Supervisão clínico-institucional e orientação psicanalítica
Este trabalho se inscreve na perspectiva de uma experiência de supervisão clínico-institucional, em que foram acompanhadas as equipes da Rede de Atenção Psicossocial – com destaque para as conversações realizadas com a equipe do Consultório na Rua, dispositivo da Atenção Primária à Saúde para populações de rua – em direção à construção de saídas diante dos impasses dos trabalhadores na abordagem dos sujeitos em situação de rua.
A supervisão clínica-institucional tem uma função singular no trabalho das equipes no exercício do trabalho compartilhado. Ao supervisor cabe “a complexa tarefa de contextualizar permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, levando em conta as tensões e a dinâmica de rede e do território” (BRASIL, 2007, p. 1).
A partir dessa diretriz política, o supervisor de orientação lacaniana é remetido ao campo da psicanálise aplicada, que, nesse contexto, se trata da clínica denominada “feita por muitos”. O que também lhe possibilita atuar em novos dispositivos em sua relação com a cidade, para além da psicanálise standard. Como afirma Teixeira (2010), há particularidades da psicanálise nos dispositivos em saúde mental:
“É a partir da psicanálise que encontramos uma orientação clínica que respeite a lógica extraída de cada caso, assim, como a possibilidade de operar com dispositivos clínicos que considerem as saídas apontadas por cada sujeito” (TEIXEIRA, 2010, p. 23).”
Nessa direção, cabe ao supervisor, a partir da transferência de trabalho e de sua posição êxtima em relação à equipe, colocar-se como aprendiz da clínica a partir da experiência dos trabalhadores, condição para que possa emergir desse encontro um novo saber, para além dos ideais de cura e de inserção social dos sujeitos, e, dessa posição, poder reconhecer os efeitos de sua prática. Nas palavras de Alvarenga (2011):
“A posição do êxtimo deve ser conquistada a cada passo pela maneira de se utilizar o real como furo no saber próprio à mestria. Ela convoca e autoriza o não-todo do saber, e responsabiliza cada um por sua construção. Procura-se então situar em cada caso, o que escapa ao saber cristalizado em torno do paciente, que alimenta um sentimento de impotência e desânimo, evitando que o saber do Outro venha anular a dimensão da enunciação (ALVARENGA, 2011, p. 3).”
Ao adotar a prática da conversação para o trabalho com a equipe, busca-se a produção de um novo saber sobre cada caso acompanhado. A partir da circulação da palavra, são recolhidos fragmentos que marcam a experiência dos trabalhadores. A escuta permite uma localização de pontos de real em jogo para cada sujeito e novas construções dos casos tendo como referências as estruturas clínicas e as fixações de gozo, apontando direções para as intervenções junto aos sujeitos. A conversação, definida como “uma prática da palavra para tratar dos insucessos”, ao privilegiar a enunciação, produz um efeito de saber que passa a orientar o trabalho, rompendo com o discurso da impotência na equipe (LACADÉE, 1999/2000; MIRANDA; SANTIAGO, 2010).
Por sua vez, a construção do caso clínico, operando como eixo para o trabalho em equipe, permite a circulação da palavra, o compartilhamento de elementos do caso e o esvaziamento de saberes prévios instituídos. Isso dá lugar ao trabalho coletivo, que destaca as contingências da história do sujeito e permite o aparecimento do sujeito singular e do caso. Na construção do caso, trata-se de recolher as narrativas do sujeito, dos operadores, das famílias, das instituições e das escanções clínicas, bem como as possibilidades diagnósticas, abrindo novas perspectivas de intervenção (VIGANÓ, 1999; FIGUEIREDO, 2004).
A rua como resposta ao impossível de dizer
A partir da supervisão, um esforço da oferta da palavra aos sujeitos em condição de rua é o convite posto à equipe, em uma prática orientada pela psicanálise em que se busca cotidianamente fazer uma leitura do sintoma do sujeito e da função que a rua tem para cada um, apostando no que há de único em cada sujeito.
A escuta tem produzido novos saberes sobre os sujeitos, destacando seus movimentos de desinserção e reinserção em lógicas particulares que os localizam no laço social. Podem ser destacadas três posições distintas:
- Uma posição melancólica – marcada por pura pulsão de morte, em que não há uma articulação entre cadeia significante e o real do corpo – anuncia a morte do sujeito e convida a equipe à sublimação do ódio diante do insuportável da singularidade do gozo do outro e da recusa do sujeito à oferta de cuidados. O caso de um jovem que vivenciou o apodrecimento de seu corpo até a morte anuncia a impossibilidade de qualquer inserção no laço social, em que uma irrupção de real marcada pela ausência da palavra rechaça o outro, implicando um mal-estar generalizado na equipe. Uma releitura de sua história e a localização de possíveis pontos de desencadeamento permitem à equipe um novo posicionamento em busca de construção de saídas possíveis para lidar com a recusa do outro.
- Uma posição paranoica, em que a oferta de cuidados é o mal encarnado na equipe, convida a equipe a repensar as suas práticas marcadas pelo ideal da inclusão social diante do movimento do sujeito em direção à desinserção no laço social, rechaçando o outro. O caso de uma mulher para quem as instituições estragam seus filhos anuncia o que é possível para cada sujeito, o que pode ser inventado diante da ameaça que o outro constitui. Essa mulher faz mudanças periódicas de endereço na cidade para não ser encontrada pelos técnicos de políticas públicas, desencadeando indignação entre os integrantes das equipes na medida em que, ao recusá-los, ela promove uma desconstrução radical nas suas práticas e os convida a romper com os ideais da política para todos. Em outra via, depara-se com um sujeito sentenciado para o qual a rua representa a possibilidade de anonimato frente às exigências judiciais e para quem o trabalho da equipe constitui uma ameaça ao arranjo construído. A possibilidade de manifestações kakônicas daí advindas convida a equipe ao seu discreto manejo, que implica na subtração do ideal de inserção do sujeito no laço social.
- Uma posição marcada pelo apelo ao sentido do sujeito, em que a oferta da palavra o coloca a trabalho, convida a equipe à sustentação do fazer cotidiano apostando na possibilidade de o sujeito se colocar questões sobre sua condição de rua e, a partir desse ponto, poder ressignificantizar a vida em direção à reinserção no laço social. Diante do caso de uma mulher que perdeu a guarda dos filhos em consequência de suas ausências e do uso abusivo de drogas, a partir da escuta da equipe, colocam-se questões que conduzem essa mulher a novos projetos de vida, incluindo trabalho e nova moradia, e, nessa via, dá-se dignidade ao sintoma rua, fazendo-a se reposicionar em relação aos seus laços sintomáticos.
Tendo como referência as possibilidades de posições que marcam os sujeitos em condição de rua, gradativamente, há um deslocamento da equipe em seu desejo de curar, anunciando, assim, uma nova posição de escuta que busca localizar junto aos sujeitos o que se repete, o sem sentido e as amarrações possíveis para cada caso. Ao real impossível de suportar, a supervisão aponta para a preservação do laço, emprestando o corpo e aguardando as contingências propícias ao ato e seus efeitos (ALVARENGA, 2013).
Considerações finais
Pelo dispositivo da supervisão, são verificados avanços nas práticas da equipe a partir da escuta e do reconhecimento do que há de único em cada sujeito e do que se recolhe e se compartilha em cada caso, dando uma nova direção ao trabalho coletivo que possibilita repensar as práticas de cuidados particularizados e os serviços prestados pela equipe.
A supervisão tem possibilitado a emergência da dimensão clínica da política, valorizando a circulação da palavra e destacando o que há de mais singular em cada caso compartilhado e em cada saída construída pelo sujeito para lidar com o insuportável.
Lacan, no Seminário 23, ao tratar das formas de amarração possíveis entre os registros imaginário, simbólico e real, destaca que “O nó, certamente, é alguma coisa que se amassa, que pode tomar a forma de um novelo, mas que, uma vez desdobrado, mantém sua forma de nó e, ao mesmo tempo, sua ex-sistência” (1975-1976/2007, p. 165).
Tendo essa referência, pode-se afirmar que, para essa equipe, a supervisão funcionaria como um quarto elo que faz amarração entre o fazer de cada um, o trabalho em equipe e a dimensão clínica da política? Para Figueiredo (2009), a supervisão teria a função de enodar as diferenças estratégicas para construção e consolidação do trabalho em equipe como operador central da clínica.
Assim, a aposta no dispositivo da supervisão é o convite para a produção de um novo saber-fazer aí com os sujeitos, a partir do trabalho em equipe e da dimensão clínica que reconheça a solução de gozo que a rua apresenta para cada um.