FAYGA PAIM
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.
Manuel de Barros
O presente trabalho tem por objetivo discutir a função do escrito ou, mais especificamente, se perguntar se existiria algo que não se pode ler em uma análise, algo que realmente seja ilegível. Percorrendo alguns textos de Lacan e de Miller, tentamos bordejar essa questão.
No seminário mais, ainda, especificamente no texto “A função do escrito”, Lacan se pergunta: “Como retornar, senão por um discurso especial, a uma realidade pré-discursiva?” (LACAN, 1973, p. 37) Seria possível um discurso que desse conta dessa realidade, desse paraíso pré-verbal, daquilo que não pode ser articulado ao discurso, daquilo que estaria anterior à linguagem ou, como nomeou Lacan, do Real? Ou, ainda, poderíamos nos perguntar sobre a existência de um discurso capaz de abarcar esse inassimilável?
E ele mesmo, Lacan, nos lembra que aí está o sonho. Que esse seria “o sonho fundador de toda ideia de conhecimento” (LACAN, 1973, p. 37), ou seja, entender, compreender, organizar o que se passa no Real.
No fundamento da mitologia cristã se encontra uma passagem em que anjos portadores de espadas fulgurantes são postos à porta do paraíso perdido, impedindo o retorno. “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas a árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer” (Bíblia de Jerusalém). Essa marcada ruptura entre um antes e um depois deixa claro que algo é inalcançável. Passagem de cunho ilustrativo, da origem dos tempos, que seria apenas para marcar o que Lacan considera como mítico. Não existiria o antes e o depois do discurso, portanto não está constituída nenhuma realidade pré-discursiva. Claramente ele nos diz que “Cada realidade se funda e se define por um discurso” (LACAN, 1973, p. 37).
Não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de o que faz coletividade, e de que chamei os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças não são mais do que significantes. (LACAN, 1973, p. 38)
A partir disso, poderíamos pensar nas limitações do discurso analítico, já que a teoria psicanalítica se funda no discurso? Se ela se funda no discurso, como seria possível acessar algo que não se inscreve nele, algo que escapa a todo discurso?
Para Lacan, é aí que se coloca uma questão: Como lidar com isso, que faz furo no saber? Lidar com o que se encontra fora do discurso? Trata-se de saber o que, num discurso, se produz por efeito de “escrita” (LACAN, 1973, p. 39). Algo que está posto, mas não é decifrável. Que história é essa? Qual é o uso retorcido? E o que justifica a separação entre a escritura e a leitura? Miller observa que, entre um significante e um significado, existe uma interpretação, uma passagem obrigatória (MILLLER, 1996, p. 96).
Lacan inaugura uma ruptura com o pensamento saussureano e instaura uma fissura, um espaço, uma passagem, uma décalagei (distância) entre o significante e o significado.
O linguista Ferdinand de Saussurre cunha uma noção de significante da qual Lacan se apropria. Porém, para Saussurre, o significante e o significado estão unidos arbitrariamente, ou seja, em função do acaso. O significante carregaria uma parcela do signo linguístico (o som), enquanto o significado estaria mais ligado ao sentido, ao conceito, a uma ideia. Portanto, significante e significado estariam unidos. Mas Lacan subverte esse conceito saussureano e diz que a linguagem é essencialmente constituída de significantes e não de signos, e que o significado não tem necessariamente uma relação fixa com o significante. Que o significado desliza pela cadeia significante. Talvez o mais importante que Lacan queira nos dizer seja que a relação entre significante e significado não é fixa, mas variável. Lacan usa como exemplo o texto joyceano em que o significante aparece como recheio de significado.
É pelo fato dos significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem – leiam Finnegans Wake – que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas que é mesmo o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler – o Lapso. É a título de lapso que aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas é precisamente por isso que aquilo se lê mal, ou que se lê de través, ou que não se lê. (LACAN, 1973, p. 42)
Portanto, o escrito seria algo que se inscreveria sob novo estatuto? Assim, Lacan atribui ao Escrito um estatuto distinto da relação entre significado e significante. O Escrito não se inscreveria sob a égide do significado nem do significante. Mas algo que se relacionaria mais com a barra que os separa. Mas não será um estatuto extremo, já que ele “descobre antes de mais nada a escritura na própria palavra” (MILLER, 1996, p. 96).
E ele, Lacan, se pergunta: como lidar com isso, que é de quebrar a cara? [bem, eu estou quebrando a minha.] Ou seja, dizer da função do escrito ou daquilo que não se pode ler em uma análise, o ilegível. Nesse momento do seu ensino, poderíamos dizer que Lacan afirma a não preponderância do simbólico sobre o real. O simbólico claudica, falha. Não devemos pensar, como nos adverte Miller (MILLLER, 1995, p. 330), que o sentido escapa por que somos bobos. “O sentido foge como a verdade se esconde. O sentido escapa como líquido de um tonel” (Miller, 1995, p. 330). Como as Danaides, as personagens mitológicas que foram condenadas a encher tonéis sem fundo pelo resto da vida, estamos atrás de algo que dê um sentido a tudo, atrás de uma verdade inalcançável. Assim, completa Miller, a fuga do sentido é um real da linguagem (MILLER, 1995, p. 330). Aí onde o simbólico falha advém o Real em lampejos, em cintilâncias.
É muito difícil o acesso à definição, proposta por mim, da fuga do sentido como um real. Porque a representação que fazemos do real é justamente a de uma resistência, alguma coisa impossível de mudar, à qual associamos a noção de permanência. Em relação ao significante, que tem circuitos e se desloca, somos formados para representar o real como o que retorna ao mesmo lugar, e, portanto, com uma imagem de imobilidade. O sentido, visto que ele escapa, opõe-se às representações que temos do real. Para acessar o que evoco, precisamos nos dar conta de que o permanente, a fuga do sentido, é uma propriedade de estrutura do sentido, o que constitui um real da linguagem.[…]Assim, estamos sempre na contingência, o que parece o próprio oposto do que é real. (MILLER, 1994-95, p. 330)
Então, poderíamos pensar que o escrito constitui um real da linguagem. Mas não um real fixo, como aquilo que retorna ao mesmo lugar, mas algo que se movimenta. A fuga do sentido, portanto, é o movimento que se relaciona com o sentido e não com o real movimento do sentido. Movimento de não completude, de não encaixe, de dissonância. Algo que está sempre a escapar, sempre em desvio, sempre infinito, que nunca atinge seu alvo e não se completa. É sempre um encontro com o real, ao qual imediatamente é dado um sentido, e deixa de ser real.
Nunca chegamos a capturar o sentido, e, quando o capturamos por um enunciado, ele abre sempre uma nova pergunta: Mas então o que isso quer dizer? O sentido é um objeto perdido, como o objeto perdido da linguagem. Não chegamos a recuperá-lo, ele é um objeto tal que não podemos pôr-lhe as mãos em cima, o objeto-sentido. (MILLER,1995,p. 329)
A fim de encerrar o sentido, os homens se põem a dois na tentativa de negar a inexistência da relação sexual. Contudo, existe aí a mulher, que não é toda, e, nela, alguma coisa que escapa ao discurso (LACAN, 1973, p. 38), o que atesta e agita essa impossibilidade, esse incômodo: “Tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que um certo efeito de discurso que se chama escrita” (LACAN, 1972-73, p. 40).
Assim, a escrita proporciona que se perceba a não existência da relação sexual, o que não para de não se escrever.
[…] o discurso analítico, abordou esta questão seriamente e colocou que a condição da escrita é que ela se sustente por um discurso, que tudo escapa, e que, a relação sexual vocês não poderão jamais escrevê-la – escrevê-la com um verdadeiro escrito, enquanto aquele que, da linguagem, se condiciona por um discurso. (LACAN, 1972-73, p. 41)
Só nos resta concluir, fazendo eco da voz de Lacan, que, no seu último texto dos Escritos, já em 1976, apresenta a seguinte frase: “Quando […] o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente” (LACAN, 1976, p. 567). Quando o inconsciente não pode ser lido, é aí que está o inconsciente? Esse seria o inconsciente real? Podemos observar uma torção no pensamento Lacaniano que, ainda no Seminário VI, afirmava que “o desejo inconsciente é a sua interpretação” (LACAN, 1959). Segundo Miller, seremos levados a crer que existe uma “disjunção entre o inconsciente e a interpretação” (MILLER, 2006, p. 4). Portanto, o inconsciente não seria apenas o conteúdo interpretável, mas também algo que escapa a toda tentativa de um entendimento. E isso figura claramente a importância do escrito que não pode ser lido em uma análise.
(1) Termo usado por Ram Mandil, em sua tese de doutorado, para dizer dessa distância entre o significante e o significado.