Ilka Franco Ferrari
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: ilkafferrari@gmail.com
O marco para a abordagem deste tema foi encontrado no que Lacan apresentou no Seminário Mais, ainda (1972-73/1985) e no que Miller (2016) ajudou a elucidar, ou seja, o mistério da união da fala com o corpo.
Tal mistério esbarrou em outro, que Lacan nos fez ouvir, ou seja, o impenetrável da essência do fenômeno da vida. Na impossibilidade de definir o que é a vida, ele se perguntou o que ela quer, ofertando a resposta de que ela quer durar, não acabar, se transmitir. Considerou-a muda, impossibilitando que se saiba o que é estar vivo, mas nela deixando falar o saber de que, na existência, há corpos vivos e gozosos (LACAN, 1972-73/1985, p. 35), mortificados e vivificados pela entrada do significante nesse circuito.
A primeira tese de Lacan sobre o corpo o situa como imaginário, sendo que a imagem no espelho, sua forma, o distingue do organismo. No paradigma clínico inaugurado com o nó borromeano, orientado pelo sinthome, o corpo se estabeleceu no campo do gozo e, a partir daí, Miller destaca o imaginário como o próprio corpo, para gozar ou não. Mas relembra: “é no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações que nos constituem um mundo ilusório sob o modelo da unidade do corpo” (MILLER, 2016, p. 23). O corpo simbólico então constituído outorga ao corpo imaginário sua unidade.
Di Ciaccia se pergunta de qual corpo se trata nesse momento da orientação lacaniana. A partir de orientações millerianas, ele afirma: “corpo que Aristóteles propõe como base da definição de indivíduo, aquele corpo que ‘se mantém como uno’’’ (DI CIACCIA, 2016, p. 75), apresentado por Lacan no Seminário 20. No empenho de uma definição, Di Ciaccia (2016, p. 75) escreve: “Um corpo é alguma coisa que se goza – substância gozante, portanto, que se revela no indivíduo falante, por meio do acontecimento de corpo, singular para cada um, que é o sinthoma”. A palavra “singular” não pode deixar de ser aqui considerada. Ela ressalta o momento teórico em que de fato se distanciou de concepções universalistas, cuidando da vida como o real de uma ex-sistência individual.
Da carne ao corpo
No “corpo vivo” – não simbólico, ou imaginário –, que goza de si, consequentemente acontece o afetamento do gozo advindo do que Lacan (1972-73/1985) denominou lalíngua, ou seja, através da palavra antes de seu ordenamento gramatical. Materialidade sonora do significante, anterior à linguagem, se encaixando nesse corpo vibração que “serve para falar”, distinto do “corpo fala” proposto pela psicologia. O vivente traz em si possibilidades de eventos, de acontecimentos de corpo, a partir das ressonâncias da linguagem materna, ecos dos sons maternos “afetando cada sujeito de maneira diferente, como o tom, o ritmo, a maneira, o estilo de falar” (RAMIREZ, 2024). Momento estrutural em que acontece o encontro entre o corpo como vivente e lalíngua, em troumatisme que esburaca (trou) o corpo, carne tatuada pelo verbo antes que ele se estruture em linguagem. A esse primeiro trauma, posteriormente somam-se outros na vida de cada qual.
De acordo com Miller (2003), Lacan (1964/1988), no Seminário 11, utiliza de forma exemplar a palavra “carne”, possivelmente influenciado por Merleau-Ponty. Nela, haverá a marca do signo linguístico, em evento que separa carne e corpo, com o simbólico tomando o corpo. E o mistério apresentado na união da fala com o corpo, corpo agora fato de experiência, se esclarece com o registro do real, em intervenção que destaca a presença de um traço transformado em significante, mas apagado. Afirmou Lacan (1962-63/2005, p. 73): “O significante, disse-lhes eu a certa altura, é um traço, porém um traço apagado”. Referência à noção de traço unário, anterior ao sujeito e introduzido no real, primeiro significante, entalhe com o qual se marca, se tatua, na relação do sujeito com o Outro. Assim, o sujeito se constitui, na exigência de busca do objeto perdido, de um não sabido original, e na construção de rastros falsos para encontrá-lo. Nas palavras de Lacan (1962-63/2005, p. 75), “Quando um traço é feito para ser tomado por um falso traço, sabemos que há aí um sujeito falante, sabemos que há aí um sujeito como causa”.
O sujeito, ali onde nasce, portanto, se dirige à “racionalidade do Outro”, não tendo outro alcance senão o de posicionar-se no lugar do Outro numa cadeia significante. Em sua vida invadida pela mortificação de significantes que falam entre si sem signo de presença de um ser, estala a morte em vida que, no entanto, assegura a sobrevida significante. Tal formalização levou Miller (2003) a ponderar que no estruturalismo lacaniano há co-pertencimento entre o simbólico e a morte, excluindo o gozo que supõe a vida biológica.
Mas chegou o momento em que a experiência analítica fez com que Lacan (1972-73/1985) ponderasse essa lógica do inconsciente que supõe o sujeito morto, ao considerar que o sujeito se produz no corpo. Apareceu, então, o que ele chamou de indivíduo afetado pelo inconsciente, pela língua que não se pode ler, palpitante e com o corpo vivo. Consequentemente, o significante não tem só efeito de significado, mas efeito de afeto – efeito do saber no corpo – perturbando, deixando marcas no corpo, agora substância gozante. O significante é causa do gozo e a via do inconsciente real se fortalece.
As investigações acerca dos enlaces e desenlaces entre corpo e linguagem prosseguiram, considerando que o real do inconsciente é o corpo falante. Agora, só há inconsciente no falasser entendido como o sujeito e seu corpo de gozo. Sujeito não mais na vertente do significante, mas “sujeito do gozo”, um ser falado e falante, com fala que lhe dá sentido. Ser que só o é por falar, mas, essencialmente, fala de seu gozo, que é a razão última de seus ditos (MILLER, 2011). Seu sentido de ser é presidir o ter, porque o falasser não é o corpo, mas o tem. Nas palavras de Lacan (1975-76/2007), ele é ser carnal devastado pelo verbo, pois o homem fala com seu corpo, é um corpo falante – expressão que surge no Seminário 20 –, falasser por natureza. Tal concepção não apaga o ensino sobre o inconsciente e sua relação com a linguagem, mas acentua valor à corporizarão da imagem que dá consistência ao ser que fala. A fala é o que lhe dá sentido e, por falar, é também falado.
O estudioso das formalizações lacanianas nota, portanto, que, a partir do Seminário 20, está presente o efeito corporal do significante, ou seja, não mais seu efeito semântico (significado), não mais seu efeito sujeito suposto saber, não mais seus efeitos de verdade, mas seus efeitos de gozo. Se, antes, a cadeia significante mortificava o corpo, localizando o gozo nos objetos mais de gozar, agora o significante é também causa de gozo. No último ensino, Lacan aproximou significação e satisfação, passando do conceito de linguagem para lalíngua, expressando que o significante não trabalha para a significação, mas para a satisfação, base do que se chamou sentido gozado. Esse entrelaçamento entre corpo e gozo, ao final de seu ensino, colocou Lacan novamente diante da questão da vida, e também da morte. Nesse momento, o real se sustenta no gozo do vivente, mas é também a morte, um impossível de se pensar e de representar no campo da vida.
A materialidade do significante, todavia, é motivo de equívocos no último ensino. Segundo Miller (2003), tudo indica que a última palavra de Lacan sobre o assunto sugere equivaler o significante ao semblante, em possível desdobramento do que aparece no Seminário 3. Melhor dizendo, se o significante como tal não significa nada, se na natureza ninguém se serve do significante para significar; no entanto ele está aí, e se não fosse por ele não encontraríamos nada na natureza. Ao manejarmos com os pequenos signos que trazemos pela vida, continua Miller, acontece a oportunidade da materialização do significante naquilo que ele sustenta, suportando o sentido. O corpo oferece sua matéria, sua realidade, ao significante. Consequentemente, ele pode tomar sua matéria do som e do corpo, como bem demonstra o sintoma histérico. O depoimento de Jorge Assef ilumina a questão.
Agarre-se forte!
Na riqueza do testemunho de Jorge Assef (2024), pode-se extrair alguns relatos que auxiliam essa transmissão. Ele conta, por exemplo, a pergunta direta que a analista lhe fez, no início de sua segunda análise, acerca de que seu corpo gozava, e sua resposta, sem hesitação, foi: de abraçar e de comer! Percorre a dramaticidade dos momentos de despedidas, os abraços em seus parceiros, familiares e amigos, a recordação dos choros na despedida do pai quando o deixava na escola, sua insaciável demanda de amor e uma cena traumática dentro de uma igreja, na qual, assustado, se agarra ao pai. Um sonho lhe trouxe, nesse contexto, importante constatação: “o ursinho carinhoso” com o qual se apresentava escondia o parasita “carrapato”, nome atribuído pelo inconsciente para as distintas facetas de seu sintoma. Modo de viver agarrado no outro para devorá-lo.
A lembrança de uma cena no parque de diversões, tal como conta, o fez encontrar o imperativo da voz materna gravada em fogo, no supereu. Quando o brinquedo ganhou velocidade, a mãe começou a gritar, insistentemente, “agarre-se forte!”. Precisaram pará-lo. Em outro momento, voltando do México após ouvir um testemunho de Passe em que se destacava o significante “soltar” e ainda comovido, em meio a uma zona de turbulência se recordou que sua mãe lhe havia dito, várias vezes, que ele quase nasceu em um avião e que costumava falar com este filho ainda no ventre. Ela fazia tratamento em outra cidade, depois de dez abortos espontâneos. Ao aterrissar, imediatamente buscou saber o que ela lhe dizia, e a resposta foi: “agarre-se forte!”. Impactado, buscou um lugar para se sentar. Ao relatar o ocorrido para analista, ela lhe disse: “Você encontrou a marca original!”.
Em sua experiência analítica, tal como comunica, a fórmula da fantasia se escreveu como “agarre-se no Outro”. A retroalimentação entre o “sintoma carrapato” e a fantasia delineava uma dinâmica pulsional ordenada pelo objeto oral, presente em um dos sonhos. Perfilaram-se as declinações agarrar-se, fazer-se agarrar, soltar-se, não se deixar agarrar, que podiam ser reconhecidas nas eleições que fazia ao longo da vida, inclusive a da analista. E não foi fácil deixá-la. Gozo e desejo se articularam no sinthoma “Garra” (extraído de garrapata, em espanhol, “garra-pata”), nome para seu ser de gozo, invenção singular que marca seu estilo de trabalho pela causa analítica.