciente é transindividual’ para ‘o inconsciente é político’, desde que fique claro que esse Outro é dividido, que ele não existe como Um” (MILLER, 2011c, p. 6-7).
Assim, a formulação “a política é o inconsciente” repousa na referência freudiana de uma política articulada ao pai, à identificação, à censura. Já o dito de Lacan “o inconsciente é a política” parte não mais da política articulada ao pai, e sim do inconsciente separado da identificação, estruturado como linguagem, que nos leva a considerar o acontecimento de corpo no inconsciente político (LAURENT, 2016). Como poderíamos entender isso, então? O acontecimento de corpo afeta não só o corpo entendido como o organismo individual, mas também o corpo do sujeito da linguagem, logo, transindividual.
“O corpo que fala testemunha o discurso como laço social que vem se inscrever sobre ele: é um corpo socializado. Essa dimensão coletiva aparece em seus desarranjos e nomeações. A subjetividade que está em jogo aí é individual, mas também de uma época” (LAURENT, 2016, p. 213).
Esse ponto muito nos interessa. Tomemos assim como a subjetividade de nossa época vê os toxicômanos e os alcoolistas e seus corpos: bandidos, fracos, insubordinados, sem força de vontade. Cabe aqui toda uma concepção moral com seus adjetivos e déficits que, desconhecendo o campo pulsional, praticam toda sorte de violência discriminatória sobre usuários e dependentes de drogas e álcool. Assim, esses falasseres passam a ser vistos cotidianamente como não sujeitos, desprovidos de dignidade ou de direitos. De tal sorte que, assujeitados, são alvo de toda uma política higienista (presente também no discurso do atual governo) que preconiza a disciplina dos corpos com uma pretensa roupagem de “salvação” ou tentativa de erradicar as substâncias psicoativas, fazendo crer ser possível um mundo sem drogas e evitar um mal pior, que seria o consumo de substâncias.
Essa política visa a abstinência total via segregação pela internação e impera como tentativa de controlar o gozo e domar os corpos. Na clínica das toxicomanias, interessam-nos as relações mantidas pelo sujeito e seu corpo, ambos, objeto de discursos invasivos de um “programa político” que almeja colocar à margem a malfadada infelicidade. Na toxicomania observamos um certo apagamento do corpo via intoxicação, ou mesmo uma tentativa de anestesiar o corpo. Em sujeitos psicóticos, o recurso às drogas poderia ser uma forma de fazer um corpo ali onde o sujeito não tem um corpo, uma maneira de moldar, de esculpir o corpo que escapa a todo momento. De qualquer forma, para nós psicanalistas, a função que a droga tem é sempre construída, sujeito a sujeito, em sua singularidade.
Interessa-nos também pensar o toxicômano na cidade e tudo o que vem reforçar a identificação imaginária: “Você é toxicômano, você é drogado!”. Essa nomeação vinda do campo do Outro muitas vezes reafirma para o sujeito o que ele é, reduzindo o ser falante à substância que usa. Essa pode ser também uma forma de o sujeito se apresentar, totalmente submetido. Deparamos cada vez mais com microculturas movidas por identificações grupais que também não singularizam o sujeito, mas, antes, os determinam em subgrupos movidos pelo consumo: cachaceiros de um lado, noiados de outro, emos tristes que fazem apologia aos antidepressivos, medicalizados agitados que querem aumentar a performance no trabalho, grupos de ajuda mútua, dependentes de ritalina. Essa pretensa identidade grupal traz uma miragem de todos iguais, de pertencimento, em uma colagem imaginária que provoca uma pseudossegurança, expressão de um desvario de gozo, mas que acaba evidenciando toda a fragilidade dessas identificações subjetivas, uma vez que nada aplaca a solidão de cada um.
Nesse ponto seria interessante recorrer e diferenciar o que passou a ser chamado de “toxicomania generalizada”, ou “adição”, do conceito “toxicomanias”, propriamente dito, e dar um passo a mais, ao que o colega Ernesto Sinatra, de Buenos Aires, propõe chamar de “adixão”. A toxicomania generalizada, ou adições contemporâneas, se refere à lógica do mercado que oferece toda sorte de produtos cujo consumo pode tornar as pessoas “dependentes” em uma relação excessiva, passando a ter, assim, o estatuto de drogas. Tais objetos de consumo não são uma substância: internet, compras, celular, pornografia, jogos. Ou seja, há uma lista sem fim de produtos fazendo série e que obedecem ao imperativo “consuma!” bem na lógica de “todos gozam dos mesmos objetos”. Lembremos aqui o uso atual da palavra “tóxica” para se referir às pessoas que estão sempre se queixando, tornando o ambiente e as relações da vida impossíveis.
Já o termo toxicomanias, no plural, marca bem a questão de que a singular relação de um sujeito com uma substância a ser introduzida no corpo se dá de forma única para cada um. Considera assim que podemos ter pessoas usando a mesma substância, com frequência e quantidade iguais, mas em que a relação maníaca, bem como sua função na economia libidinal, será diferente. E isso tem sua pertinência e importância para todos nós do Campo Freudiano, que nos dedicamos a essa investigação.
Com o pequeno detalhe de mudança de uma letra, x, Sinatra batiza como adixão o nome sintomático do atual estado da civilização:
“uma versão pós-moderna da toxicomania generalizada. […] o x de adixão mostra a fixação do gozo singular e inalterado que não pode ser apagado e traz a marca do obscuro gozo sinthomático de cada um, que resiste a ser catalogado e que descompleta a pretensa generalização do consumo que vale para todos” (SINATRA, 2020, p. 97-98).
Ressalto ainda a multiplicação de instituições totais aos moldes de comunidades ditas terapêuticas em nosso país, o que aponta um retrocesso nos avanços até então conquistados. Assinalo aqui a importância e a responsabilidade de serviços de saúde do SUS, ou não, presentes na cidade fazerem valer a singularidade e trabalhar os preconceitos presentes dentro de cada um em relação a esses falasseres.
O que pode hoje a psicanálise? Penso que somente com a presença do discurso analítico podemos vir a abalar e furar as bolhas de certeza do discurso do Outro social que tenta promover o bem geral, causando uma fratura da verdade, instaurando assim um campo aberto à interrogação e considerando que a política está no campo do discurso do Outro, no campo da divisão.
Lidar com a tirania do supereu com a qual o sujeito toxicômano está submetido implica favorecer a desidentificação dos S1 provenientes do campo do Outro e apostar na construção do nome próprio.
Miller nos ensina que tratar o sintoma é visar a fixidez do gozo, a opacidade do real, de modo que, a partir do último Lacan, em uma análise, trata de reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo; ao choque puro da linguagem sobre ele (MILLER, 2011b).
O que pode o psicanalista hoje frente a tudo isso? Despindo de qualquer concepção ideal de cura, a aposta do analista é sempre que o sujeito toxicômano possa interrogar-se sobre o estreito laço que o liga ao objeto e que possa fazer deslocamentos mínimos que o reconectem a seu desejo. O discurso analítico pode ser uma importante ferramenta para questionarmos os corpos, os falasseres, seus gozos e também o discurso de nossa época, de tal sorte que este possa a vir a ser “partilhado pelo maior número possível de sujeitos do corpo político” (LAURENT, 2016, p. 219).