YOLANDA VILELA
Questões Freudianas
Introduzir a questão do transexualismo exige evocar Freud e suas formulações acerca da subjetivação da diferença sexual. Embora os desenvolvimentos teóricos freudianos não digam respeito diretamente ao fenômeno transexual, uma vez que as transformações corporais que acompanham esse fenômeno foram incrementadas a partir da segunda metade do século passado, as elaborações de Freud sobre os destinos do complexo de Édipo podem ser esclarecedoras se retomadas em uma articulação com as contribuições ulteriores de Jacques Lacan.
Assim, pode-se dizer que Freud aponta saídas possíveis para a trama edipiana e elabora questões relativas à subjetivação da diferença sexual em alguns textos da chamada segunda tópica. Entre os seus artigos mais fundamentais sobre o tema, encontram-se: “A organização genital infantil” (1923), “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924) e “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925). Assim, no que diz respeito ao menino, por exemplo, Freud dirá que a simples ameaça de castração por parte dos adultos não tem grandes efeitos sobre ele; da mesma forma, a visão do sexo das meninas o faz dizer “isso vai crescer”. Em outras palavras, para Freud, é necessário que os dois fatores estejam juntos: ameaça e visão do órgão do outro sexo para que algo do “complexo de castração” possa surgir e operar. Ao admitir a possibilidade da castração, o menino se vê, então, obrigado a renunciar à sexualidade, que se manifesta, nessa época, sobretudo, pela masturbação.
Assim, o “complexo de castração” é determinante quanto à dissolução do complexo de Édipo, pois ele exerce uma função normalizante — função que não é completa nem constante: frequentemente, o menino não renuncia à sua sexualidade, seja porque ele não quer admitir a realidade da castração, dando prosseguimento à masturbação, seja porque, apesar da interrupção da masturbação, a atividade fantasmática edipiana persiste e até mesmo se acentua, incidindo sobre a vida sexual na idade adulta.
Ao estabelecer a primazia do falo para os dois sexos, Freud insiste sobre o fato de que o justo valor da significação do “complexo de castração” só pode ser apreciado com a condição de considerarmos que ele se dá na fase do primado do falo. É possível extrair daí duas consequências.
A primeira é que as experiências prévias de perda (do seio, das fezes) não têm a mesma significação que a castração, visto que elas acontecem no âmbito da relação dual entre mãe/criança, ao passo que a castração é justamente o que pode colocar um fim nessa relação (para os dois sexos). Em outros termos, para Freud, só se pode falar em complexo de castração a partir do momento em que a representação de uma perda está associada ao órgão genital masculino.
A segunda consequência é que o complexo de castração diz respeito tanto ao homem quanto à mulher. O clitóris da menina se comporta, inicialmente, exatamente como um pênis. Porém, na menina, a visão do órgão do outro sexo desencadeia imediatamente o complexo. A partir do momento em que ela percebe o órgão masculino, ela se sente vítima de uma castração. Ela se considera, de início, uma vítima isolada, depois estende progressivamente essa ideia às outras crianças e aos adultos do mesmo sexo, que lhe parecem, então, desvalorizados. Tal é a tese de Freud em “A dissolução do complexo de Édipo”. A forma de expressão que toma na menina o complexo de castração é a inveja do pênis: “Logo de entrada ela julgou e decidiu, ela viu isso, sabe que não o tem e quer tê-lo”: eis o que afirma Freud em “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”.
A inveja do pênis pode subsistir como inveja de ser dotada de um pênis, mas a evolução normal é aquela em que ela encontra seu equivalente simbólico no desejo de ter um filho, o que leva a menina a escolher o pai como objeto de amor. O “complexo de castração” exerce, portanto, uma função normalizante, fazendo a menina entrar no Édipo, orientando-a para a heterossexualidade.
No entanto, Freud não deixa de evocar as consequências patológicas do complexo de castração na mulher: a inveja do pênis pode persistir indefinidamente no inconsciente e ser um fator de ciúmes e depressão.
Esse resumo das questões freudianas aponta, a nosso ver, para as dificuldades que envolvem a questão da subjetivação da diferença sexual. Se, nesses desenvolvimentos, a hipótese da psicose não é aventada por Freud, os impasses da sexuação retomados por Lacan encontram aí um terreno fértil para nos orientar sobre as sutilezas do transexualismo enquanto fenômeno (clínico) moderno.
O Aporte Lacaniano
Ao retomar, portanto, o “complexo de castração” freudiano, Lacan vai limitar-se ao termo “castração”, que ele irá definir como uma operação simbólica que determina uma estrutura subjetiva.
Assim, para Lacan, a castração não diz respeito ao órgão real; é precisamente quando a castração simbólica não acontece, isto é, nas psicoses, que se podem observar mutilações de partes do corpo (do pênis, por exemplo) que confirmam que aquilo que foi foracluído do simbólico retorna no real.
A castração incide, portanto, sobre o falo na medida em que ele é um objeto imaginário, e não real. É por isso que Lacan não considera as relações do “complexo de castração” e do “complexo de Édipo” de maneira oposta, segundo os sexos.
Para ele, a criança (menino ou menina) quer ser o falo para captar o desejo da mãe (o chamado primeiro tempo do Édipo). A interdição do incesto (segundo tempo) deve desalojá-la dessa posição ideal de falo materno. Essa interdição se deve ao pai simbólico, ou seja, uma lei que deve ser garantida pelo discurso da mãe. Tal interdição não visa somente à criança, ela visa também à mãe, por essa razão, é compreendida pela criança como algo que castra a mãe. No chamado terceiro tempo do Édipo, intervém o que Lacan chama “pai real”, aquele que tem o falo ou, mais exatamente, aquele que é suposto tê-lo, aquele que faz uso do falo e se faz preferir pela mãe. O menino, que renunciou a ser o falo da mãe, irá identificar-se ao pai; quanto à menina, esse terceiro tempo lhe ensinou de que lado ela deve-se voltar para encontrar o falo.
A castração implica, inicialmente, a renúncia a “ser o falo”, mas ela leva também à renúncia a “ter o falo”, ou seja, renúncia quanto a ser o mestre, o possuidor do falo.
É notável que o falo, que aparece sob vários aspectos, nos sonhos e nas fantasias, esteja sempre separado do corpo. Lacan explica essa separação como um efeito da elevação do falo à função de significante. Em outras palavras, a partir do momento em que o sujeito é submetido às leis da linguagem, ou seja, a partir do momento em que o significante fálico entra em jogo, o objeto fálico é imaginariamente cortado (castrado). Correlativamente, ele é “negativizado” na imagem do corpo, o que significa que o investimento libidinal que constitui o falo não é representado nessa imagem (a castração desvincula o falo do corpo e afirma uma não correspondência entre falo e órgão).
A castração não incide somente sobre o sujeito, ela incide também, e antes de tudo, sobre o Outro: uma falta simbólica é então instaurada. Como se disse, a castração é apreendida imaginariamente como sendo a da mãe. Mas essa falta da mãe, é preciso que o sujeito a simbolize, ou seja, é preciso que o sujeito reconheça que não há no Outro uma garantia à qual ele se possa agarrar.
A partir dessas considerações, pode-se retomar a máxima de Freud que se encontra em “A dissolução do complexo de Édipo”, segundo a qual “a anatomia é o destino”, a fim de se introduzir algumas questões referentes ao transexualismo. Se a anatomia foi evocada por Freud como um fator inerente aos destinos do complexo de Édipo, ou seja, se tornar-se homem ou mulher é algo que depende da subjetivação da diferença sexual, seria preciso indagar por que o destino estaria, no caso de muitos sujeitos transexualistas, literalmente, vinculado à anatomia.
Considerações Gerais Sobre O Transexualismo
Em seu estudo sobre o transexualismo, Marina C. Teixeira (2012) esclarece que esse fenômeno se intensificou a partir dos anos 1950, instaurando questões de ordem biológica, social, psiquiátrica, política, ética e outras. O transexualista postula, antes de tudo, o direito de pertencer ao sexo de sua escolha, ou seja, não há que se conformar com a anatomia. Com as técnicas desenvolvidas a partir dos progressos da ciência — técnicas de tratamento hormonal, conhecimentos na área da endocrinologia, etc. — as barreiras para se atravessar fronteiras e escolher o próprio sexo deixaram de existir. Assim, o transexualista pode ser definido como o homem ou a mulher que desejam mudar o próprio sexo para viver conforme o sexo oposto ao seu de nascimento, ou que já mudaram o sexo anatômico de origem e adquiriram as características do sexo oposto, por meio de intervenções no corpo.
No final dos anos 1950 e durante a década de 1960, a combinação entre fatores genéticos, hormonais, gonadais e anatômicos tornou-se a verdade biológica sobre a determinação sexual nos seres humanos. Essa afirmação biológica da multiplicidade causal da diferença sexual consolidou a diferença sexual em termos de duas classes (macho e fêmea) e tornou possível determinar a chamada “condição intersexuada”, propiciada por um arranjo patológico (contingencial) entre esses fatores. O hermafroditismo ilustra exemplarmente essa condição intersexuada devido a um distúrbio biológico.
A condição intersexuada acabou fundamentando a hipótese da “identidade de gênero” (“eu me identifico com o gênero tal”…, por exemplo) como o “terceiro nível de diferenciação sexual”, ou uma terceira classe, na qual a identidade passa a ser definida pelos atributos psíquicos, como o gênero. Nessa terceira classe, o sexo seria especificado independentemente da presença ou da ausência de pênis.
Assim, lembra Teixeira (2012), os “estudos do gênero” foram animados pela perspectiva de que existem três níveis do sexual. No nível biológico, a natureza vai além da deformidade, pois, entre o tipo macho e o tipo fêmea, existem seres humanos que apresentam uma mistura dos dois sexos. No nível social, existe um código sexuado por meio do qual a sociedade atribui a cada um um papel segundo o seu sexo, de tal modo que a vida sexual é orientada por esse código. No nível psicológico, trata-se do “sexo subjetivo”, aquele que o indivíduo reconhece em si mesmo.
No nível psicológico, os transexualistas seriam a evidência de que, de fato, existiria o terceiro nível de diferenciação sexual, ou seja, o “sexo psicológico”, pois o sexo que esses sujeitos reconhecem em si mesmos não equivale à determinação anatômica.
Dessa forma, a ausência de adequação entre sexo e gênero, no transexualismo, se dá sem quaisquer perturbações, sejam elas genéticas ou hormonais. Por essa razão, os casos de transexualismo não podem ser incluídos na zona de intersexo; mais do que isso, o sujeito transexual passou a ser a prova viva da existência do terceiro nível da diferenciação sexual. O fenômeno “trans” tornou-se o expoente máximo da verdade da não correspondência entre sexo e gênero.
O Transexualismo Segundo Stoller
Robert Stoller, psiquiatra americano de formação psicanalítica, começou estudando os intersexuados e chegou, em seguida, aos transexuais. Tanto em suas pesquisas como em sua clínica, ele sempre privilegiou a disjunção entre sexo e gênero. Stoller tentava isolar uma estrutura que fosse própria do transexualismo, pois ele acreditava ter cernido a sua forma pura, que, por sua vez, estaria vinculada ao momento de formação do que chamou “núcleo fundamental da identidade de gênero”. Em 1968, Stoller publicou Sex and gender, em que afirmava, entre outras coisas, ter descoberto algo que escapara a Freud: a hipótese de uma identidade de gênero feminina no âmago da sexualidade humana. Para Stoller, o gênero seria o sentimento íntimo de pertencimento a um sexo. O núcleo da identidade de gênero (masculinidade e feminilidade) se formaria no estágio mais precoce da relação de objeto, estágio em que a criança se encontra fundida simbioticamente com a mãe. Assim, toda criança traria a marca de uma impregnação (imprinting) psicológica da feminilidade primitiva devido ao contato simbiótico com a mãe.
Para Stoller, a aquisição da identidade de gênero se processaria em três níveis. Em um primeiro momento, há o encontro da criança com a protofeminilidade (feminilidade primordial); em um segundo momento, o núcleo da identidade de gênero é fixado em função do modo como a mãe conduz a separação ou o afrouxamento do laço simbiótico primitivo entre ela e a criança; e, em um momento posterior, surgem os conflitos propriamente freudianos. Segundo Stoller, o desejo da mãe (segundo momento) seria fundamental na gênese do transexualismo. Ele chega a falar em uma verdadeira “programação” da criança pelo desejo da mãe. Para Stoller, portanto, a origem do transexualismo se deve à prevalência da feminilidade experimentada de modo absolutamente gratificante, e por isso mesmo fixada como núcleo da identidade de gênero.
Vale lembrar que, nos casos acompanhados por Stoller, os sujeitos não deliravam ao modo do Presidente Schreber, isto é, eles não apresentavam uma psicose extraordinária; ao mesmo tempo, esses transexuais eram relativamente apaziguados quanto à identidade de gênero, ou seja, prevalecia a certeza de que o sexo anatômico estava absolutamente na contramão do gênero, e não a dúvida quanto ao pertencimento a este ou àquele sexo. Porém, a grande maioria dos transexuais vivia invadida por sentimentos depressivos, tristeza e angústia pela inadequação entre sexo (corpo) e gênero. Esse quadro contribuiu para que Stoller solidificasse cada vez mais a sua hipótese segundo a qual é uma perturbação da identidade de gênero que se encontra no centro da questão do transexualismo.
No que diz respeito ao tratamento desses sujeitos, Stoller tinha certa prudência, uma vez que os sujeitos operados apresentavam, a médio e a longo prazos, quadros bastante graves. Ele era favorável às terapias iniciadas precocemente com aquelas crianças que apresentassem uma sintomatologia indicando transexualismo: Stoller preconizava a criação de um “complexo de Édipo artificial” para esses casos.
O que interessa ressaltar aqui é que, apesar dos resultados incertos da longa experiência de Stoller com os transexuais, a disjunção entre sexo e gênero consolidou a apreensão social do fenômeno mais em concordância com o pensamento de Stoller e menos em articulação com o campo das psicoses.
Lacan E A Face Psicótica Do Sujeito Transexualista
As referências de Jacques Lacan sobre o transexualismo não são abundantes; porém, suas indicações são precisas e esclarecedoras quanto ao que, de fato, está em questão na grande maioria dos casos de transexualismo, seja feminino, seja masculino. Assim, em 1971, no seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan faz referência a Robert Stoller, nos seguintes termos:
“Como só os reencontrarei na segunda quarta-feira de fevereiro, talvez vocês tenham tempo de ler alguma coisa. Visto que estou recomendando um livro, para variar, isso fará aumentar sua tiragem. Chama-se Sex and gender (Sexo e gênero), de um certo Stoller. É muito interessante de ler. Primeiro porque desemboca num assunto importante — o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos” (LACAN, 1971/2009, p.30).
O discurso analítico indica a condição prévia para que um ser falante tenha um sexo, qualquer que seja a sua anatomia inicial. Essa condição prévia é o consentimento com a inscrição na função fálica. Isso implica experimentar o gozo fálico, que é um gozo positivado, localizado em um órgão tornado instrumento (organon) por sua correlação com o significante fálico. Porém, o gozo fálico comporta também a negatividade do complexo de castração freudiano: o sujeito goza de sua castração, a partir de sua castração. Uma vez inscrito na função fálica, o sujeito irá escolher colocar-se como homem ou como mulher — esses termos só têm sentido a partir da abordagem do outro sexo e da maneira segundo a qual ele usará, para isso, a função fálica.
Portanto, para o discurso psicanalítico, não há sexuação sem função fálica. Na psicose, que está excluída disso, o sexo toma formas instáveis, a serem construídas em cada caso, formas que são frequentemente correlatas ao empuxo-à-mullher que Lacan associou ao desencadeamento.
Em O Seminário, livro 19: …ou pior, Lacan faz outra declaração contundente que esclarece quanto ao que está em jogo no caso do sujeito transexualista. Vejamos:
“Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, realmente é preciso pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o real por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. Sua paixão, a do transexual, é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. O transexual não quer mais ser significado como falo pelo discurso sexual, o qual, como anuncio, é impossível. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que, na medida em que é impossível, é a passagem do real” (LACAN, 1971-1972/2012, p.17).
Esse “erro comum” ao qual se refere Lacan é o do meio social, dos pais, que atribuem um sexo ao sujeito em função de sua anatomia. Quando o adulto designa “é um menino” ou “é uma menina”, tal nomeação é feita sob a égide da linguagem e do complexo de castração. O “é um menino” ou o “é uma menina” não permanece apenas no plano do real biológico, anatômico. Dessa forma, um pai (ou uma mãe) que diz “é um menino, é porque ele tem um instrumento fálico e deve-se comportar em conformidade com isso”, ou “é uma menina porque ela não tem esse instrumento fálico e espera-se dela certa feminilidade”, etc. É nesse sentido que menino e menina passam a ser significados do significante falo. Aí está o “erro comum”: isso só será verdade se a criança consentir com o gozo fálico, se ela tirar daí consequências em sua relação com o homem e com a mulher, e as aceitar.
O que ensina Lacan a partir dessas duas elaborações é que, se a criança rejeitar o gozo fálico, ou seja, se houver uma recusa do significante do Nome-do-Pai, os ditos dos adultos serão necessariamente invalidados, logo, falsos. Segundo Lacan, portanto, o transexualista é aquele que quer livrar-se do erro que fez a pequena diferença anatômica passar para o real por meio da linguagem. Ele quer, então, mudar de órgão para liberar-se desse erro, visto que foi a partir do órgão que ele foi significado menino ou menina nas categorias fálicas por ele recusadas. Não é o órgão que o transexual rejeita, mas o significante enquanto significante do gozo sexual que, por não estar correlato ao falo, é demasiado real. Daí a sua ideia de intervir no órgão, realmente, intervir sobre o que ele chamará de “erro da natureza”. Recusar a função fálica o situa como psicótico, sua relação com o sexo escapa à lógica fálica da sexuação. O sexo deverá, então, ser inventado para o sujeito, de modo a fazer suplência à função que lhe falta.
Em um texto publicado na revista La Cause Freudienne, G. Morel (1995) comenta essas elaborações de Lacan e apresenta um caso clínico de transexualismo feminino. Nesse artigo — “Um caso de travestismo feminino” — a autora afirma ter entendido melhor o porquê de esses sujeitos conseguirem convencer médicos e psiquiatras de que o seu único problema é terem nascido do lado errado quanto ao sexo. O que explica o aumento, sobretudo nos EUA, das operações de transexuais mulheres, o que era raro nos anos 1970, quando Stoller publicou Sexo e gênero. Ela afirma:
“A diferença stolleriana entre sexo anatômico e identidade de gênero psíquica referida à consciência íntima de se pertencer a um sexo e não a outro não é de muita ajuda conceitual. Contudo, é sobre ela que se apoiam maciçamente os clínicos americanos e a jurisprudência, principalmente na França” (MOREL, 1995, p.21).
Um Fragmento Clínico
Alguns fragmentos do caso acompanhado por Morel (1995) serão aqui reproduzidos. É possível situar, na descrição das entrevistas, as sutilezas que envolvem a lógica de uma psicose ordinária. A paciente chega ao consultório da analista explicando que é mulher anatomicamente e legalmente, mas que se sentia, se experimentava, como homem. Fora aconselhada a procurar um psicanalista antes de passar pela operação que lhe devolveria seu “verdadeiro corpo de homem”. A cirurgia a ajudaria a encontrar a “prova de seu ser” — o pênis — que harmonizaria seu corpo com a convicção íntima de pertencer ao sexo masculino.
No início, sua convicção era uma impressão estranha, um mal-estar em ser menina. Uma das únicas lembranças de sua infância constituía a matriz de sua decisão de mudar de sexo: aos seis anos de idade, Ven viu um menino urinar em pé e disse a si mesmo: é isso que quero ser, um menino!
De início, a analista considera tal lembrança bastante freudiana, pois, ao ver o pênis de um coleguinha ou de um irmão, “ela julgou e decidiu, ela viu isso, sabe que não o tem e quer tê-lo”, como descreve Freud, em “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”. O que estaria por trás dessa lembrança encobridora, dessa imagem banal: uma cadeia significante articulada e recalcada que remeteria ao complexo de castração freudiano? Ou o vazio da significação fálica, a foraclusão do Nome-do-Pai? Em outras palavras, observam-se, aqui, as sutilezas que envolvem o diagnóstico estrutural, pois a sintomatologia histérica pode, muitas vezes, e até certo ponto, coincidir com aquela de uma psicose não desencadeada.
O plano da paciente de mudar de sexo, apoiado em uma certeza, apontava inicialmente para uma psicose. Porém, o sujeito apresentava uma produção onírica bastante metafórica e passava do masculino para o feminino com certa facilidade, o que fez com que sua formulação parecesse menos segura do que nas primeiríssimas entrevistas. A hipótese de um grande acting-out ancorado em uma fantasia construída a partir de cenas traumáticas violentas da sua infância não estava descartada. Ou seja, foi necessário um certo tempo para descartar a hipótese de histeria e decidir quanto a um diagnóstico de psicose não desencadeada sem nenhum fenômeno elementar.
Outros Detalhes Do Caso
Ven é filha de um funcionário importante de um governo deposto após uma mudança de regime. O pai foi, então, enviado para um campo de refugiados em um país vizinho. A mãe ficou com o filho, que ela julgava frágil. Ven foi enviada para a casa dos avós maternos. Três anos depois, quando Ven tinha seis anos, o pai volta e vai buscá-la. Ela se lembra dessa volta para casa, mas não tem lembrança alguma do período entre seus três e seis anos. Antes de chegar à França, a família ficou um ano em um país vizinho, onde as condições de vida eram deploráveis.
A transformação de Ven em homem foi progressiva: houve a visão do garotinho urinando no campo de refugiados acompanhada da convicção “é isso que sou ou que quero ser”; certa raiva da mãe, que insistia em vesti-la de menina, toda arrumadinha; inveja do irmão, preferido da mãe; quando os seios nascem, ela os esconde; como sua voz não se torna grave na adolescência, passa a exigir que seus colegas a tratem no masculino (em casa era tratada no feminino). Aos 20 anos passa a usar um cilindro dentro da cueca para “obter a protuberância”; corta os cabelos bem curtos e usa as roupas de estudante do pai, “as únicas que lhe caem bem”.
Um primeiro ponto que desvela certa alteração do simbólico diz respeito ao pai e à lei: quando da chegada da família na França, no momento de declarar os filhos, ela acredita que bastaria que o pai a tivesse declarado homem para que tudo fosse diferente. A palavra do pai teria podido não apenas modificar o seu gênero, mas, talvez, metamorfosear sua anatomia aos sete anos de idade. O pai teria podido, assim, reparar esse erro da natureza. É como se o desejo do pai tivesse força de lei. Há aí uma espécie de continuidade entre o simbólico da lei e o imaginário do corpo.
Segundo Morel (1995) a psicose do sujeito aparece justamente em um ponto que poderia ser confundido com uma histeria. Trata-se da questão do retorno, no real, da questão do sexo. Essa questão se enuncia pelo viés do pequeno outro: o olhar das meninas a atormenta, ao passo que aquele dos meninos a deixa indiferente. Diante do enigma representado pelo olhar das meninas, Ven constrói alguns cenários que poderiam remeter à questão histérica “sou homem ou mulher?” Contudo, nesse caso, o olhar é fonte de grande tomento, de angústia e de tentativas de passagem ao ato.
Para Ven, o ato sexual equivale ao estupro. Ela não sente desejo sexual nem por homens nem por mulheres, ela tampouco se masturba. O que ela quer da mulher é um amor platônico, absoluto, uma amizade perfeita, da qual o amor e o gozo estão evidentemente excluídos. Por que, então, um pênis? Para dizer toda a “verdade”. “Sou de fato do sexo macho, mas como prová-lo?”
Para esse sujeito, no lugar do meio-dizer, há a verdade toda, no lugar do falo velado, há o pênis como prova absoluta, e, no lugar da sutil mascarada, a roupa masculina, que a protege de um desvelamento por uma mulher, que, em seu caso, seria trágico, pois Ven não tem o pênis como prova.
O que parece paradigmático, nesse caso, e que pode esclarecer quanto à complexa demanda de certos sujeitos transexuais é a própria função do travestismo: aqui, é o próprio travestismo que, ao funcionar como suplência, permite evitar uma intervenção real no corpo. Afinal, como diz a paciente: “Parecer é ser”.
Referências Bibliográficas
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FREUD, S. (1925/1974). “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, p.309-320.
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TEIXEIRA, M. C. A pessoa que se é. As relações entre personalidade e corpo numa sexuação transexualista. Tese de doutorado defendida na FAFICH/UFMG em 2012. Inédita.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Pesquisa em Psicose, no dia 19/10/2012.