GUSTAVO STIGLITZ
Psicanalista, AME da EOL/AMP
stiglitz.gustavo@gmail.com
Resumo: O autor investiga a relação entre a psicanálise e a política e considera que Lacan tenha operado uma inversão na premissa freudiana. Se, para Freud, a política é o inconsciente, para Lacan, o inconsciente é a política. A partir daí, o autor delimita uma definição da política a partir da discussão sobre o final de análise, o que o conduz a abordar a política a partir de uma perspectiva não-toda. Por fim, se pergunta sobre qual seria a participação do psicanalista no campo político.
Palavras-chave: psicanálise; política; inconsciente, final de análise; não-todo.
Psychoanalysis and Politics: a structural friendship
Abstract: The author investigates the relationship between psychoanalysis and politics and proposes that Lacan operated an inversion of the freudian premise. If, for Freud, politics is the unconscious, for Lacan, the unconscious is politics. From there, the author delimits a definition of politics through the discussion of the end of analysis, which leads him to approach politics from a not-whole perspective. And finally, questions the participation of psychoanalyst’s in the political field.
Keywords: psychoanalysis; politics; unconscious; end of analysis; not-whole.
A psicanálise, desde sua origem, esteve ligada à política.
Não é uma causalidade que tenha nascido na Viena de Freud, cosmopolita, multirracial e multirreligiosa, na qual o reinado do pai começava a se rachar e onde o social prescrevia a repressão da sexualidade.
Freud estabeleceu a relação entre psicanálise e política nos primeiros parágrafos de “Psicologia de grupo e a análise do ego”, ao afirmar que “a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social”, já que “Algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente” (FREUD, 1921/1996, p. 81).
Para Freud, portanto, a política é o inconsciente no sentido de que ambos respondem à mesma estrutura e causa. Lacan, por sua vez, foi imprimindo sua própria marca a essa relação até invertê-la.
Uma ideia inicial — a encontramos no Seminário 1 — é a de relacionar o final da análise com a política. Cito-o:
“Uma vez realizado o número de voltas necessárias para que os objetos do sujeito apareçam, e sua história imaginária seja completada, uma vez que os desejos sucessivos, tensionários, suspensos, angustiantes do sujeito estejam nomeados e reintegrados, nem por isso tudo está acabado. O que esteve inicialmente lá, em O e depois aqui em O’, depois de novo em O, deve ir se reportar no sistema completado dos símbolos. A saída mesma da análise o exige. Onde deve parar esse reenvio? Será que deveríamos levar a intervenção analítica até diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética? É uma questão. Não é fácil de resolver, porque, na verdade, o homem contemporâneo se tornou singularmente inábil para abordar esses grandes temas. Prefere resolver as coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo e outras banalidades. Donde a gravidade do problema que coloca a formação humana do analista” (LACAN, 1953-54/1986, p. 229-230).
Não seria esse um convite para a participação política do analista, ou, pelo menos, sua entrada no debate?
É claro, como disse Miller, que o debate fundamental de Lacan sempre foi com a civilização, na medida em que ela elimina a vergonha com o que está em curso na globalização (MILLER, 2002).
“Nem tudo está acabado”, como diz a citação, o que faz do final de análise não um ponto de fechamento, mas sim de abertura em relação a uma lógica não-toda. Nesse sentido, a pergunta de Lacan — precedida por esse “nem tudo está acabado” — contém uma armadilha.
A grande tradição dialética é a que opõe tese e antítese para chegar a uma síntese, o que fecha a questão em jogo; enquanto a experiência analítica nos confronta hoje com uma dialética no campo social, mas mais no estilo da “dialética negativa” de Theodor Adorno (1966), que ataca a tradição libertando-a de sua natureza afirmativa e questionando qualquer totalidade.
Hoje, teria que acrescentar, deveríamos impulsionar a intervenção analítica para dialogar com algumas tantas novidades na civilização: com os defensores da tese neuro, que pretendem uma ciência natural da mente e dos fundamentos neuronais do pensamento separado da linguagem; com aqueles que defendem tomar ao pé da letra os dizeres de uma criança que, sem saber direito do que se trata, afirma que quer trocar de sexo; com os que acreditam que as neuroimagens permitem ver “o invisível do pensamento” (SANCLAY apud CASTENET, 2008, tradução nossa.).
Por fim, há um laço entre psicanálise e política — tanto a nível de micropolítica (condução de um tratamento analítico, intervenções analíticas em instituições de saúde, educação, jurídicas) como no nível da macropolítica (impacto na elaboração e regulação das leis, a difusão dos tratamentos, etc.) — que pode ser resumido na ideia de que os analistas têm uma responsabilidade no campo social, a de ler e interpretar as inconsistências dos discursos através dos quais a sociedade contemporânea se sustenta.
Assim, à pergunta de Lacan sobre se deveríamos promover a intervenção analítica seguindo a tradição dialética, podemos responder à maneira do conjunto aberto colocado pela dialética negativa, que se aproxima mais da ideia de resto — e de resto sintomático —, própria do ensino mais tardio de Lacan.
A inversão lacaniana
Lacan (1967) inverte a ideia freudiana das relações entre psicanálise e política no seminário “A lógica do fantasma”.
Ao contrário de Freud, que explica a política através do recurso ao inconsciente pela identificação, repressão das representações e satisfação e retorno do recalcado, Lacan enuncia: “não digo que a política é o inconsciente, digo simplesmente que o inconsciente é a política” (LACAN, 1967, tradução nossa). É a inversão da posição freudiana.
No desenvolvimento de “Intuições milanesas”, Miller (2011) ressalta que o interesse de tal afirmação é que ela levanta a questão da política como o que explicaria o inconsciente e encontra uma boa definição “infiltrada de lacanismo” na obra A democracia contra ela mesma, de Marcel Gauchet: “É nisto que consiste especificamente a política: ela é o lugar de uma fratura da verdade” (GAUCHET apud MILLER, 2011). Ou seja, a política definida como um campo estruturado em torno de uma falta, que podemos escrever com o matema lacaniano S(A/).
Para esse autor, a democracia implica um efeito depressivo devido a um consentimento com a divisão da verdade. E diz:
“Doravante sabemos que estamos destinados a encontrar o outro sob o signo de uma oposição sem violência, mas também sem retorno nem remédio. Encontrarei sempre diante de mim não um inimigo que deseja minha morte, mas um contraditor. Há qualquer coisa de metafisicamente aterrorizante nesse encontro pacificado — gosto muito dessa ligação entre terror e pacificação — a guerra se ganha, diz ele, embora essa confrontação nunca tenha terminado” (GAUCHET apud MILLER, 2011).
Novamente encontramos uma analogia com a lógica dos conjuntos abertos, como na dialética negativa de Adorno. É uma visão da política a partir de uma perspectiva que se opõe ao todo dos ideais.
Uma perspectiva não toda
Em “Nota italiana”, Lacan afirma que o analista surge do não todo. Há também um confronto que nunca termina: aquele que se dá frente ao real do psicanalista. O que é um psicanalista? É a pergunta que condensa a fratura da verdade no campo da psicanálise, de onde emerge seu próprio real.
Há uma espécie de “amizade estrutural” entre a posição do analista e a política, não necessariamente a dos políticos.
Pela via da orientação lacaniana e com as perspectivas de Adorno sobre a dialética e de Gauchet sobre a política, podemos sustentar que, assim como a transferência analítica coloca em ato a realidade sexual do inconsciente — ou seja, a inexistência da relação sexual —, a política coloca em ato a inexistência do Outro.
A perspectiva não-toda, na psicanálise e na política, justifica e orienta a questão da incidência política da psicanálise.
O corpo político
“Lacan fala em algum lugar de uma participação política onde o psicanalista teria o seu lugar se fosse capaz disso. Vamos tomar como um desafio e ver se podemos enfrentá-lo”, disse Miller em 1997.
Esse desafio, ao qual nos convidou formalmente em 2017, na conferência de Madrid, com a criação da rede Zadig, tem seu fundamento no fato de que o não todo — aquele com que se depara ao final de análise — se conecta com a política entendida como a arte de lidar com o Outro que não existe (VICENS, 2018) e com os outros que, sim, existem.
É um desafio porque “o discurso político, o discurso do mestre, faz da identificação a chave de uma captura” (LAURENT, 2018), enquanto, no nível do corpo, temos que “Um corpo é o lugar que experimenta afetos e paixões, tanto o corpo político como individual. Paixões políticas novas surgem como acontecimentos de corpos políticos novos, e logo se transformam” (LAURENT, 2018).
Sobre o que aprendemos com os movimentos sociais no Brasil em 2013, Éric Laurent afirma que, nas mobilizações contemporâneas, se trata de
“[…] dois tempos da fantasia, que indicam perfeitamente um modo de laço social que não passa pela identificação de um traço comum, mas que, no entanto, funciona no registro de um corpo político produzido na qualidade de existência lógica, atravessado pelas paixões fantasísticas” (LAURENT, 2018).
O primeiro tempo do fantasma é do sujeito sem lugar, fading; o segundo é o “surgimento da articulação do sujeito com o gozo” (LAURENT, 2018).
A estrutura do Witz pode nos auxiliar a articular o corpo próprio com o corpo político. O Witz é um processo social em que a satisfação ressoa nos corpos ao mesmo tempo que produz, em cada um, uma satisfação singular no momento de rir (MILLER, 2011).
O destino é a política
O inconsciente é a política é um ponto de chegada que abre uma série de questões, dentre as quais destacamos a potência para a incidência política da psicanálise. Potência, que devemos dizer, não se efetiva como gostaríamos, questão que, no momento, deixaremos na nossa conta, como devedores.
É um ponto de chegada que tem como ponto de partida a ideia de que o sujeito do inconsciente é transindividual, como Lacan coloca em “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” e está demonstrado pela estrutura do Witz. Também é ponto de chegada a partir de “A anatomia é o destino”, de Freud (1924), que parafraseia “O destino é a política”, de Napoleão.
Se substituirmos a anatomia pelo corpo que fala, no lugar do destino teremos a palavra que condiciona o gozo, que, por sua vez, pela ausência da relação sexual, condiciona seu destino a ser social, político.
O destino do ser que fala é a política, devido à ausência de relação sexual.
E então?
Uma vez articulados inconsciente e política, qual seria a participação política da psicanálise?
“Talvez um efeito de despertar. Um despertar em relação ao que é, em última análise, sobre os ideais sociais” (MILLER, 1997, tradução nossa.), mesmo que isso seja… “pouca coisa”. Mas não importa quão pouco seja, não é pouco, por exemplo, demonstrar e transmitir a ideia do epistemólogo Georges Canguilhem de que a saúde é eminentemente social. Isso quer dizer que depende do discurso dominante, ou seja, para nós, os discursos da tecnociência e do capitalismo.
Não é pouca coisa apontar que as investigações no campo da saúde não começam por evidências, mas por decisões de mercado. E se há um tema em que a participação da psicanálise é necessária e urgente — inclusive para sua própria sobrevivência —, é o discurso avaliativo, e seu “grito estatístico”, que tem uma longa história.
Nosso adversário constante é a sociedade preditiva, na qual o desejo, o risco e o amor se desfazem frente à fascinação do regime do todo.
Não se trata de eliminá-lo, já que isso poderia nos eliminar, mas de mantê-lo assim, como adversário, porque, paradoxalmente, torna-se, desse modo, um fiador do não todo que pretende eliminar.