HENRI KAUFMANNER
Psicanalista. Membro da EBP-MG/AMP |
kaufmanner@gmail.com
Resumo: Partindo da pergunta lançada por Lacan ao final do seminário XI, sobre uma possível impostura da psicanálise, pergunta-se o que o conduziu a traçar uma distinção entre a religião, a ciência e a psicanálise sob a perspectiva da ideia de esquecimento. Sublinhando como o avanço do discurso da ciência em nosso tempo, com sua oferta indiscriminada de objetos de consumo, provocou o tamponamento da falta do sujeito barrado e afetou “gravemente essa distinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento”, faz-se recordar que, nesse mesmo seminário, Lacan já alertava quanto aos efeitos da chamada mass media, algo que hoje podemos traduzir como a era das tecnociências, aí implicada a virtualidade das nossas relações. Diante desse cenário, o que nos é exigido é a audácia da invenção.
Palavras-chave: psicanálise, religião, ciência, esquecimento, mundo virtual
Abstract: Starting from the question raised by Lacan at the end of seminar XI about psychoanalysis possible imposture, we ask what led him to make a distinction between religion, science and psychoanalysis through the idea of “forgetfulness”. Underlining how the advancement of the science discourse in our time, with its indiscriminate offer of objects of consumption, has caused the tamponing of the lack of the barred subject, and has “greatly affected this distinction between these fields and their relation to forgetfulness”. In the same seminar, Lacan had already warned us about the effects of the so called mass media, that today we can translate as the era of the technosciences implicating in the virtuality of our relations. In this scenario, the audacity of the invention is what is required of us.
Keywords: psychoanalysis, religion, science, forgetfulness, virtual world.
Proponho pensar os desafios que se impõem à psicanalise nestes tempos estranhos tomando como eixo alguns pontos que me parecem centrais, desenvolvidos por Lacan (1985) ao longo do seminário XI. Nesse seminário, realizado após sua excomunhão, Lacan intenta constituir um viés científico para a psicanálise. Após a formulação do objeto a, no seminário sobre a angústia, ele se esforça por ir além de Freud, além do pai, deslocando-se da transcendência do simbólico ao acontecimento de corpo.
Vale ainda ressaltar que tal desenvolvimento se faz em torno da lógica da alienação e separação, que repercute as relações do sujeito com o objeto nesse momento do ensino de Lacan.
Religião, ciência e psicanálise
Ao concluir o seminário, em sua última lição, Lacan interroga: como nos garantir que não estamos numa impostura?
Na sequência, destaca a religião como impostura, pelo menos se tomada a partir das referências suscitadas no século XVIII, século do homem do prazer, do homem das luzes. Lacan acentua que não basta sair do registro da crença para se temperarem seus efeitos de alienação, a simples descrença diz, não é suficiente para superar os efeitos sobre o ser do sujeito (LACAN, 1985, p. 256). O descrente, portanto, não experimenta necessariamente essa queda na representação significante, esse vazio do saber da operação de separação.
A ciência, por sua vez, seria indiferente a essa questão. De maneira distinta da religião, não se situa no campo da alienação. É num ponto preciso no campo da separação que se sustenta o lugar do cientista. Sendo assim, “o corpo da ciência, só conceberemos seu porte ao reconhecermos que ele é, na relação subjetiva, equivalente ao que chamei aqui de a minúsculo” (LACAN, 1985, p. 257).
Já a psicanálise vai além da ciência, embora tenha como esta o ponto de partida cartesiano. Como consequência desse mais além, ela é, por mais das vezes, aproximada e, por que não dizer, confundida com a religião.
A única maneira de abordar esse problema, diz Lacan, é que a religião, como modo de “subsistência do sujeito que se interroga, se distingue por uma dimensão que lhe é própria e que é marcada por um esquecimento” (LACAN, 1985, p. 257). A religião teria como recurso resgatar esse mais além como operatório e mágico através do sacramento, na medida em que este tem como função encobrir a operação de separação pelo esquecimento.
Em contraposição, é justamente nesse esquecimento que a psicanálise opera. Diferentemente da religião e tributária das mesmas origens da ciência, a psicanálise se ocupa desse furo, dessa hiância presente nas relações do sujeito com o Outro[1]. Não há nada para a psicanálise esquecer, pois, para ela, não está implicado nenhum reconhecimento, nem mesmo da sexualidade, já afirmava Lacan.
Podemos abordar essa questão por um outro viés, apoiando-nos em Miller em seu texto “Triângulo dos saberes” (2017, p. 261). Miller situa a psicanálise na falha que se apresenta entre a retórica e a ciência. Com o avanço da lógica do consumo, não parece demasiado pensar que o discurso do capitalismo oblitera a falha, o que repercute como dificuldade para a psicanálise se assentar, na medida em que se exclui o encontro com o furo. A prática com os adictos é pródiga em exemplos dessa dificuldade.
Podemos assim diferenciar estes três campos: a religião no campo da alienação; a ciência, indiferente e que subsiste no campo do objeto, tomado aqui enquanto materialidade; e a psicanálise ocupando o furo. Lembremos que o objeto a é uma consistência lógica que apenas eventualmente ganha materialidade, o que nos permite perceber a distinção entre o real da ciência, que retorna sempre ao mesmo lugar, e o real da psicanálise, que é contingente.
Quais seriam as consequências do avanço do discurso do capitalismo sobre a distinção entre esses campos?
A oferta abusiva e indiscriminada de objetos de consumo, de uma materialidade insistentemente renovada dos gadgets, cristaliza-se numa espécie de curto-circuito, representado por Lacan na relação direta do objeto tamponando a falta do sujeito. Isso afeta gravemente essa dintinção entre esses campos em sua relação com o esquecimento. Esse curto-circuito produz como que uma diluição deles mesmos. Assim, o esquecimento da religião, a indiferença da ciência e o furo, objeto da psicanálise, se apresentam não mais tão facilmente dissociados.
A profusão imaginária de objetos em nossos tempos, sobretudo com o advento do mundo virtual da internet e redes sociais, invade os campos de existência do ser recobrindo a falha, onde a singular experiência do falasser incidiria.
Vimos acompanhando, ao longo da pandemia, como que religião e ciência se imiscuem; testemunhamos os fenômenos que vão do negacionismo ao misticismo mais fanático. Não deixa de causar perplexidade acompanhar, por exemplo, a resposta da medicina e sua desorientação neste momento particular do mundo, em que não encontra mais suporte na ciência. Impressiona também a forma como os fármacos passaram a ocupar o lugar de objetos devoção, de utilização política ou mística.
Transferência e sacrifício
É bem conhecida a afirmação que, para operar com a transferência, cabe ao analista fazer valer o semblante do objeto, que, no seminário XI, Lacan articula como causa do desejo. Por essa via, acontece a captura amorosa na medida em que o sujeito se oferece ao Outro na busca do encontro do desejo. Mas, na medida em que o objeto é um semblante, um encobrimento do furo, o que o sujeito acaba encontrando na análise é a falta do Outro, que o remete à sua própria falta.
Ilumina-se, assim, a afirmação de Lacan, inspirada na obra de Appolinaire, de que não basta ao analista se fazer de Tirésias, é preciso que ele tenha mamas. Não basta a mera presença do analista, a presença de seu corpo, é preciso que ele faça reinar o semblante do objeto para que a pulsão seja assim capturada em seu percurso. O semblante não é sem o furo, ele toca algo desse real que captura a pulsão. Cito Lacan (1985, p. 261):
Quero dizer que a operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se mantenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável — e esse outro ponto em que o sujeito se vê causado como falta por a, onde esse a vem arrolhar a hiância que constitui a divisa inaugural do sujeito.
Inspirado nas elaborações freudianas, Lacan sempre indicou como importante para o surgimento da psicanálise esse distanciamento que Freud fez da hipnose, na qual o Ideal do eu e a imagem ideal se sobrepõem. Descolada da hipnose a transferência analítica, constituiu-se um novo estatuto para a dimensão amorosa presente na relação do sujeito com o Outro.
Não seria então uma mera coincidência que, na última lição do seminário XI, Lacan tenha feito um rápido comentário sobre os efeitos, já por ele observados, da chamada mass media. Ali, muito antes do advento do mundo virtual, a produção excessiva e oclusiva do objeto a partir dos recursos tecnológicos da época já era motivo de alerta, por Lacan, da presença planetária invasiva da voz e do olhar. Como também não é de causar estranheza que, logo em seguida, ele se ocupe do tema do sacrifício.
Lacan faz uma crítica contundente à precariedade das leituras dominantes que tentam explicar o nazismo e o holocausto. Ressalta a ressurgência da oferenda a deuses obscuros de um objeto de sacrifício, situação sob a qual poucos sujeitos poderiam deixar de sucumbir, tratando-se de uma “captura monstruosa”.
Denuncia que a crítica histórica a esses fenômenos é tomada por certo fascínio pelo sacrifício[2]. Diz, contudo, que um olhar corajoso para esse mistério revelará que “o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro”, que é então chamado por Lacan de “Deus obscuro” (LACAN, 1985, p. 266).
Discorrendo sobre esse tema, Zaloszyc (1994) retoma a passagem bíblica do Êxodo, de quando Deus fala a Moisés: “Depois, quando eu tirar a mão, me verás pelas costas; porém a minha face não se verá” (XXXIII/23).
Segundo Zaloszyc, da forma como Deus fala a Moisés, pode-se depreender que este somente teria acesso ao que Deus lhe depusesse: seus mandamentos, seu texto, suas prescrições. Moisés jamais alcançaria os fins em jogo naquilo que Deus lhe apresentava. Ele poderia apenas supor o sentido em jogo no texto divino, supor o saber desse que se apresenta a ele com seus mandamentos (ZALOSZYC, 1994, p. 10). Constata-se, assim, que houve um encontro de Moisés com uma dupla face de Deus. Não lhe é possível alcançar as razões de Deus. Depreende-se assim que, mais além do saber, encontra-se o impossível de alcançar do desejo do Outro. Aí se encontra sua dimensão obscura. Essa obscuridade não há como ser reduzida pelo saber. Por mais que possamos constituir um Outro do saber, por detrás deste, inevitavelmente, encontraremos uma obscuridade. Por mais explícita e concreta que seja a fala do Outro, o desejo em jogo nos escapa. O desejo do Outro é sempre uma opacidade.
Uma novidade se apresenta então para a psicanálise. Ela se encontra diante de uma nova modalidade de apresentação do gozo. O avanço do discurso do capitalismo nos enreda à experiência de uma captura monstruosa, o sacrifício à dimensão obscura do desejo do Outro.
As neo-divindades
Ao comentar o ultimíssimo Lacan, Miller (2010, p. 126) discorre sobre a mudança de rumos por ele efetuada deslocando-se da noção de simbólico, e, portanto, de sentido, na medida em que este se articula na cadeia significante para valorizar o que seria da materialidade da palavra e sua relação com o corpo — que Lacan busca expressar no conceito de lalangue. Tal moterialité pode, a princípio, parecer estranha, pois, ao afastar o sentido, Lacan parece aproximar o real da psicanalise do real da ciência ao nos apresentar algo que retorna sempre no mesmo lugar, um contraponto à contingência com a qual lidamos em nossa prática.
No esforço de exemplificar essa materialidade da palavra, Miller recorre à experiência que, naquele momento, já era bem comum — recorrer ao Google (MILLER, 2007). Quando fazemos uma busca, assinala, esta não é feita por intermédio de uma frase, tampouco uma prece. Trata-se apenas de um sinal, uma letra, uma cifra, e vamos de encontro a esse “deus virtual”.
Na busca do saber, encontramos essa neodivindade incapaz de qualquer deciframento e que opera somente com a materialidade das palavras.
Com o Presidente Schreber, avant la lettre, aprendemos que esse Deus, esse Outro caprichoso não entende nada dos homens, somente os conhecendo em sua superficialidade, e que seu afastamento resultava numa humanidade de homens feitos às pressas. O Deus Google, contudo, apesar da materialidade superficial que nos oferece, contrariamente ao Deus de Schreber, fala muito, responde muito, é logorreico. “Ele alinha ainda mais a velocidade e a quantidade… no lugar do infinito, ele coloca a totalidade” (MILLER, 2010, p. 127).
O Google, lembra Miller, é, antes de mais nada, um avatar. Trata-se de uma empresa bilionária que busca a totalidade das cifras sem poder decifrá-las. Mas, nessa busca, produz uma demanda de saber insaciável, e assim recolhe globalmente as demandas de cada um que utiliza seus mecanismos de busca para seu próprios ganhos econômicos.
O GAFAM, acrônimo que representa as gigantes da tecnologia digital (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), povoou o mundo virtual e, com isso, nossas vidas, por meio de seus múltiplos avatares que, diferentemente das mamas de Tirésias, da ordem do semblante, são criações imaginárias que nos remetem ao simulacro. O sacrifício para encontrar o desejo do Outro reduz todos a objetos de consumo. A obscuridade do Outro assumiu novas formas nas redes sociais. Não se trata de uma captura amorosa, mas de uma captura monstruosa. Do amor ao sacrifício, a psicanálise se vê diante de um circuito aditivo, no qual o semblante é substituído pelo simulacro.
Partimos da materialidade das palavras com o Google e hoje chegamos também à materialidade das imagens, estáticas ou em vídeos, provocadas pela disseminação meteórica das redes sociais. A dimensão do sacrifício se explicita quando nos deparamos com os relatos de mortes em decorrência da busca da selfie mais original ou exótica. Desalojadas da vergonha, as imagens proliferam e se multiplicam em dimensões planetárias na busca pelo encontro do like, simulacro do desejo do Outro. Se nos atentarmos para a própria estrutura da selfie, perceberemos que é uma imagem que tem como função sua simples exibição. São imagens que, de forma circular, se fecham sobre si mesmas. Não precisam do Outro nem mesmo para sua produção. São imagens que, por sua padronização, não representam aquele que saca as fotos; elas se fazem descoladas do corpo. Distribuídas a partir de uma tensão exibicionista, acabam por serem esquecidas. No novo mundo virtual, os falasseres sacrificam sua própria representação, sua diferença, abrindo mão de sua singularidade através das oferendas que prometem encontrar esse desejo obscuro. Os simulacros assim produzidos se oferecem ao esquecimento. O mundo virtual e as redes sociais, mais além do Google, transformaram-se em portais de busca em que se busca sempre a mesma coisa — mesma coisa que não há como encontrar.
A pandemia
Esta realidade aumenta a importância de esclarecer, no último ensino de Lacan, esse desvio em direção a uma dimensão material da palavra. Tal desvio aparentemente deslocaria a psicanálise do encontro com o real da contingência. Essa aparência se desfaz na medida em que o que está em jogo nesse “mesmo”, designado por Lacan como lalangue, incide sobre Um corpo. Essa incidência produz ressonâncias, acontecimentos contingentes de corpo.
A experiência religiosa, com seus dogmas e sacramentos, exalta, por intermédio da crença, um único caminho para o tratamento desses acontecimentos de corpo. Convoca todos os seus seguidores ao esquecimento. Como vimos, a ciência, em seu lugar de indiferença, sempre se ocupou da materialidade da experiência. Indiferente ao gozo, foraclui o sujeito, que cai no esquecimento. No mundo virtual, presenciamos a oferta infinitizada ao desvario do gozo de forma aditiva. Neste mundo de avatares e realidade ampliada, reina também o esquecimento. A experiência singular do falasser, a afetação de seu corpo não interessa à voracidade capitalista de GAFAM. Vivemos a chamada cultura do cancelamento.
A pandemia do coronavírus afetou diretamente a experiência de corpo de cada indivíduo em nosso mundo. Sua disseminação globalizada afetou o adormecimento provocado pela cultura do cancelamento. A ameaça de morte trazida pelo vírus levantou o véu do esquecimento produzindo, num primeiro momento, angústia e perplexidade. O infamiliar do encontro com o vírus trouxe o furo novamente à cena. O não saber como experiência dominante a partir da eclosão da pandemia, seguido das diversas medidas de contenção social para evitar a propagação do vírus, num primeiro momento, desalojou o saber indiferente da ciência e convocou cada falasser a ter que se haver com o fazer com seu corpo. Presenciamos, com esse anúncio da morte, a proliferação das lives, um significante bem apropriado ao momento, um esforço momentâneo diante do despertar do próprio esquecimento.
Foi diante dessa realidade que nós psicanalistas passamos a realizar atendimentos via remota, on-line. Trata-se de um momento preciso, uma janela de oportunidade para a presença do analista diante do desamparo provocado pelo retorno dos corpos àqueles que “viviam” ultimamente de seus avatares. Foi um momento, um lapso de tempo no qual a angústia precipitou a busca de sentido. Com o avanço dos recursos científicos para lidarmos com o vírus e do negacionismo místico político religioso, vemos um esvaziamento dessa solução: as lives também começam a cair no esquecimento.
A aposta da psicanálise
Ainda no seminário XI, Lacan esclarece a dissimetria entre Freud e Descartes. Ela não se dá pelo fato de que haveria uma certeza fundada no sujeito. A diferença é que, no que diz respeito ao inconsciente, diz Lacan, o sujeito está em casa.
Na elaboração de Descartes, é preciso um Deus não enganador para que esse encontro com o real possa se assegurar da verdade. A verdade colocada assim, nas mãos do Outro, abriu o campo para o avanço da ciência e suas fórmulas.
O que Descartes não sabia, afirma Lacan, e que nós sabemos, é que o inconsciente pensa antes de entrar na certeza.
O que se trata para os psicanalistas não diz respeito a um Outro enganador, mas a um Outro enganado. Lacan distingue o sujeito da certeza, fundamental ao pensamento cartesiano, daquilo que, naquele momento, ele situava como procura da verdade. Descartes apreende seu “eu penso” a partir da enunciação do “eu duvido”. Não de seu enunciado, que carrega tudo desse saber a pôr em dúvida. Já Freud, segundo Lacan, dá um passo a mais quando integra, ao texto do sonho, o “colofão da dúvida”. Em Freud, a dúvida faz parte do texto. Isso faz com que Freud nos mostre, coloque sua certeza apenas na existência da cadeia significante, ressalta Lacan.
Ele retorna a essa questão ao falar dos deuses obscuros e da grande dificuldade de se recusar ao sacrifício. Afirma que, diante do sacrifício eterno, ninguém pode resistir, a não ser que se sustente em uma fé muito difícil. Diz que, nesse campo da fé, somente Spinoza teria conseguido formular de uma maneira plausível do que se trata. Para ele, Spinoza, acusado de panteísta, na verdade defendia que a universalidade de Deus somente poderia ser pensável através da função significante. Só assim se alcançaria um distanciamento sereno.
Como vimos, a psicanálise opera no esquecimento, no furo, a partir de como ele aparece nas enunciações do sujeito. Convocar a fala favorece o surgimento dos tropeços, dos equívocos, das ressonâncias e, consequentemente, da significação singular para cada falasser, desse efeito absolutamente singular de lalangue sobre o corpo, reverberações da pulsão que não se deixam capturar e que insistem em não se fazerem esquecer.
Sustentar nossa prática neste mundo que advém exigirá a audácia da invenção. O mundo virtual veio para ficar. É inquestionável que nossos atendimentos on-line produzem efeitos, mas é inquestionável também que essa nova realidade interroga nossos dispositivos. Como faremos neste futuro que se avizinha é uma pergunta já presente e que temos tido a chance de exercitar durante a pandemia. Abrir espaço para que o falasser possa se haver com um pouco de sentido em sua existência, suportar a contingência num mundo onde reina a obscuridade totalitária do saber, fazer valer o semblante onde domina o simulacro são questões com as quais estaremos envolvidos nos próximos anos, mais intensamente do que já estamos. Enfim, creio que nossos problemas apenas começaram. Mas é animador saber, por exemplo, que o Pix, dispositivo bancário recém criado no Brasil, que tem como intenção a unificação digital de todas as trocas financeiras no país, já vem sendo utilizado como meio de flerte por seus usuários. É bom comprovar que, de fato, a pulsão insiste em não se deixar esquecer.