JÉSUS SANTIAGO
O que se impõe como princípio de orientação para a clínica psicanalítica se impõe também para a política lacaniana da psicanálise. Se não há clínica sem ética, o mesmo acontece com a política que visa a se constituir como o horizonte que organiza e gere a vida institucional de uma comunidade de analistas. Logo, não há uma política lacaniana sem ética. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições que tentam se inspirar na prática institucional exercida por Jacques Lacan durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?
Em artigo publicado no último número da revista La Cause freudienne[1], J.-A. Miller avança a ideia de que uma tal ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas perspectivas distintas: de um lado, a “ética da boa intenção”, que não é freudiana e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível com o campo freudiano. De outro lado, a “ética das consequências”, que sempre se julga pelo ato e, mesmo, por meio do estatuto do ato, por seu valor e por suas consequências. Não há dúvida de que essas duas perspectivas éticas sempre estão presentes como princípio para os que se dispõem a governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.
Evidentemente, essas éticas aparecem como tendências, se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das questões que concernem às atividades cotidianas da instituição psicanalítica: a formação, o recrutamento, a autorização, a garantia, a produção, etc. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da boa intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que seria uma instituição, que, supostamente, responderia pelos fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra prisioneira dos limites da figura da “bela-alma”, que, no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação na qual estamos todos envolvidos.
Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura, necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de Escola importa muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no real de uma comunidade de analistas. É só observar o que, nos últimos anos, temos feito com relação ao discurso analítico: mais do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade, dado provas de uma ação que visa a injetar novos elementos nesse real.
Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de que o analista deve se despojar de sua enfatuação, dando testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção, proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos a empreitada de dissolver os grupos e pôr em questão a lógica dos chefes e líderes e passamos à fundação da Escola. E, o que não poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de entrada como uma forma de reconhecer que a autorização do analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto e de sua Seção Clínica.
A proposta do Instituto surge nos rastros da insistência de Jacques Lacan em criar um Departamento de Psicanálise no contexto do ambiente universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos conhecem como Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris-VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de refundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente ao nosso mestrado) e do doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O próprio Miller afirma que, se ele inventou o “Instituto foi para prosseguir, na França e em outros lugares, esta via que não é outra senão a de Lacan”[2]. E a pergunta que emerge, a partir daí, é a seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, por que seria necessário criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de fundação, que promoveu uma iniciativa institucional e outra? Trata-se, simplesmente, de espaços institucionais geográficos distintos?
Claro que não! Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende, invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia própria do discurso analítico se justifica em função de que é o saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que anima a existência da Escola e o que permite ter como seu sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe existe apenas porque a experiência analítica secreta essa forma de saber, cuja lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e se produz por intermédio da transferência e, como modo de saber, ele está genuinamente ancorado na experiência analítica.
Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise, lhe é característico, isto é, o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio do discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola à medida que, ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação, em detrimento daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a transferência de trabalho — transferência que apenas pode se personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto, entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que permanecerá para sempre como atópico. “Enquanto que a Escola se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região, país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo, tal como o matema”[3].