ANTONI VICENS
Psicanalista AME da ELP/AMP
avicens@me.com
Resumo: O autor empreende a tentativa de tradução e interpretação da frase lacaniana contida na conferência Joyce, o Sintoma, “UOM kitemum corpo e só-só Teium (…)”. A partir de questões sobre o ter e o Um, ele propõe algumas perguntas sobre o corpo a partir das consequências do ter: como UOM pode ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é corpo? E, para respondê-las, considera as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real.
Palavras chaves: UOM, ter, Um, corpo.
ONE BODY, ONE. TRANSLATION AND DECRYPTION
Abstract: The author undertakes the attempt to translate and interpret the Lacanian phrase, contained in the Joyce, the Symptom lecture, “LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (…)”. Based on questions about having and the One, he proposes some questions about the body from the consequences of having: How can LOM have One body? What is having? How is One? What is a body? And, to answer them, he considers the three dimensions of what is said: the imaginary, the symbolic and the real.
Keywords: UOM, having, One, body.
Na conferência de Lacan intitulada Joyce, o Sintoma (1975/2003a)[2], encontramos umas frases que reivindicam seu deciframento. A tradução publicada diz assim:
“UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium [nan-na Kum]. Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele éum (corp/aninhado). É o ter, e não o ser, que o caracteriza. […] UOM tem [a], no princípio. Por quê? Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se (LACAN, 1975/2003a, p. 561)[3].
Antes de abordar os enigmas ali contidos, fazemos nossa a observação de Jacques-Alain Miller sobre
“o tipo de atenção que a inteligência de Lacan requer, sobretudo em seu último ensino, repleto de tantas coisas ditas e apressado por ter tantas coisas a dizer, cuja enunciação atua em várias direções e cujo enunciado toma várias faces por vez. As referências mais pertinentes nem sempre são as mais explicativas, e nenhum índice de nomes próprios poderá detectá-las. Seria preciso um índice de não-ditos, pensamentos de fundo, alusões crípticas, ressonâncias e outros invisibilia” (MILLER, 2007, p. 214).
O que se segue é uma tentativa de tradução e interpretação dessas frases intraduzíveis, na qual nos deixamos orientar precisamente pela impossibilidade, no limite de traduzir sentidos de uma língua a outra. Se o sentido é gozo e o gozo é sempre atual, o sentido está submetido à mesma inércia. Não sabemos nada do gozo de Lacan, logificamos o que podemos dentro de uma lógica baseada no não-todo. Talvez possamos aproveitar, uma vez que, na versão, o sentido original, por ser enigmático, se perde; a ressonância do real surpreende melhor nossos sentidos. Transformar o impossível da tradução e o impossível contido na mensagem é uma questão de sorte, que tentamos.
UOM de base
Vamos por partes, mas também por conjuntos aleatórios sem partes. “UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium”. UOM substitui aqui o “homem”, o homem das ilusões humanistas, humanitaristas, humanitárias, o conquistador do Universo no qual ele supõe se refletir; trata-se do “homem que tem um corpo”. O “homem” é substituído por três letras que configuram algo que é quase um matema, quase um impessoal, quase uma jaculatória. Mas isso não o priva de ter um corpo e não mais de um. Então, segue uma frase, cahun corps. Custa, mas se pode ler o relativo de determinação: “UOM que tem um corpo”. Ter um corpo o define (LAURENT, 2016, p. 57).
Às vezes uma cedilha pareceria mais adequada, çahun corps, “isso tem um corpo”. Se fosse assim, Lacan nos levaria a afirmar que o Isso, le Ça, ou, em alemão, das Es, não é um corpo, senão que o tem, no sentido de sua propriedade e no de tê-lo agarrado também. Mas o que lemos é cahun. O que nos leva a outro desvio.
Claude Cahun foi o pseudônimo de uma mulher artista, inserida no movimento surrealista, que, de acordo com Jean-Paul Clébert (1996), “viveu no ódio de sua feminilidade”[4]. Ao contrário, embora não seja incompatível com esse ódio, parece que ela viveu habitando a estranheza de seu corpo. Escritora, atriz, fotógrafa, vestia-se de maneiras muito diferentes, brincando sempre com a ambiguidade de seu gênero. Ela mesma se considerava sua própria criação, com a identidade de um terceiro gênero. O mais conhecido são suas fotografias, geralmente autorretratos nos quais aparece olhando o espectador, ou olhando-se no espelho enquanto olha o espectador, ou com os olhos fechados. Sua parceira foi uma mulher que utilizava como pseudônimo o nome de um homem, digamos, um homem. Enquanto seu próprio nome, Claude, é epiceno em francês; seu sobrenome, Cahun, que foi de um tio-avô seu, o escolheu pela sua semelhança com o nome Caim. Significava assim a ambiguidade de seu gênero e recordava ao homem que, se possui um corpo, não o possui sem ódio.
Voltemos a Lacan: “Há que dizer assim: ele teihum…, e não: ele é um” (LACAN, 1975/2003a, p. 561) cor/niché. Para começar, corniché nos remete a cornichon, que significa “pepino[5]”, mas também “tolo” ou “bobo”. Ter um corpo nos entontece. Ter um corpo nos condena a estar incorporados nele; niché significa alojado em algum tipo de habitáculo, o que inclui também estar metido no nicho funerário. Falando do corpo, Lacan (1970/2003b, p. 407) se refere a ele como corpse, “cadáver”, resto de um ser falante, de forma alguma uma carniça (LAURENT, 2016, p. 35). O corpo do homem como Um antecipa sua qualidade de resto de uma existência também Uma. Logo Lacan especifica que UOM, no princípio, tem. Tem um corpo. E o ser provém daí, de uma existência que tem corpo, que o toma como Um, antecipando então sua morte.
O corpo cartesiano
O ser de UOM é ter um corpo. O ter é anterior ao ser: “o verdadeiro é que UOM tem [a], no princípio” (LACAN, 1975/2003a, p. 561). E logo se demonstra, no bordel epistemológico, como razão de ser.
Vamos ao começo: o Discurso do método, de Descartes. O pensamento cartesiano separa a alma do corpo: “a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo” (DESCARTES, 1996, p. 39). O corpo não lhe é necessário para pensar: “podia fingir que não tinha nenhum corpo” (Ibid., p. 38) na hora de acompanhar o pensamento com o ser. A partir dali, o corpo é entregue ao raciocínio geométrico, às leis estabelecidas por Deus na natureza (Ibid., p. 47). A luz, os astros, a terra, a água, o ar, o fogo, os minerais, as plantas, os animais, e “particularmente […] os homens” (Ibid., p. 52). Embora, para estes, Descartes confesse que lhe falta conhecimento:
“Contentei-me em supor que Deus tivesse formado o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na aparência exterior de seus membros quanto na conformação de seus órgãos, sem o compor com matéria diferente daquela que eu descrevera, e sem nele pôr, no início, qualquer alma racional ou qualquer outra coisa que lhe servisse de alma vegetativa ou sensitiva” (Ibid., p. 52).
E supõe ao corpo um calor sem lume, semelhante ao que se produz no feno verde ou na fermentação do vinho. Trata-se de todas aquelas coisas que se produzem no corpo “sem que pensemos nisso” (Ibid., p. 52), e que igualmente se produzem nos animais desprovidos de razão. Para Descartes, tudo aquilo que pensa está separado do corpo. E a partir dali convida seus leitores para se proverem de um coração de boi para estudar a mecânica da circulação sanguínea. Mas não pode deixar de inserir nessa mecânica “a geração dos espíritos animais, que são como um vento muito sutil, ou antes como uma chama muito pura e muito viva que, subindo continuamente em grande quantidade do coração para o cérebro, daí se dirige pelos nervos para os músculos, e dá movimento a todos os membros” (Ibid., p. 61). Para Descartes, esses “espíritos animais” são materiais, partículas ínfimas que formam parte da circulação sanguínea e estão submetidas, portanto, às leis da mecânica[6]. Descartes atribui a eles não somente o movimento animal, como também, após sua visita ao cérebro, a causa do sono e da vigília, dos sonhos, do senso comum, da memória, da fantasia. Segundo sua concepção, o corpo é um grande autômato complexíssimo, feito pelas mãos de Deus, mais admirável que as máquinas que podem ser inventadas pelos homens.
Parece, então, que a diferença está somente na complexidade. Mas Descartes adiciona algo a mais: o uso da palavra e a faculdade de conhecimento. Sempre poderíamos distinguir esses autômatos, ainda que imitassem nossas ações tanto como fosse moralmente possível. O termo “moralmente” que utiliza Descartes se refere ao sentido prático no uso do corpo, na medida em que possamos considerá-lo em nossa possessão. A máquina pode chegar a proferir palavras e inclusive signos corporais que valeriam como discurso, como o gesto de tocar alguém para chamar sua atenção ou emitir um grito de dor, mas não poderá tomar a linguagem como um fato de significantes: não é “possível conceber que combine as palavras de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto dissermos em sua presença” (Ibid., p. 63). Inclusive os homens mais embrutecidos podem fazê-lo. Esse é o automatismo dos mais perfeitos autômatos de hoje, como Siri, Alexa e outros dispositivos. A outra parte é que, embora possam executar ações ainda melhor que os homens, não atuam por conhecimento, quer dizer, pela faculdade de encontrar respostas singulares a ações imprevistas, “senão somente pela disposição de seus órgãos” (Ibid., p. 64).
Ter é sentir o não-ser
Vemos, em todas essas considerações, então, como o pensamento de Descartes dá por suposta a possessão do corpo como algo próprio e como condição da qual deduzir o ser. Já dissemos que o que acrescenta Lacan é que, se contamos com o corpo, o ser é secundário, o primário é o ter. E esse ter toma o sentido de captar ou de ser captado. Lacan (1972/2003c) o diz com a expressão ça s’y sent, “isso se sente aí”, ou seja, que o sentido (oposto à significação) é questão de sentimento, o sentido se sente[7]. Ou inclusive somos sentidos, somos sentido, que somente em um segundo tempo terá razão. A expressão francesa se escuta também como o adjetivo saisissant: surpreendente, chocante, estonteante, impressionante, cativador. Quer dizer, esse “ter” é algo sentido: não é questão de dedução, mas de ponto de partida; não é questão de possessão, mas de captura. O ser, em contrapartida, não se sente, não angustia, é uma dedução, mais ou menos, de razão, não de corpo. Tal como o diz Lacan (1975/2003a, p. 561): “Isso se sente, e uma vez sentido, demonstra-se”. A interpretação na psicanálise aponta a esse sentido e a essa captura; a interpretação é uma ressonância, uma ré-son, uma razão que se mostra primeiro pelos seus ecos e logo se demonstra em seus efeitos. Temos então isto: o sentido, o Sinn, diferenciado da Bedeutung (traduzida ora como significação ora como referência), é um efeito de corpo, uma ressonância que será razão.
Assim, o parlêtre, o ser-de-falar-com-letra, enquanto homem, enquanto UOM, tem um corpo. O parlêtre, enquanto mulher, é sintoma de um corpo, como as produções de Claude Cahun. Perguntamo-nos o que quer dizer “ter” no “ter um” e o que quer dizer “um” em “um corpo”. Dentro da problemática da oposição entre o ser e o Um, podemos compreender que o ter não se aplica ao ser[8]. O ser, não se o tem; se o é, eventualmente. O que UOM tem é algo que supõe um Um, que ainda não é ser, chamado corpo inicialmente. Vejamos as qualidades paradoxais desse corpo que UOM teria.
UOM não tem, então, ser; mas tampouco é Um. O Um não se tem, como não se tem a palavra; o Um, existe. Então vem UOM e tem Um corpo. E isso é um avoyement[9], que seria (em francês antigo) um “abrir caminho”; em francês atual se traduziria algo como uma terência, palavra que, se existisse, seria um sinônimo não exato de possessão. Como um ter sem possuir, sem agarrar. A palavra avoyement (LACAN, 1975/2003a, p. 561), além disso, guarda semelhança com aboiement, ladrido. Latir não é falar, mas se fazer escutar um som, com valor de semblante, que abriria o caminho… à formação do sintoma, com um discreto desprendimento. Talvez não seja demais recordarmos aqui o cachorro do conto de Sir Arthur Conan Doyle: seu silêncio era mais eloquente que seu ladrido, sempre que alguém escutasse esse Ø. O ladrido obtura o silêncio.
Perguntas
Recapitulemos nossas perguntas: Como pode UOM ter Um corpo? O que é ter? Como é Um? O que é o corpo? Muitas perguntas?
A civilização, ou a biopolítica (LAURENT, 2016), é o imperium, o un-pire, o um-pior, o império sobre os corpos, que nos dirige ao pior modo de ter um corpo (LACAN, 1975-76/2007). Um Império se baseia efetivamente no domínio sobre os corpos tomados de uma vez, como Uns reunidos em algum modo de totalidade. Ali se assenta a diferença entre Aristóteles e Lacan. Na primeira versão de Joyce, o Sintoma, Lacan carrega ainda mais as tintas: “Somente deportados participam da história: já que o homem tem um corpo, é pelo corpo que se o tem. Avesso do habeas corpus” (1975/2003a, p. 565)[10]. O habeas corpus, base do direito ocidental, é a possessão inalienável do corpo próprio, o fundamento da soberania. O Império é a despossessão, sem mística nem poética, do corpo de alguém. Dali os movimentos de corpos por centenas e por milhares: deslocam-se em razão de uma conquista que os despossui de todo o resto, não sem ameaçar essa mesma última possessão. O exílio do corpo se traduz em êxodos porque, se alguém pode “ter seu corpo”, por menor que seja, esse corpo pode passar a ser uma possessão (ou propriedade) de outrem.
Antes de tentar responder às perguntas sobre o corpo, examinemos o que é ter. Para isso temos uma resposta lacaniana direta: “Ter é poder fazer alguma coisa com” (LACAN, 1975/2003a, p. 562). Com isso que se tem. Recordemos que, a isso, Descartes o chamava moral. O que UOM faz com seu corpo é: um sintoma. O “poder fazer algo com isso” remete ao artifício de Joyce (2014)[11], ao savoir y faire, ao saber como lidar com isso que se tem, ainda que não se saiba de que maneira o tem ou como funciona, porque nunca se o tem totalmente. Quando não se tem Todo, fica o recurso do que há, embora não se possa possuí-lo: o Um. Com os semblantes, que são a forma eminente do Um na linguagem, na lalangue, no conjunto de todos os conjuntos que nunca chegam a dizer-se a si mesmos, pode-se fazer um nó, mais ou menos, emaranhado, mais ou menos apertado, que tenha, que seja uma tensão sustentada, algo que UOM possa ter por consistente.
Vamos, então, às perguntas sobre o corpo de acordo com as consequências do ter. Para isso, levamos em consideração três respostas, segundo as três dimensões do dito: o imaginário, o simbólico e o real.
O corpo imaginário
No imaginário, o corpo tem o poder de cativar. O corpo é uma forma imaginária que parte do saco ou da bolha. O corpo é a pele, a peau, que, em francês, se pronuncia como pot, como bote, ou bunda, ou sorte. Dali nos vem a ideia de consistência, de algo que um recipiente mantém junto, fazendo conjunto. É a ideia de que a pele envolve os órgãos. Embora isso seja assim graças à corda que amarra o saco, acontece que, no imaginário, essa corda não pode fazer nó. E vai ser no discurso do mestre que os corpos serão contados, de um em um, graças à corda (de presos).
Por outro lado, “o amor-próprio é o princípio da imaginação” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64). E continua Lacan:
“O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante. […]
O corpo decerto não se evapora e, nesse sentido, ele é consistente, trata-se de um fato constatado mesmo nos animais. É precisamente o que é antipático para a mentalidade, porque ela crê nisso, ter um corpo para adorar. É a raiz do imaginário” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64).
E Lacan faz uma brincadeira sobre o cogito cartesiano: “Je le panse… je le fais panse, donc je l’essuir” (LACAN, 1975-76/2007, p. 64)[12]. Vejamos que versões podemos ter desse cogito — que consoa com o original cartesiano do je pense, donc je suis — em dialeto corporal: je le panse, o cuido, coloco-lhe um curativo (um band-aid), quer dizer, eu o faço penso, logo je l’essuie, o enxugo, o seco, o suporto (como em essuyer une défaite, “sofrer uma derrota”), o limpo. Seco-lhe os fluídos que às vezes transbordam (sangue, suor e lágrimas e também mucos, sêmen, saliva, urina, etecetera) ou as escamas que caem (pele morta, pele seca, cabelo, unhas). O ser, posto a ter, torna-se líquido. Mas essa crença não deixa de ter uma importância às vezes crucial na clínica do sinthome. O suor pode valer como um recobrimento do corpo, como uma segunda pele ou um vestido. A maquiagem pode também servir de concha macia para um semblante.
Uma vinheta clínica sobre as lágrimas: uma mulher chega ao meu consultório para formular uma queixa absurda. Enquanto fala, chora amargamente e vai formando uma pilha de lenços de papel úmidos que, no final, atira como produto, ou evacuação, ou signo de pontuação, na minha lixeira; paga e vai embora aliviada, até a próxima. Por um tempo, recuperou alguma consistência para seu corpo. Outra vinheta, de uma apresentação de pacientes: uma mulher está marcada desde sua mais terna infância pelo suor, sintoma que tem guiado sua vida. Seus estudos se limitaram, pois o suor dificultava-lhe a aprendizagem com livros e blocos encharcados. Muitos trabalhos lhe são impedidos pelo mesmo motivo. Nenhuma cadeia significante sustenta esse sintoma, que envolve seu corpo, frouxamente investido pela pulsão, amarrado só por uma costura sem fio.
Voltemos a Lacan: “Em suma, é isso. É o sexual que mente lá dentro, ao ficar se relatando demais” (LACAN, 1975-76/2007. p. 64)[13]. A coisa sexual conta muitas histórias, vangloria-se, tem a sua arrogância, é muito convencida. O imaginário do corpo é sua geometria. O início da geometria não é a linha, nem os axiomas de Euclides, senão a bola, ou o globo, que provém do gozo oral-anal. Nesse sentido, Joyce (2014) nos ensina algo no Retrato do artista quando jovem quando, depois da surra, seu corpo se desprende como uma casca. Ele nos mostra que ter um corpo (e não sê-lo) não exclui senti-lo como um estrangeiro. Daí a necessidade de supor uma alma, uma Ideia Uma para resolver essa estrangeiridade. O original de Joyce é que resolve essa estrangeiridade não com a alma, mas com o ego.
O corpo simbólico
Por outra parte, se consideramos em sua dimensão simbólica o saco da forma imaginária, veremos que se traduz em uma oscilação entre o 1 e o 0. O saco é um, mas está vazio. Lacan dá uma formulação dessa tradução nos termos da teoria dos conjuntos e Jacques-Alain Miller a desenvolve na sétima Nota passo a passo. Enquanto o corpo aristotélico (o da psicologia, o da mentalidade, o da saúde mental) é o corpo tomado como Um, para Lacan, o corpo faz presente o conjunto vazio, que se escreve Ø. A partir daqui, o desenvolvimento se apoia em dois princípios cantorianos: em primeiro lugar, que o conjunto vazio é subconjunto de todo conjunto; em segundo lugar, que todo conjunto é subconjunto de si mesmo. Então, se partimos do Um do corpo, podemos escrevê-lo na teoria dos conjuntos como um conjunto de dois elementos: o Ø e o 1. Isto, dito na linguagem dos conjuntos, é {1, Ø}. Ou seja, o corpo é um conjunto de dois elementos, de forma que, com o Um, criamos o 2. Comentando Lacan, Miller o expressa assim: “o conjunto, o saco cantoriano, merece ser conotado como uma mistura de 1 e de zero” (MILLER, 2007, p. 213). Dito de outra maneira e resumindo o raciocínio de Miller, o corpo, um saco vazio no imaginário, tomado no simbólico como Um, entra na conta como duplo. Essa duplicidade, em termos lacanianos, se escreve: l’Un-tout-seul, o Um totalmente sozinho, e l’un-en-plus, o um que está a mais. A esse l’Un-tout-seul, ao um sozinho, ao um-todo-só (onde “todo” é ao mesmo tempo adjetivo e advérbio), poderíamos chamá-lo de solitodo. Se o solitodo é “significante, marca, traço, corte” (MILLER, 2007, p. 213), o um-a-mais dá à matemática o modelo do conjunto vazio. É o saco de pele, vazio, o corpo por fora de seus órgãos o que Lacan, em outro lugar, chama de l’un-en-peluce, o um de pelúcia, que se pronuncia em francês como l’un en plus. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan (1953/1998, p. 284) alude a algo assim, ao citar ao poeta T. S. Elliot: We are the hollow men / We are the stuffed men. “Somos os homens ocos / Somos os homens empalhados / Todos encostados / Com o capacete cheio de palha. Ai de nós!” (LACAN, 1953/1998, p. 284). Poderia ser também o misterioso “corpo sem órgãos”, do qual falavam o filósofo Gilles Deleuze e o psiquiatra Felix Guattari no seu Anti-Édipo (MILLER, 2007).
O corpo real
O dois do simbólico nos leva ao três: 1, Ø e, como terceiro elemento, o conjunto que formam ambos, {1, Ø} (MILLER, 2007, p. 213). Esse é o nó do real, 1, o solitodo é o significante do mestre. O Ø é o S2, porque indica o par “1, Ø”. Esse casal separado constitui o símbolo, esse objeto ao qual lhe falta sua metade. Vemos então que, separados, eles são necessários um ao outro no simbólico. Para indicar o que não está, faz falta um 1; que deixará de ser solitodo para ser falta de complemento. Para constituir o três do real, faz falta o conjunto {1, Ø}, que é a arbitragem do signo linguístico, o que enoda o 1 e o 0. Refiro-me aqui à substituição que Lacan faz do que Saussure considerou uma relação arbitrária por uma relação de arbitragem, uma solução de compromisso, na qual não está ausente um mestre, entre o som e o sentido. E o que liga o significante ao significado, ou, mais primariamente, o símbolo com o sintoma, é a forma de ressonância dessa arbitragem (LACAN, 1975-76/2007, p. 20).
A surpreendente conclusão de Lacan, de amplas consequências clínicas, é que o real não é o corpo, como tampouco é a linguagem, mas é a ressonância ou consonância, essa arbitragem que cria uma concordância inesperada entre ambos. Lacan utiliza um termo em francês para descrever as consequências da interpretação como modo de criar uma nova ressonância que não havia se produzido anteriormente; utiliza para isso o termo épisser, emendar, um vocábulo pertencente à arte da cordoaria e que se refere à operação pela qual se unem duas cordas entrelaçando seus cabos ou extremos. Para seguir esse procedimento, primeiro tem que desfazer os extremos das cordas a unir e, em seguida, fazendo uso de uma ferramenta apropriada, entrelaçar os cabos soltos de cada extremo com os do outro.
Assim, “ensinamos o analisante a emendar (épisser), a fazer emenda (épissure) entre seu sinthoma e o real parasita do gozo” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71). Porque “é de suturas e emendas que se trata na análise” (LACAN, 1975-76/2007, p. 71)[14]. A ressonância da interpretação afeta o imaginário-real do corpo com a finalidade de fazê-lo simpatizar com o real parasita do (seu) gozo. O gozo parasita do corpo deve emendar-se com o corpo. O corpo deve admitir esse parasita como próprio: assim chega ao nó do amor pelo seu sinthoma.