GIULIA CAMPOS LAGE
Residente em Psiquiatria pelo Instituto Raul Soares (FHEMIG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM-MG
giucamla3@hotmail.com
Resumo: Frente à experiência em uma instituição psiquiátrica, constata-se a dificuldade em manejar a neurose na urgência hospitalar. Este texto visa buscar, na teoria psicanalítica de orientação lacaniana, formas de entender a urgência subjetiva, principalmente na neurose, e como poder viabilizar saídas que acolham a subjetividade em questão, evitando a institucionalização.
Palavras-chave: psicanálise; urgência subjetiva; neurose.
NEUROSIS IN SUBJECTIVE URGENCY
Abstract: Faced with the experience in a psychiatric institution it is observed that there is a difficulty in managing neurosis in the hospital emergency room. This essay seeks ways to understand – through psychoanalytic theory of Lacanian orientation – subjective urgency, especially in neurosis, and how we can enable possible solutions that embrace the subjectivity in question, avoiding institutionalization.
Keywords: psychoanalysis; subjective urgency; neurosis.
Keywords: psychoanalysis; subjective urgency; neurosis.
Dou início ao curso de psicanálise no Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em meio ao meu primeiro ano de residência em psiquiatria no Instituto Raul Soares. Entre os diversos aprendizados que acontecem nesse momento, algo me intriga: a abordagem da neurose na urgência hospitalar. Haveria alguma forma de evitar a internação? Ricardo Seldes, em La Urgencia Dicha, aponta que a “urgência subjetiva é uma experiência que dá chance de fazer diferente com a palavra, e isso muda as coisas” (SELDES, 2019, p. 12).
A urgência em psicanálise é um tema intrínseco à prática psicanalítica. Frequentemente acolhemos pessoas que passam por um momento de crise no qual os recursos que elas têm para dar conta da sua existência se desestabilizam. Segundo Sandra Letícia Berta, em seu artigo “Localização da urgência subjetiva em psicanálise”, a urgência como subjetiva leva em conta a dimensão do real em jogo. Isso a Lacan não era decisivo, tampouco importava definir, mas, pelos motivos que nos interessam aqui, podemos delinear como sendo aquilo que, no discurso do mestre, não anda, isso que o discurso não consegue cernir, isso que têm algo muito singular para cada um. Nesse sentido, Berta define que uma questão preliminar sobre a urgência subjetiva em psicanálise deveria ser formulada a partir do conceito de angústia e da teoria do trauma, cujos referentes epistêmicos se encontram na obra de Sigmund Freud e no ensino de Jacques Lacan (BERTA, 2015).
Para Lacan, o sujeito do inconsciente não nasce nem se desenvolve; ele se constitui e só pode ser concebido a partir do campo da linguagem. O bebê, no seu nascimento, se encontra em um desamparo fundamental, de modo que não dá conta de sobreviver por si mesmo, exigindo a intervenção de um Outro primordial, que o implicará na lógica do significante (GUSMAN; DERZI, 2021).
Lacan menciona, no Seminário 6, que o sujeito só́ pode se instituir como tal enquanto sujeito que fala, enquanto sujeito de fala.
“Na medida em que o Outro é ele próprio marcado pelas necessidades da linguagem, já não é o Outro real, instaura-se como lugar de articulação da fala. Aí é que se constitui a primeira posição possível de um sujeito como tal, de um sujeito que pode ser apreendido como sujeito, como sujeito no Outro, na medida em que esse Outro o pense como sujeito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 402).
O corpo, então, se encontra à mercê da linguagem, e é esse encontro com o corpo que Lacan considera traumático. O trauma é entendido como a entrada do sujeito no mundo simbólico. Ele não é um acidente, mas constitutivo da subjetividade. O trauma do sujeito é a exigência da linguagem e a dependência do sujeito ao significante. Devemos lembrar que o sujeito já é nomeado antes de ele ter nascido; já se encontra implicado na lógica do Outro. É então crucial que o Outro, geralmente materno, faça a função de nomear e reconhecer o bebê como um sujeito e que faça uma significação do seu grito, que deve ser interpretado pelo Outro como uma demanda de satisfação. O Outro é quem pode dar uma resposta ao apelo do bebê e lhe faz a pergunta fundamental: Che vuoi, que queres? Nesse momento, o sujeito tem seu primeiro encontro com o desejo como desejo do Outro (GUSMAN; DERZI, 2021, p. 8).
Para Lacan, no Seminário 6, o desejo do Outro é sempre traumático, já que o sujeito se encontra sem recursos, desamparado diante da opacidade do desejo do Outro. O sujeito se encontra em um ponto zero e o desejo do Outro é enigmático. O sujeito precisa então produzir uma resposta, a fantasia, no caso da neurose. Assim, “o desejo do Outro permaneceria como um núcleo enigmático, até que, depois, a posteriori, o sujeito possa reintegrar o momento vivido numa (…) cadeia geradora de toda uma modulação inconsciente” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 453), ou seja, o sujeito precisa inventar uma lógica, uma resposta para essa pergunta, e colocar a resposta em uma cadeia. É aqui que aparece a fantasia. “O que lhe dá seu valor de índice é um tempo suspenso, uma pausa, que corresponde a um momento de ação em que o sujeito só́ pode se instituir de uma certa maneira x” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 454).
Para Lacan, no começo, é a imagem do outro que constitui o suporte do sujeito e, depois, vem uma estrutura denominada fantasia, que é o suporte e o índice de certa posição do sujeito no desejo. Como menciona Miller:
“É a mesma lógica da fantasia que opera no âmbito do inconsciente, em que o sujeito não tem a possibilidade de designar a si mesmo, em que é confrontado com a ausência de seu nome de sujeito. É, então, à fantasia que ele recorre e é na sua relação com o objeto do desejo que reside a verdade de seu ser” (MILLER, 2014, p. 9).
Lembremos que o significante determina o sujeito, e é em posição de sujeição que ele será́ constituído pelo universo simbólico. Há sempre algo que fica de fora, que Lacan chama de real. O encontro com o real não tem correspondência no simbólico.
“O esbarrão com o real (…) desarranja a homeostase significante, tendo a importante função de romper com uma situação na qual o eu se reconhecia” (GUZMAN; DERZI, 2021, p. 9). Como tal, o acidente traumático é algo que impulsiona para a mudança, porque a desestruturação promovida na tessitura simbólica e imaginária do eu empurra o sujeito para um novo arranjo, em que a construção de uma narrativa tem um papel fundamental (RUDGE, 2009).
Segundo Favero (2009), o inconsciente estruturado como uma linguagem pode ser entendido a partir do que o inconsciente se apresenta como tropeço significante, atribuindo um sentido à falha do discurso por meio da repetição. A repetição do sujeito está ligada à procura do objeto perdido, na tentativa de reencontrá-lo. Assim, Lacan desenvolve o conceito de real como algo impossível de nomear e que sempre retorna ao mesmo lugar para o sujeito. A repetição “envolve algo que está excluído da cadeia significante, que o sujeito não lembrará, mas em torno do qual a cadeia de significantes gira” (FAVERO, 2009, p. 65). Isso quer dizer que a repetição envolve tanto o “impossível de pensar” quanto o “impossível de dizer”. Dessa forma, o real surge de um encontro faltoso que, via repetição, “reitera o impasse próprio da estrutura do sujeito. Essa repetição traz o retorno não do mesmo, e sim do diferente, de uma outra coisa, que até faz parecer que não é um retorno” (RUDGE, 2009, p. 43). Assim, o real lacaniano trata daquilo que escapa da cadeia significante como um trauma, um corte que impõe seus efeitos e limites (GUSMAN; DERZI, 2021).
No que se refere à urgência subjetiva, segundo Seldes, esta costuma aparecer relacionada a um trauma, e isso rompe os limites do imaginário e do simbólico. O trauma é um daqueles eventos psíquicos que tocam o real, assim como a alucinação na psicose ou a experiência do gozo no perverso. A neurose vivencia momentos de angústia que aproximam o sujeito inconsciente da realidade e o afastam de sua tendência de considerar a vida um sonho (SELDES, 2019).
Como localizar o espaço e o tempo hoje, quando, na urgência, tudo é da ordem do imediato? Com os tempos lógicos de Lacan, interpretamos que existe um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, sem passar pelo tempo de compreender.
Tentamos elucidar a urgência com base no trio de descompensação, desencadeamento e desconexão. Três formas de crise que dão origem a um real como modos de hesitação do simbólico. A nova forma será restaurar o simbólico — não sem o imaginário —, talvez de um novo modo.
O que condiciona a possibilidade da invenção? Que o Outro não existe. Depois de uma emergência, talvez um trauma, o sujeito deve se reinventar a partir de um Outro que não existe mais. É preciso então “fazer” com que um sujeito perdido reencontre as diretrizes de vida com um Outro do qual se sentia perdido. Não há pedagogia, não se reaprende a conviver com o Outro; a proposta urgente é construir um novo caminho, um caminho que devemos ajudar a buscar ao lado da insensatez do fantasma e do sintoma, o que excede todo “sentido” possível na causa libidinal.
Por essa via, referir-se à urgência implica que partamos do gozo, e não do Outro do significante. A experiência analítica, a experiência da palavra, afeta o corpo, corpo afetado pelo significante. Nele, o corpo não é um corpo que fala, mas quem fala em análise não o faz sem o corpo (SELDES, 2019).
Do que temos medo, então? Lacan se pergunta. Do nosso corpo.
“Isso se manifesta por aquele curioso fenômeno sobre o qual durante um ano inteiro dei um seminário que chamei de angústia. É o nosso corpo, justamente, a angústia está situada em um lugar diferente do medo. É o sentimento que surge dessa suspeita que nos assalta de que nos reduzamos ao nosso corpo. É muito curioso que esta fraqueza do parletre tenha conseguido chegar a este ponto, perceber que a angústia não é o medo de algo que pode motivar o corpo. É um medo de temer” (LACAN, 1975-1980/2015, p. 27).
A introdução da contingência é uma resposta lacaniana à urgência, ao contrário das psicoterapias que tentam retornar ao estado anterior, isto é, ao estado anterior à irrupção “daquilo” que causou o surto. É sobre a eclosão de uma verdade que se mostra impotente para definir o estado pelo qual alguém está passando.
A urgência é a oportunidade de apreender como as verdades imutáveis de alguém se transformam em outra coisa, algo que não se sabe ser, mas, na verdade, não é mais. O sujeito em análise é extraído da operação lógica de alienação, simbólica, e separação, pulsional. Isso torna a distinção algo subjetivo, aquela que o discurso da ciência gostaria de silenciar (SELDES, 2019).
Ao receber um paciente que chega em uma instituição diante de uma urgência subjetiva, o diagnóstico estrutural não está dado. Não se pode dizer de um sujeito em análise. Qual seria, então, o papel do analista nesse dado momento? Viganó, em seu texto “A palavra na instituição”, traz que Lacan dá uma indicação acerca dessa tarefa: “talvez é do discurso do analista, que se completam os três quartos de giro, que pode surgir um outro estilo de significante–mestre” (XVII; p. 205 trad. italiana). Com essa tarefa, da qual Lacan não se cala diante do desafio da impossibilidade, somos confrontados a construir uma Escola do passe, onde o posto da exceção que a escola representa no social pode consentir a qualquer pessoa que se coloque diante do real da clínica como o mais-um que transforme a firmeza do gozo, escolhendo a identificação que a sustenta. A demanda estereotipada pode encontrar a via de uma nova modulação, caso encontre um interlocutor que encarne uma nova versão do posto de poder (VIGANÓ, 2006).
Portanto, conclui-se que não se pode afirmar que o encontro com o real, o trauma, a urgência subjetiva, nos conduza sempre a efeitos desastrosos na subjetividade. Pode-se também recolher efeitos surpreendentes, possibilitando remanejamentos subjetivos, ou, melhor, permitindo o sujeito a retificar sua posição subjetiva a partir da contingência. É necessário ressaltar que o encontro com o real pode fazer vacilar a fixação do fantasma, e o resíduo do traumatismo pode permitir que o sujeito descole do semblant, da ficção, do engodo, e possibilite a emergência da saída do desejo (GUZMAN; DERZI, 2021).