O historiador do detalhe: articulações entre sonho e acontecimento de corpo1
Ana Sanders
Psicanalista, mestranda em Estudos Psicanalíticos pela UFMG
anasandersb@gmail.com
Resumo: A contribuição lacaniana sobre a relação entre o sonho, o trauma e o despertar, para além da representação onírica que ele faz surgir, evidencia um importante paradoxo clínico. A leitura de um sonho como acontecimento de corpo, a partir de um caso de uma criança de 8 anos, suscita questões paradigmáticas no sentido de uma clínica em direção ao real.
Palavras-chave: sonho; trauma; acontecimento de corpo; despertar.
THE DETAIL HISTORIAN: ARTICULATIONS BETWEEN DREAM AND BODY EVENT
Abstract: The lacanian contribution to take the dimension between dream, trauma and awakening, beyond the dream representation that it arises, is necessary to highlight as an important clinical paradox. The reading of a dream as a bodily event, based on a case of an 8-year-old child, raises paradigmatic questions in the sense of a clinic towards the real, of speaking in the contemporary.
Keywords: dream; trauma; bodily event; awakening.
Sonho e trauma
Em 1936, o filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1936/1987), ao localizar o silêncio sintomático dos combatentes que retornaram do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial, elabora sua célebre formulação, em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, afirmando que a arte de narrar histórias e de compartilhar experiências estaria em declínio. Diante do excesso vivenciado nas trincheiras, os combatentes voltavam mudos e empobrecidos na capacidade de transmitir, através da fala, algo dessa experiência. Tal experiência já havia sido apontada por Freud ao escrever sobre as neuroses de guerra, em 1918, as quais, diferentemente da lógica da neurose de transferência, corresponderiam a uma neurose traumática. Assim, o excesso de uma vivência pulsional não seria sem consequências para os processos psíquicos, apontando, dessa forma, o fundamento dessa neurose na fixação no acontecimento traumático.
Em 1920, como efeito da clínica com os sujeitos que voltavam da guerra, Freud (1920/2020) retoma os sonhos traumáticos em seu caráter de exceção no que concerne ao pressuposto de que todo sonho seria uma realização de um desejo e estaria, portanto, ligado ao princípio de prazer; o que ele descobre é que existem sonhos que apontam para a compulsão à repetição, ou seja, para a repetição de um desprazer. Isso porque, neles, o trabalho onírico se apresenta sob a característica de reconduzir repetidamente “o doente de volta à situação de seu acidente, no qual ele desperta com um novo susto” (Freud, 1920/2020, p. 73). Sob consequência do excesso para o aparelho psíquico ocorrido na vida em vigília, essa experiência fornece aos sonhos uma marca da repetição, ao impor a experiência traumática sem cessar, inclusive durante o sono, como uma tentativa de uma elaboração simbólica. Esse retorno, essa fixação no trauma, aproxima os sonhos da neurose traumática à dimensão do real proposta por Lacan.
Nesse sentido, há uma leitura decisiva feita por Lacan ao abordar a teoria dos sonhos em Freud que provocou uma reorientação importante para a prática clínica. No Seminário 11, Lacan (1964/1988) retoma o centro incógnito dos sonhos, o umbigo, para dizer de uma hiância essencial em um registro de real no inconsciente, que permite que o sujeito possa emergir como efeito de surpresa. No seu último ensino, Lacan (1973-74) propõe o neologismo “troumatisme” para assinalar que a irrupção do real produz, como efeito, o furo no simbólico, que aponta para o aforismo da relação sexual que não se escreve. Esse furo pode ser precipitado pelos momentos em que as vivências se fragilizam tanto no tecido social, quanto no eixo simbólico-imaginário (ou quando os semblantes que organizam a vida do sujeito se fragilizam diante de vivências de horror). Essa vivência traumática emerge nos sonhos como um a tentativa de dar conta desse real, como marca do impossível na própria linguagem. Assim, o falasser se arranja como pode ao se defender desse furo, ou seja, do real.
Assim, Lacan (1964/1985) se concentra no instante de despertar de um sonho que ocorre a partir de batidas na porta, no momento que esse pequeno ruído chega à consciência – não à percepção –, provocando um despertar. No sonho paradigmático de Freud, “Pai, não vês que estou queimando”, a leitura lacaniana destaca que não é a realidade que desperta, sendo que a prova disso é que o pai continua seu sonho e integra a realidade em sua ficção. Nesse sentido, Miller (1996, p. 105) enfatiza que “o despertar para a realidade é apenas fuga ao encontro com o real, aquilo que se anuncia no sonho quando o sujeito se aproxima, como Freud mesmo o observa, do que ele nada quer saber”. A formulação de Lacan é a de que se desperta para continuar a sonhar quando o sujeito se defronta com um ponto de horror, para continuar a dormir nas próprias fantasias, nas representações e nos discursos que tecem a trama da realidade, permitindo manter a continuidade de seu sonho (KORETZKY, 2023). Assim, na Conferência “A Terceira”, Lacan (1974/2011, p. 25) destaca sua leitura dos sonhos:
É um dos sonhos que tenho; eu tenho o direito, assim como Freud, de dar notícia de meus sonhos a vocês; contrariamente aos de Freud, os meus não são inspirados pelo desejo de dormir; é antes o desejo de despertar que me agita. Mas, enfim, isso é particular.
O historiador do detalhe
Apresento aqui o caso de Matéo, escrito por Carolina Koretsky (2020) e publicado no livro La Conversación Clínica. O acesso ao caso em sua construção sob transferência e o estilo da analista nos permitem levantar questões importantes para a discussão que se segue. A autora se serve da leitura lacaniana para pensar o sonho pela via do despertar, para além da dimensão da representação onírica, o que nos esclarece sobre o que seria uma orientação da clínica pelo real.
Matéo, de 8 anos de idade, foi acompanhado pela psicanalista por três anos. Ele é filho único e vive a maior parte do tempo com a mãe, uma vez que seu pai havia se mudado por razões de trabalho, mantendo sua presença apenas aos finais de semana. Como demanda inicial, seus pais se queixavam do baixo investimento de Matéo em relação ao saber escolar.
Após um episódio importante, a mãe, atravessada por sua angústia, procura análise para Matéo. Nesse contexto da entrevista com a mãe, ficamos sabendo que esta interpela fortemente o filho acerca de seus esquecimentos com as atividades, fazendo-o copiar cinquenta vezes em seu caderno: “não devo esquecer meu dever de casa”. Diante dessa demanda, o menino corre em direção à varanda da casa e fica bastante tempo do lado de fora. A mãe, perplexa, relatou à analista seu medo de que Matéo pulasse dali. Nessa entrevista, o relato dessa cena permite interrogar a mãe acerca de outras questões sobre o filho, inclusive sobre um traço persecutório de Matéo ligado aos seus colegas de escola, ou sobre a percepção de um olhar “mau” ao dizer que se sentia seguido na rua.
Em suas elaborações, a mãe de Matéo recupera o acontecimento do nascimento do filho. Durante o parto, o bebê estava em risco e foi preciso fazer uma intervenção cirúrgica. Nesse ato, o médico fere o rosto de Matéo com um bisturi. A mãe diz à analista: “Eu dei a vida a uma criança perfeita e me devolvem uma criança ferida”. Sobre as suas inquietações em relação ao choro incessante da criança, ela associa a dor pela ferida e, por fim, confessa: “Eu o teria jogado pela janela”. Em outra cena, ele, aos 4 anos, olha para a mãe e confronta algo do seu gozo, confronta o desejo materno e o enigma de sua significação: “Você vai me matar?”. A mãe, surpresa, não responde ao filho, deixando um silêncio. Matéo, por sua vez, não encontra o recurso ao sintoma e à fantasia como defesa a esse real. Diante disso, a análise de Matéo se inicia. O primeiro tempo do trabalho de análise com a psicanalista foi escandido em três eixos sintomáticos: a corrida, o “problema de hipersensibilidade” e os “ruídos”.
1) Durante as primeiras entrevistas, Matéo conta, entusiasmado, detalhes sobre as corridas de atletismo que fazia. No entanto, em seus relatos, denunciava um ponto de sua angústia, já que, para ele, de nada adiantava ser bem colocado se não fosse o primeiro. Nesse sentido, a analista escuta nesses relatos até que ponto sua própria existência era também uma corrida contra um desejo de morte que ele carregava, mas que mantinha afastado enquanto corria, em um circuito incessante, no qual a morte pairava sobre ele. Então, como manejo da analista, a manobra possível se estreitou para afrouxar o vínculo com a exigência mortífera, enquanto era preciso respeitar o valor de solução desse sintoma.
2) Matéo apresentava sua relação difícil com os outros no ambiente da escola. Em seus relatos, era tomado por um sentimento de injustiça diante do que lhe pareciam ofensas e insultos vindos do outro. O nome encontrado pela criança para seu choro incontrolável e para a dor por estar com os outros foi: “problema de hipersensibilidade”. Assim, a analista pode permitir vacilar o Outro, diluindo as significações de suas más intenções.
3) A psicanalista pontua os “ruídos” que a criança localiza terem se iniciado aos 4 anos de idade e que se estruturavam como um fenômeno alucinatório restrito ao adormecer. Esses “ruídos” ocorrem no período em que emerge o silêncio insuportável quanto ao enigma de significação do discurso materno. Como uma solução para apaziguá-lo, ele muda de quarto para um outro mais próximo da rua e passa a dormir devido aos barulhos que abafam os seus “ruídos”. Assim, Matéo, sob transferência, pôde ir encontrando soluções transitórias para aquilo que o invadia.
Já em outro tempo de sua análise, Matéo encontra uma solução diferente da corrida infinita e essa outra solução surge a partir da história das grandes guerras, uma das paixões de seu pai. Matéo passa a colecionar tanques e carros blindados e se interessa por conhecer minuciosamente os seus modelos e seus detalhes. Com interesse destacado pela história, a criança passa a ter uma ligação mais viva com o saber. Em uma sessão, Matéo relata um sonho: “Era um campo de batalha. Eu estava com outros soldados e dei ordem para me executar! Foi estranho! Eu mesmo ordenei minha própria morte. Eu mandei executar minha morte. E então eu morria”.
Seu relato de sonho não produziu uma angústia pavorosa, nem o sono interrompido, mas ele diz que teria mudado a sua vida. Matéo conta que seu sonho lhe serve muito, já que o sentiu no seu próprio corpo. Para a analista, ele diz: “Eu sei o efeito de receber uma bala no corpo. Senti verdadeiramente no meu próprio corpo o que é morrer”. A analista nomeia esse saber como um saber impossível, mas acrescenta que esse sonho o permitiu falar em análise algo sobre esse corpo ferido (como significante da mãe com a ferida no parto e suas consequências para ela). Não se trata, nesse caso, de um saber enciclopédico, como o saber que constrói sobre as guerras, mas um saber que se apoia em um acontecimento de corpo, algo que é experimentado no corpo durante o sonho, do qual ele extrai, de forma discreta, um lugar de exceção.
Sonho como acontecimento de corpo
No caso de Matéo, é possível localizar no sonho os significantes traumáticos de seu nascimento, como as primeiras marcas vivenciadas diretamente no corpo, colocando em questão: o sonho serve para quê? O estatuto do sonho se constitui como uma formação inconsciente, ainda que não lhe seja atribuído um saber enigmático para se decifrar. Matéo faz do sonho uma produção de sua análise e pode se servir de sua função para deslocar o desejo de morte materno em sua elucubração. O sonho dá ao sujeito uma posição de exceção, uma possível solução para a cessão do gozo mortífero. Da pergunta sem resposta – “Você vai me matar?” –, que o suspende em uma posição de assujeitamento, foi possível deslocar para o que surge no sonho. Matéo pode responder à pergunta com um “mate-me”, e, assim, tenta se encarregar disso que chega pelo Outro, tomando um horizonte duplo de morte e renascimento do sujeito.
Koretzky (2020, p. 133) relata que “a criança, objeto metonímico do corpo da mãe, é o útero ferido da mãe, a testa ferida pelo bisturi. Mas no sonho, a bala que ele mesmo encomenda e que o atravessa, o torna mais vivo”. Assim, ao experimentar a morte em seu corpo, o sujeito se posiciona de modo menos mortífero para dizê-lo. As marcas deixadas por lalíngua no corpo aparecem nos sonhos, em todo tipo de tropeço e em diversas formas de dizer, como anuncia Lacan para tomar a dimensão do inconsciente pelo equívoco. Desse modo, o sonho no caso em tela pode se colocar de modo emblemático como um acontecimento de corpo.
O despertar funcionaria como uma borda tópica e temporal entre a cena do sonho e da realidade, operando como um limiar que marca um antes e um depois, para que possa anunciar: “isso aconteceu” (KORETZKY, 2023, p. 56). A formulação de que se desperta para continuar sonhando possibilita tomar o sonho pela fantasia e pela representação, no próprio tecido da realidade. Na psicose, se constata que os limites entre o sonho e a vigília parecem incertos, assim, o despertar não opera separando as cenas do sonho e da realidade, como fuga do despertar para o horror do real. Dessa forma, o sonho se coloca como “isso é tudo”, e não como se tivesse uma outra cena. Na ausência de fantasia, é o delírio que se apresenta, por isso a interpretação delirante que surge pode vir justificar o real encontrado. Como no caso apresentado, o sonho já parece fazer a interpretação em si. Percebe-se, assim, o sonho menos endereçado ao analista, em busca de sentido na interpretação sob transferência, mas sim, ao analista como testemunha.
Ao fazer um uso próprio do interesse do pai pelas grandes guerras, a elaboração de Matéo tem uma função importante que surge no sonho. Desse modo, ele pode dar lugar à consolidação de sua paixão pela história e por um saber que pode ser singular para ele, que ele nomeia “gosto pelo detalhe”. O sonho pode emergir como acontecimento, algo da ordem de uma tiquê, de uma contingência, e não de um automaton, pela repetição.
Como trazido anteriormente, se o sonho corresponde ao desejo de dormir, o caso clínico de Matéo, em cujo sonho os significantes traumáticos são deslocados, também permite que o sujeito possa continuar a “dormir” melhor. Para Matéo, o corpo afetado pelo trauma não é aquele atingido pelo bisturi, mas pela incidência da língua. Se o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua, o trauma não deve ser apreendido aqui a partir do vivido, nem mesmo do sentido e da história. O significante não se introduz aqui como um elemento simbólico que ordena e negativiza o gozo, mas como uma “potência de desordem” num registro do real.
Desse modo, o caso foi trazido na elaboração deste trabalho para levantar a questão do despertar, proposto no último ensino de Lacan, como um paradoxo para uma orientação clínica em sua dimensão do real e que também permita apontar efeitos importantes para a clínica com crianças.