ANDREA EULÁLIO DE PAULA FERREIRA, MARGARET PIRES DO COUTO E TEREZA CRISTINA CÔRTES FACURY
1 Introdução
Na contemporaneidade, a criança e seu corpo tornaram-se objetos privilegiados nos mais diversos saberes. Vários são os discursos que buscam regular, orientar e disciplinar o corpo da criança, esquecendo-se, frequentemente, de que ela é um sujeito capaz de interpretar e expressar seu próprio saber.
Hiperativos, deprimidos, fóbicos, autistas, agressivos, etc., são alguns dos nomes distribuídos a partir das avaliações escolares e científicas, configurando o momento atual em que grande parte das crianças encontra-se categorizada, apagando o traço da singularidade que concerne a cada sujeito.
Ao abordar esse tema, pretendemos investigar como, na atualidade, os discursos — enquanto modos de aparelhar e/ou produzir o gozo — buscam regular as relações dos sujeitos crianças e seus corpos. Para isso, trabalharemos com a hipótese, formulada pelo ensino de Lacan, de que o discurso da ciência, e não a ciência, pode funcionar segundo a lógica do discurso universitário e do discurso do capitalista. A obra científica genuína não exclui a causa, e, por isso, afirma Lacan (1973/1993, p. 40), “o discurso científico e o discurso histérico têm quase a mesma estrutura”. Assim, nessa estrutura discursiva, a verdade, como encontro com o real, não é eliminada, mas confrontada.
Por outro lado, a psicanálise, destinada sempre a ser uma ciência do particular, permite demonstrar que o discurso analítico, ao acolher a criança e seu saber, produz efeitos de histericização sobre seu corpo, demonstrando que esse corpo pode recusar a ditadura dos significantes-mestres produzidos pelo discurso da ciência.
2 O Corpo Da Criança No Discurso Científico
Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003) afirma que o corpo é mantido na ignorância pelo sujeito da ciência e indaga se chegaríamos a ter direito de desmembrá-lo em nome dessa ignorância. Qual é a verdade sobre o corpo que a ciência tende a ignorar?
Submetida ao imperativo da harmonia, a ciência desconhece aquilo que Lacan demonstrou ser a diferença entre ter um corpo e ser um corpo. “É totalmente estranho estar localizado num corpo, e não se pode minimizar esta estranheza” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 97). De acordo com Miller (2004), por mais corporal que seja, o ser falante, ao ser feito pelo significante, divide seu ser e seu corpo, produzindo uma falha de identificação. É por isso que, nesse corpo, se passam coisas imprevistas, coisas que escapam, acontecimentos que deixam traços desnaturais e disfuncionais.
Ao longo da história, o corpo se constituiu, gradativamente, como objeto da ciência, sendo concebido ora como natureza, ora como máquina, até tornar-se objeto de intervenções que vão além da finalidade terapêutica. Na tentativa de aprisioná-lo no discurso da ciência, o corpo padece, atualmente, cada vez mais, de transtornos inespecíficos, que fazem proliferar os diagnósticos médicos. Ele faz sintoma, é assolado pela angústia, escapando à estratégia de domá-lo. O grande número de sintomas no corpo que chega às nossas clínicas constitui-se em evidências daquilo que fora excluído, ignorado pelo discurso da ciência, e que retorna na cena do mundo.
No campo da história, Foucault já demonstrou que, desde a época clássica, o corpo foi descoberto como objeto de poder, de manipulação e treinamento, na tentativa de torná-lo obediente e dócil. Para o autor, o século XVII inaugurou novos métodos de controle minuciosos do corpo, que ele nomeou como “métodos disciplinares”. Esses métodos foram-se tornando fórmulas de dominação cada vez mais aprimoradas. Em Vigiar e punir, publicado originalmente em 1975, Foucault define a disciplina como o “poder da norma” (Foucault, 1975/1993, p. 164), que, ao conduzir à homogeneidade, permite medir os desvios, tendo como função maior o adestramento. Demonstrou a difusão da sociedade disciplinar e de seus mecanismos por meio da vigilância permanente, exaustiva e onipresente. Para ele, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação em um procedimento que lhe é específico, o exame.
De acordo com Foucault (1975/1993), a técnica do exame permite que cada indivíduo seja descrito, mensurado, medido e comparado a outros. Essa técnica faz com que a individualidade de cada corpo entre para uma documentação administrativa em que tudo é anotado, as atitudes e comportamentos são registrados em detalhes. Os corpos tornam-se legíveis, dóceis e objetivados. Não seria esse esquadrinhamento do corpo o que encontramos nas técnicas de avaliação e de seus protocolos, que visam a descrever e mensurar o comportamento dos sujeitos?
Isso se esclarece, por exemplo, quando observamos a criação do protocolo de “Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil” (IRDI), utilizado tanto em creches como nos consultórios pediátricos, que tem o objetivo de diagnosticar e tratar o autismo.i Fundamentado em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica de crianças de 0 a 36 meses, ele foi elaborado e validado com 31 indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. O IRDI aparece como um instrumento de promoção de saúde mental nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança, pois se entende que os cuidados psíquicos na infância reduzem a incidência de distúrbios mentais tanto nessa fase quanto na vida adulta (BERNARDINO; MARIOTTO, 2009).
Será possível observar e registrar o inconsciente? Não será essa proposta mais uma a alimentar a série: avaliação, classificação e medicalização?
Quanto ao fenômeno contemporâneo da medicalização das crianças, pensamos que essa seria uma nova técnica disciplinar com o objetivo de controle dos corpos. Porém, como operaria essa nova forma de “disciplinarização”?
A teoria dos discursos, desenvolvida por Lacan (1969-1970/1992), em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, pode ajudar a responder a essa questão. Lacan apresenta os discursos como laço social, uma estrutura que ultrapassa a palavra, antecede a fala dos sujeitos, organiza-as, permitindo dar um tratamento ao que escapa à articulação significante, quer dizer, um tratamento ao gozo que se encontra presente em todo laço social.
Os quatro discursos que Lacan matemiza — o discurso do mestre, o discurso histérico, o discurso universitário e o discurso analítico — correspondem a quatro tramas discursivas, quatro lugares de enunciação e quatro configurações significantes diferentes. Eles se diferenciam pela sua posição espacial e pela rotação que os quatro significantes (sujeito, significante-mestre, saber e o objeto a) fazem nos quatro lugares do discurso que, por sua vez, são fixos.
Os quatro lugares, lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade e lugar da produção, estão assim dispostos:
Nossa hipótese, como dito anteriormente, é que a ciência possa desenvolver-se a partir da lógica do discurso universitário e também do capitalista, como veremos adiante. A estrutura do discurso universitário ajuda a pensar como o saber científico, sustentado na lógica do poder disciplinar descrita por Foucault, ocupa-se dos corpos das crianças:
Trata-se, então, da lógica do discurso universitário, matemizado por Lacan da seguinte forma:
Nesse mesmo seminário, Lacan analisa as consequências ou os efeitos produzidos quando o saber (S2) está no lugar de agente ou na posição dominante do discurso. Para Lacan, no discurso universitário, o S2, o saber, ocupa o lugar da ordem, do mandamento, de forma anônima, pois se encontra separado de seu autor. No lugar da verdade (S1), está o significante-mestre operando para portar a ordem do mestre. O mestre não está mais aí na posição de domínio, o que permanece é seu mandamento, seu imperativo categórico, por meio do saber científico universal e generalizante. O efeito dessa configuração é o desconhecimento da verdade inconsciente e a tirania do saber que se apresenta como “verdade científica”. A verdade do sujeito, verdade, essa, sempre particularizada, é rejeitada em prol de uma verdade universal, aquela produzida pela ciência.
Assim, quando o agente do discurso é o saber, ele sempre se dirige ao Outro como objeto, “objetalizando-o”. É o mestre que ocupa o lugar da verdade, e o que se produz, nesse discurso, e, ao mesmo tempo, se perde, se exclui, é o próprio sujeito do inconsciente, com sua divisão.
Na contemporaneidade, verificamos uma perigosa aliança entre o saber científico e o capital, potencializando aquilo que Foucault descreveu como objetivação dos corpos e que, com o ensino de Lacan, extraímos como “objetalização” do sujeito.
Lacan matemizou um quinto discurso, o do capitalista, como uma nova modalidade do discurso do mestre, definindo-o como o laço social dominante em nossa sociedade:
Diferentemente da lógica dos outros discursos, o discurso do capitalista tenta eliminar a dimensão do impossível ao prometer o acesso direto do sujeito aos objetos e do mestre ao saber. Efetivamente, ele não promove o laço entre os sujeitos, mas a relação do sujeito com o objeto, supostamente capaz de recuperar o gozo perdido, que a entrada do ser falante na linguagem instaura.
Nesse sentido, o saber científico tem como objetivo produzir os objetos de consumo e colocá-los à disposição do sujeito. A divisão é transformada em déficit, fazendo com que o sujeito transforme seu mal-estar estrutural, a falta da estrutura, em um menos, na ilusão de que poderá ser preenchido com um objeto produzido e elevado pelo mercado à categoria do objeto a. Esse circuito faz funcionar a máquina da produção incessante de novos objetos a serem consumidos, transformando o próprio sujeito em um desses objetos. O efeito de toda essa maquinaria é o rechaço da divisão e sua consequente anulação do desejo, ao fazer crer que seria possível, e não mais impossível, o encontro com o objeto de satisfação. Os medicamentos entrariam na série desses produtos a serem produzidos, ofertados e consumidos. Então, como pensar a relação entre o corpo da criança e o saber científico, partindo da lógica do discurso capitalista?
Temos, no lugar da verdade, o significante-mestre representado pelos interesses do capital e a lógica do mercado. Esse significante-mestre comanda o saber científico e impõe a produção cada vez maior de novos objetos a serem consumidos: por exemplo, o medicamento. No lugar do agente, temos o sujeito criança com seu corpo não mais tomado como um corpo marcado pela falta, pela dimensão traumática que todo corpo apresenta para o ser falante. Ao contrário, temos um corpo marcado pelo signo do déficit, mesmo que pela vertente do excesso, ao escapar ao padrão considerado normal. Por isso mesmo, é um corpo a ser docilizado, domado, domesticado, silenciado, ao se endereçar, sem intermediários, ao saber científico e ao seu produto: o medicamento. Eliminada a dimensão do impossível (sem barras), nesse discurso demonstrado pelas setas que indicam a conexão direta, o corpo da criança se torna o objeto da ação do saber científico, sem as mediações necessárias que poderiam manter a disjunção entre a verdade e a produção presente nos outros discursos.
3 O Corpo Da Criança No Discurso Analítico
Qual o lugar que o corpo da criança assume no discurso analítico?
Para Cristina Drummond (2012), o conceito de objeto a construído por Lacan fornece importantes elementos para tratar a relação da criança com o corpo.
No texto “Nota sobre a criança”, de Lacan (1969/2003), podemos isolar as duas posições da criança na estrutura familiar: como sintoma do par parental e como objeto do fantasma da mãe. Nessa segunda vertente, o autor afirma que a criança se torna o objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto (Lacan, 1969/2003, p. 369). Trata-se, afirma Lacadée (1996), de uma situação em que a criança é tomada no fantasma da mãe de tal maneira que vem realizar a presença desse objeto a em seu fantasma. A criança satura esse modo de falta, dando-lhe corpo ou oferecendo seu corpo como objeto condensador de gozo da mãe. Ela vem saturar a falta da mãe, condensando sobre seu ser a verdade desse objeto.
Ao comentar o texto “Alocução sobre as psicoses da criança”, de Lacan (1967/2003), Drummond (2012) isola duas consequências dessa teorização da criança como objeto a para sua mãe. A primeira delas diz respeito ao questionamento do mito de completude presente na teorização dos pós-freudianos sobre a relação da criança com a mãe. Extrai, daí, uma orientação ética ao tratamento analítico de crianças: “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (Lacan, 1967/2003, p. 366). Trata-se, portanto, de impedir que a criança seja fixada na fantasia materna. A segunda consequência situa o achado clínico de Winnicott, afirmando que o ponto central dessa formulação “não é que o objeto transicional preserve a autonomia da criança, mas que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe” (Lacan, 1967/2003, p. 366).
Ainda de acordo com Drummond (2012), há, em muitos dos sintomas das crianças, na atualidade, a impossibilidade de fazer a operação de separação desse lugar de objeto que ela é para o outro, e essa impossibilidade retorna sobre o corpo da criança. Há, nelas, uma enorme dificuldade de interrogar sobre o desejo materno e fazer dessa interrogação um enigma. Além disso, encontramos nesses sintomas a dificuldade da criança para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a produziu.
A problemática que se coloca quando o sintoma se aloja no corpo é se o analista poderá constituir-se como um destinatário da fala do sujeito, dividindo-o, fazendo surgir sua demanda de saber, enfim, pondo em funcionamento o discurso do inconsciente.
Nesse sentido, a estrutura do discurso analítico ajuda a pensar a operação possível e esperada pelo analista:
Trata-se do lugar do analista que, ao se fazer de objeto, endereça-se à criança como um sujeito dividido e, ao manter seu saber abaixo da barra, permite a ela produzir seu próprio saber e se separar dos significantes-mestres que a capturavam. Nesse sentido, o efeito dessa operação seria a histericização do sujeito — demonstrada por Lacan por meio da lógica do discurso histérico — que pode encontrar nesse dispositivo um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Ao poder endereçar-se ao campo do Outro, a partir de sua divisão, o sujeito pode supor o inconsciente e produzir um saber sobre esse real que toma seu corpo.
Em outro texto, “A criança objetalizada” (2007), Cristina Drummond ressalta que o discurso científico fez do corpo da criança uma mercadoria que pode ser usada e descartada pela ciência. Desalojá-la desse lugar e se opor que a ciência faça do corpo da criança um objeto comercializado, disciplinarizado e medicalizado é, portanto, uma orientação ética da psicanálise.