MARIANA SCHWARTZMAN
Psicanalista. Membro da Escola de Orientação Lacaniana EOL/AMP
Resumo
Esta crônica relaciona a epidemia do coronavírus e suas consequências na vida cotidiana ao conceito freudiano de infamiliar [Unheimlich] e ao conceito de extimidade, proposto por Jacques-Alain Miller. Esses conceitos são abordados enquanto uma chave de leitura possível do momento atual e de seus efeitos infamiliares em cada sujeito, na sua relação com o que lhe seria mais familiar: sua casa.Palavras-chave: estranho; familiar; infamiliar; extimidade; coronavírus.Abstract: This chronicle refers to the coronavirus epidemic and its consequences in everyday life as a freudian concept of Unheimlich and as a concept proposed by Jacques-Alain Miller of ex-timete. These concepts are approached as a possible reading key for the current moment and its effects, uncanny, on each subject in their relationship with what would be most familiar to them: their home.
Keywords: strange, familiar, uncanny; ex-timate; coronavirus.
Posso me ver nos teus olhos- Barbara Schall
Como, desde que nasci, falo alemão, sempre senti esse conceito bastante “familiar”. Mas isso tem o problema de, às vezes, acreditarmos compreendê-lo demais. Até que algo “exterior” irrompe e se faz necessário revisá-lo um pouco. Foi a partir da irrupção do coronavírus e da quarentena que voltei a ler o texto de Freud (1919/2019) “O infamiliar”, para tentar articulá-lo de algum modo com o que acontece no momento atual.
Freud escreve esse artigo em 1919. Com o Unheimlich, refere-se ao familiar que se torna aterrorizante, sinistro. Ao realizar uma investigação linguística sobre esse vocábulo em diferentes dicionários, descobre-se que Heimlich (que, em alemão, representa o doméstico, o familiar, o íntimo, o lar, a casa em sentido amplo) e Unheimlich (o alheio, lúgubre, sinistro ou incômodo de um lar) coincidem em várias das definições. É a definição de Schelling que chama a atenção de Freud principalmente. Ali, a palavra Heimlich assume ambas dimensões: algo relacionado ao familiar, ao lar, mas também ao contrário: “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona” (FREUD, 1919/2019, p. 45). Referindo-se a essa definição, Freud assinala que o familiar coincide “com seu oposto, o infamiliar” (FREUD, 1919/2019, p. 47-48).
Há uma melhor definição que a freudiana para explicar o que se sente nestes dias?
O familiar, o caseiro, o lar, tornou-se estranho: encarnamos a voz dos professores de nossos filhos transmitindo (inclusive traduzindo, corrigindo) o dever de casa; nossos parceiros trabalham e fazem conference calls de nossa sala de estar (muito perto de nós); instalamos o consultório no nosso quarto[2]; vemos nossos rostos ao fazer sessões por Skype (rostos que, ao escutar o paciente deitado no divã, permaneciam ocultos, velados ao nosso próprio olhar); recebemos a toda hora “chamadas em grupo” de amigos estrangeiros que, por causa do vírus e dessa causa em comum, desejam estar mais próximos, penetrando em nosso dia a dia familiar, o tempo todo… Outras coisas habituais e rotineiras se tornaram ameaçadoras, sinistras: sair à rua, as compras de supermercado, nas quais borrifamos álcool e água, respirar quando estamos fora — com medo de inalar o vírus —, etc., etc., etc., etc.
O íntimo tem se tornado um estranho. O estranho penetra em nossa intimidade.
O que a psicanálise pode oferecer? Além da brilhante e lúcida escrita de Freud, que nos serve para pensar o que estamos vivendo, gostaria de ressaltar outro conceito e articulá-lo com a escuta que um psicanalista poderia oferecer. Diz respeito ao conceito lacaniano de extimidade. É um neologismo de Lacan que Jacques-Alain Miller, em seu curso do mesmo nome, explora ao longo de várias páginas. “Extimidade”, diz-nos Miller, baseia-se na palavra intimidade. Ele usa a descrição do termo segundo o Robert[3], que qualifica a intimidade desta maneira: “encanto de um lugar onde se sente em casa, livre do mundo exterior” (MILLER, 2010, p. 15, tradução nossa). Miller localiza: “(…) a extimidade é, para nós, uma fratura constitutiva da intimidade. Colocamos o êxtimo no lugar onde se espera, se aguarda, onde se acredita reconhecer o mais íntimo. (…) Em seu foro mais íntimo, o sujeito descobre outra coisa. (…) o mais próximo, o mais interior sem deixar de ser exterior” (2010, p. 17, tradução nossa).
O interessante desse conceito lacaniano é que ele não deixa de expor como o interior é exterior e vice-versa. Algo interior que aparece no exterior, mas que, por sua vez, não deixa de sê-lo.
Será o momento de escutar como cada sujeito (que vinha falar no consultório, ou, talvez, novas vozes que nos demandem escutá-las) dará conta do que de seu interior irrompeu no exterior… de suas próprias casas.