BRUNA ALBUQUERQUE
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê as medidas socioeducativas para responsabilizar o adolescente pelo cometimento de um ato infracional. A questão central deste artigo é transmitir que o cumprimento de uma medida socioeducativa passa pelos efeitos de um encontro entre adulto e adolescente. Fazer função de adulto nesse contexto é tarefa atravessada pela necessidade de encarnar o Outro social para o adolescente em um modo de organização contemporâneo do mundo que não favorece tal perspectiva. Lancemos o olhar sobre alguns aspectos que estão em jogo nessa relação.
A reprovação à conduta infracional inscreve uma tensão entre controle (restringir a liberdade) e socioeducação (garantir direitos) que tem na figura do agente de segurança socioeducativo[2] um paradigma. Tomemos então o agente como um dos principais sujeitos que deve haver-se com o lugar de adulto no sistema socioeducativo. Partimos de uma prática institucional[3] que indica a presença de processos de identificação entre adolescente e agente. Acrescentam-se elementos importantes: a escolha por tornar-se agente, às vezes, ancorada numa vontade de ser policial, marcada por um fascínio pelo significante segurança da função, associada a um possível contexto socioeconômico e cultural semelhante. Assim, destacamos uma dimensão fundamental que recobre o desafio de se colocar como adulto — a distinção de lugar — e que se revela de forma explícita nos modos de fala e seus efeitos na execução da medida.
Quem Sou Eu, Quem É O Outro?
Vez por outra, constata-se um modo de falar “igualitário”: agentes e adolescentes falam de maneira semelhante e torna-se difícil distingui-los. Esse falar pode apresentar-se sob a forma de um tipo de comunicação dito “de cadeia” que não parece diferir da fala “do mundão” que é utilizada pelos adolescentes em seu contexto, ou seja, algo do mundão se perpetua na instituição. Tal maneira bruta de se servir da linguagem, marcada por uma fala empobrecida, sem fineza, permeada de jargões e palavrões, certamente favorece uma indistinção de lugar.
Diante do efeito de indistinção, o lugar do agente, na relação com o adolescente, encontra-se numa encruzilhada: “Os agentes não têm proposição socioeducativa, ou eles partem pro pau, ou não fazem nada”, diz um diretor a respeito dos agentes. Não é raro ver que a posição tomada pelo agente pode oscilar entre a “guerra” e o “ver o circo pegar fogo”. Qual seria então a justa distância, o parâmetro que permitiria localizar o lugar do agente? Qual posição para os agentes: estão numa posição de espelho, como agentes do poder, ou numa posição de terceiro que reenvia a um registro assimétrico, ou seja, educativo e submetido à lei?
Desmunidos diante da agressividade e dos insultos dos adolescentes, os agentes podem responder de uma maneira “espelhada”. Como se depreende na fala de um agente com relação a um jovem: “ele me deu um chute, eu dei um chute de volta na bunda dele”. Ou, ainda, na fala de um diretor de segurança sobre o trabalho de sua equipe: “o mais importante é que os agentes não querem fazer o trabalho deles; é totalmente igual, o adolescente diz ‘desgraçado!’ e o agente responde ‘é você!’”.
O que é colocado pelo adolescente lhe é reenviado exatamente da mesma forma. Diante desse “eco”, o adolescente se depara com um duplo de si mesmo, num jogo interminável de espelho que reenvia a um processo marcado pelo registro imaginário e toda a dimensão de alienação e agressividade que lhe é própria. Torna-se difícil distinguir lugares, uma vez que se trata de um reconhecimento imaginário que convoca o pequeno outro, o semelhante, e instaura uma relação de dependência que impede a tomada de responsabilidade de ambos os lados (LEBRUN, 2008). “Olho por olho, dente por dente” também é frequentemente o modo de funcionamento dos próprios adolescentes e se opõe ao processo educativo e civilizatório marcado pela perda inerente ao pacto simbólico.
A distinção de lugar se constitui a partir da maneira de se servir da palavra. A noção de autoridade como algo simbólico articula essa maneira de uso da fala a uma responsabilidade por suas próprias contradições, um engajamento no falar que caracteriza uma posição de adulto com relação à Lei. O adulto, ao contrário da criança, assina aquilo que diz (LACAN, 1953-1954/1998). Onde não há um terreno propício para o surgimento de uma relação de autoridade, quer dizer, um reconhecimento da diferença entre os diversos lugares, a tomada de responsabilidade é colocada em apuros. A posição de adulto é ancorada na construção da diferença que permite a distinção de gerações e instala a responsabilidade de uma geração à outra. Ser adulto diante de um adolescente tem a ver com o modo de se responsabilizar por aquilo que se diz do lugar de sua geração, para ensinar à geração seguinte algo sobre um uso adulto da palavra (DUFOUR, 2007).
A dialética própria ao sujeito pode ser compreendida como uma dialética de identificação (LACAN, 1961-1962). Ao tratarmos da identificação, a alteridade é imediatamente colocada em primeiro plano. Lacan (1961-1962) nos adverte quanto à importância de distinguir a identificação que acontece na relação de um outro a outro daquela, simbólica, que se passa entre outro e Outro.
Em 1921, Freud apresenta o conceito de identificação sistematizado em três categorias. É o segundo tipo de identificação apresentado por Freud (1921/2001) e sua correlação à questão do significante que conduziram Lacan (1961-1962), durante suas investigações a respeito desse processo. Lacan (1964/1973) afirma ter colocado em destaque a segunda forma de identificação para dela poder extrair o traço unário, o fundamento do ideal do eu. É a identificação simbólica, como origem do sujeito, que está em jogo aqui, e o traço unário como a forma mais enxuta para ilustrar a essência do significante. O traço unário pode ser tido como diferença pura, uma vez que é o significante que introduz a diferença no real. O sujeito não surge do idêntico, mas da diferença. Esse tipo de identificação é, ao mesmo tempo, constituição e divisão do sujeito na relação com o grande Outro. A partir da identificação simbólica, concluímos que o sujeito apenas pode surgir de uma passagem pelo grande Outro, na medida em que este é marcado pelo significante. O sujeito depende do significante, e este lhe é dado pelo campo do grande Outro (LACAN, 1964/1973). A constituição do ideal do eu, como instância psíquica, pode ser considerada de importância capital para a inserção no laço social via grande Outro. Quanto à identificação imaginária, passemos ao circo.
Braços Cruzados, Pés Na Parede: Adulto Ou Espectador?
“Braço cruzado, pé na parede”, expressão utilizada para designar aquele agente-vigilante, não faz mais do que sujar as paredes com a planta do pé. A referida posição paralisada nos remete a outra também representativa dos agentes que, diante de situações de conflito, querem apenas “ver o circo pegar fogo”.
Numa unidade socioeducativa recém-inaugurada, havia agentes e adolescentes na quadra de esporte. Os adolescentes começam tranquilamente a destruir o jardim ao lado da quadra e as traves de futebol. Os agentes permanecem com os braços cruzados, olham a destruição, mas não fazem nada. A cena gravada pelas novas câmeras de vigilância da unidade é surpreendente: os agentes completamente imóveis, espectadores do circo.
Sabemos que circo era o local para assistir a corridas e espetáculos na Roma antiga. Significa também tenda ou arena circular na qual se assiste a diversos números: cenas cômicas, acrobacias, magia, apresentações com figuras bizarras como a mulher barbada e números perigosos com facas. Na linguagem familiar, circo pode designar atividade desordenada, agitação e desordem.
O circo nos reenvia a um registro principalmente imaginário. Um registro da fantasia repleto de personagens inusitados: palhaços, animais ferozes, mágicos, homens muito fortes, trapezistas e anões. O desafio e a contestação do limite estão presentes o tempo inteiro. Desafia-se a morte, o tempo, a altura, o medo e frequentemente estamos na dimensão da relação de força. Num mundo preferencialmente imaginário, sonha-se poder fazer e ter tudo o que se quer. Junta-se ao circo o elemento fogo, tão fascinante para o ser humano desde o início de sua existência.
Quando os agentes estão ali para “ver o circo pegar fogo”, prevalece a relação à imagem do semelhante. O registro imaginário é fundamental para a constituição da subjetividade humana, mas tal como os outros registros, não pode funcionar sozinho. Quando o imaginário toma a cena, deparamo-nos com um efeito de “encantamento de espelho”. Um exemplo nos seria dado se pudéssemos conceber a cena do estádio do espelho (LACAN, 1949/1998) sem a presença da mãe. Quer dizer que sem a encarnação do grande Outro que vem autentificar a imagem e introduzir-nos ao registro simbólico, permanecemos alienados no nível da instância imaginária que é o eu e não acessamos a dimensão significante do sujeito. O signo que a criança procura no adulto, no estádio do espelho, é o protótipo de seu ideal do eu, instância simbólica, representativa da identificação ao traço unário, responsável por regular as identificações imaginárias aos outros semelhantes.
Na relação imaginária dual, tomada pela dimensão narcísica aprisionante que não nos leva muito além da relação de força, o acesso à dimensão simbólica que permite o laço está barrado. A questão que está colocada é a impossibilidade de se ver a partir de um ponto de ideal que transcende e sustenta a relação dual. Para Lacan (1964/1973), o ponto do ideal do eu é aquele a partir do qual o sujeito se vê como visto pelo outro.
Para sair do campo do narcisismo e tocar a lógica do significante, campo do sujeito, é preciso se haver com a dimensão da falta. Pode-se estar no registro simbólico exatamente porque há coisas que não se inscrevem que estão justamente fora da lógica significante. Por isso, talvez, a fascinação pelo circo, onde aparentemente não é preciso lidar com a falta e pode-se chegar às últimas consequências. Num espetáculo, pode-se crer, ainda que por instantes, que tudo é possível: desafiar o limite e a morte, voar, desaparecer uma mulher, colocar a cabeça na boca do leão, ser atirado de um canhão e engolir fogo.
Os agentes hipnotizados pela atitude dos jovens que parecem negar a existência do limite tornam-se prisioneiros do espelho, fascinados por uma imagem à qual eles podem até mesmo se identificar: “eu te vejo fazendo aquilo que eu gostaria de fazer no seu lugar”. Por vezes, os próprios agentes parecem precisar de um adulto.
Para Lesourd (2006), todo laço social se constitui a partir da organização das diferenças e da localização dos limites propostos pelos discursos sociais. Ou seja, o Outro social deve propor referenciais de diferenciação que permitam a cada um construir-se subjetivamente. Os discursos organizadores do laço social ordenam a questão da diferença e distinguem lugares. A ausência de delimitação observada pode impedir a distinção necessária para um trabalho educativo. Com Kammerer (2000), concluímos que aquele que faz função de adulto sustenta um lugar de saber algo sobre as questões que atormentam o sujeito adolescente, para transmitir que a realização de seu desejo, exatamente da maneira como ele gostaria, é proibida pela lei.
O trabalho socioeducativo diante de um ato tem a ver com “aprender”[4] ao adolescente o valor da palavra. A partir de uma fala portadora de diferença, que se opõe a uma falação bruta e empobrecida, o adulto transmite que conhece e sustenta seu lugar. Como marcaram os adolescentes franceses:[5] o bom educador é aquele que não é “duas caras”, que respeita a lei da instituição e do país, sem estar totalmente alienado a uma regra de ferro.
(1) Referência à obra de Banksy What are you looking at? e a seu questionamento sobre o uso das câmeras de vigilância e os modos de controle no mundo atual. Neste artigo, abordaremos uma situação captada pelas câmeras instaladas em uma unidade socioeducativa: os agentes olham os adolescentes enquanto são olhados.
(2) Em Minas Gerais, as medidas socioeducativas de internação e semiliberdade (as mais gravosas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente) são executadas pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE) da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) e contam com a figura e a função do agente de segurança socioeducativo entre os profissionais que trabalham no sistema socioeducativo. Os agentes estão no corpo a corpo cotidiano com os adolescentes.
(3) A autora deste artigo coordenou o Núcleo de Seleção da SUASE (na época SAME) e o processo de construção do perfil do cargo do agente de segurança socioeducativo nos anos 2005 e 2006. Em 2007, respondeu pela Diretoria de Orientação Socioeducativa. Atualmente, é diretora de Gestão da Medida Socioeducativa de Semiliberdade.
(4) Referência ao verbo francês “apprendre” que significa tanto aprender quanto ensinar (fazer saber).
(5) O recorte de um momento de oficina realizado com os adolescentes franceses no Centro Educativo Reforçado (CER) ilustra algo do que está em jogo com relação ao lugar do adulto. Ao mostrarmos fotos e vídeos das medidas socioeducativas em Minas Gerais, o tema que tomou a cena foi “O que é um bom educador?”. Os jovens explicaram que um bom educador é aquele que é justo, aquele que respeita a lei, a lei francesa, as leis do CER, designando com precisão o lugar do educador: tem a ver com respeitar a lei e reconhecer sua função.