LAURA FÉLIX REIS MACIEL / MÁRCIA ROSA
VICTOR BRAUNER SURREALIST PAINTER
Ao formular as estruturas de parentesco, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1947/2009)[1] evidenciou a presença de um conjunto de regras muito restritas que comportam uma primeira lei, a exogamia. Partindo daí, traçou as condições algébricas da escolha de objeto: as estruturas de parentesco são elementares quando se fundam em regras que não apenas proíbem, mas também prescrevem os objetos com os quais laços são permitidos, tornam-se complexas quando há proibição, mas não prescrição. Nesse caso, respeitada a interdição do incesto, o sujeito é livre para estabelecer suas alianças.
Fundamentado em suas extensas pesquisas sobre o parentesco, Lévi-Strauss (1970/2015)[2] listou as suas propriedades invariantes ou traços distintivos, aqueles que permaneceriam imutáveis através da diversidade das raças, culturas, línguas, etc. Para ele, a família tem sua origem no matrimônio, inclui o marido, a mulher, os filhos nascidos de sua união; os membros estão unidos entre si por laços jurídicos, por uma rede precisa de direitos e obrigações sexuais e sentimentos tais como o amor, o afeto, o respeito, o temor, etc. (1970/2015, p. 60)[3]. Para definir a família Lévi-Strauss se serviu da linguística de Saussure, de modo que a família levistraussiana é um sistema fundado no poder ordenador das diferenças, diferença nas funções do pai e da mãe e diferença sexual.
O declínio da potência simbólica do pai faz vacilar os fundamentos lingüísticos da família e sua sustentação nas diferenças. Tal como afirma a psicanalista Marie-Hélène Brousse (2010)[4], na medida em que a diferença homem-mulher, organizadora das leis de aliança e de parentesco, é tocada, todo o sistema se reformula. Passa a existir um intercâmbio de autoridade e de cuidado e ele institui uma equivalência ali aonde antes operava uma diferença, institui um valor comum, gerando o que vem sendo denominado parentalidade.
Esse valor comum intercambiável se sustenta na aposta de que pai e mãe são funções simbólicas e que podem ser exercidas por um homem e uma mulher, por dois homens, duas mulheres, etc. Em que pese isso, Lacan não deixa de levar em conta que “não é a mesma coisa ter tido sua mãe e não a mãe do vizinho, o mesmo para o seu pai”. (LACAN, 1975-1976, p.45)[5] Com isso, assinala a presença do real na constituição e na manutenção da família. Essa dimensão apresenta-se na definição de família proposta por Jacques-Alain Miller, em resposta aos invariantes antropológicos de Lévi-Strauss: “(…) a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. (…) é essencialmente unida por um segredo, pelo não-dito. (…) É um desejo não-dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe? (…)”. (MILLER, 2007, s.p.)[6] Esse excesso, esse real trazido pelo modo de gozo dos pais mantido secreto introduz uma configuração familiar fundada na contingência ou em afinidades eletivas, eleições aleatórias e, muitas vezes, transitórias.
Em vista disso, interessa-nos pesquisar a presença estruturante do postulado milleriano —a família se organiza em torno de um segredo sobre o gozo dos pais—, bem como as consequências sobre a subjetividade da revelação, inoperância ou inexistência desse segredo familiar. Ao considerarmos que ele não deixa de estar relacionado ao Édipo, indagamos: e quando o recalque não opera?
O Segredo De C
C., 37 anos, foi internada em um hospital psiquiátrico da Rede Pública pela força policial, após ter agredido fisicamente sua vizinha, ameaçando-a de morte. Diz não ter privacidade em casa, “os vizinhos fazem a maior putaria lá”, querem roubar seu barracão e matá-la.
Natural de uma cidade no interior do estado de Minas Gerais, a paciente mora com seu atual companheiro, J, há oito anos em Belo Horizonte. Ela tem três filhos (de 20, 19 e 18 anos), frutos de um relacionamento anterior.
Segundo o prontuário, o quadro clínico foi desencadeado durante a gravidez do primeiro filho. Embora não se saiba muito sobre essa gravidez, C diz que em sua segunda gravidez deu à luz filhas gêmeas, mas que a médica responsável “roubou” uma das crianças: “é, a médica loira pegou a outra neném, porque eram gêmeas, né? Mas ela só me deu uma, que é a P.”
Quanto à sua própria mãe, C afirma que esta morreu há quatorze anos. Afirma também que não conheceu o pai, uma vez que “não era só um que deitava com sua mãe”. Ela se refere a ele como um “pai invisível”, não tendo o nome do mesmo em sua certidão de nascimento. Tem irmãos, mas não sabe ao certo quantos, sabe apenas que são filhos de pais diferentes.
No decorrer da entrevista, depois de falar abertamente, e sem qualquer incomodo, sobre a desorientação do gozo materno —de como à noite a mãe colocava lingerie preta e recebia homens em casa—, espontaneamente, e com um tom de cumplicidade, ela pergunta a entrevistadora: “posso lhe contar um segredo?” E, então, confidencialmente, afirma ser dona de uma frota do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Diz ter sido aconselhada por um guarda do Hospital G. V. a comprar ambulâncias como forma de investimento. Em função disso, não pode se casar, uma vez que, ao se enlaçar matrimonialmente, seus filhos deixariam de ganhar a parte que lhes é devida da renda gerada por essa frota da qual ela é dona.
A Família E O Inconsciente
Em O seminário, livro 5, As formações do inconsciente Lacan escreve a estrutura familiar com a formula de Metáfora Paterna. Nela, o pai entra como um nome, o Nome-do–Pai, como lei de interdição do incesto, e a mãe com o desejo (D), como um significante que obedece à lei de estar lá ou não. Os restos produzidos por essa relação metafórica, que atestam que o sujeito é apenas efeito de linguagem, Lacan os promove como objeto a. Eles mostram que algo foge da compreensão e clama por sentido, é onde prolifera um emaranhado de interpretações sobre o desejo do Outro. As soluções desses enigmas se encontram nos laços familiares e nos segredos neles presentes.
Miller (1997)[7] em “Los padres dans la direction de la cure”, diz que a forma como o sujeito foi separado de seu objeto primordial, como foi afetado, o fantasma que surge e o gozo recuperado dessa catástrofe, é o que aparece nas histórias de família que o sujeito conta. A família, então, é tida como uma resposta simbólica ao efeito do real, que tem como princípio a impossibilidade de se escrever a relação sexual.
Lacan reduz a ordem familiar à disjunção pai/genitor, em que “o pai não é o genitor” (LACAN apud COTTET, 2007, p.14)[8]. “É, de fato, o recalque desta oposição significante que preside a criação da família conjugal.” (COTTET, 2007, p.15)[9]. Entretanto, nem todas as famílias são edipianas, visto que não são todas que se ordenam pela metáfora paterna e que colocam em jogo o desejo enigmático da mãe. É possível que se desenhem famílias que não respondem à metáfora paterna, que não coloquem em jogo o desejo enigmático da mãe nem a lei de interdição ao gozo. Na falta da metáfora paterna, o que prevalece é um desejo errante, um desejo anônimo. Carmem Galano, em “Família e Inconsciente” define o desejo anônimo como “um desejo indeterminado, errante na metonímia das derivas significantes, um desejo que não se sabe de quem, não encarnado em um vivente particular, um desejo pelo qual nada, nem ninguém, responde.” (GALANO, 2007, p.17)[10].
Se o que prevalece é um vazio enigmático e um desejo anônimo, o sujeito pode acabar à mercê de uma ditadura do mais-de-gozar e de uma cultura da permissividade. Essa última, “bem como a crise da autoridade que acompanha o declínio do pai, exige uma transparência que abole os segredos da família, denuncia as hipocrisias, subverte as barreiras das gerações.” (COTTET, 2007, p.2)[11]. No entanto, a inexistência do segredo no romance familiar não é sem consequências para o sujeito. “Compreendemos bem porque o cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o segredo.” (MILLER, 2007, p.82)[12].
E Quando O Recalque Não Opera?
Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan afirma que o Édipo, sendo ectópico, apresenta um problema: “abri-lo permitiria restaurar ou mesmo relativizar sua radicalidade na experiência” (LACAN, 1967/2003, p.261)[13]. Sendo a instância paterna, no primeiro ensino de Lacan, reduzida ao simbólico, o que ocorre quando esse significante é foracluído?
Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose”, Lacan trabalha a foraclusão do Nome-do-Pai, a qual, “pela carência do efeito metafórico, provoca um furo correspondente no lugar da significação fálica”. (LACAN, 1957-1958/1999, p.564)[14]. A carência dessa significação acarreta uma dificuldade para o sujeito em apreender o desejo do Outro e em circunscrever o gozo. Frente a isso, o que é foracluído no simbólico retorna no real, “retorna no real como gozo do Outro”. (MILLER, 1983/1996, p. 168)[15]. Na ausência do falo para significar o gozo, o que se observa é a invasão de um gozo outro, inédito e supremo.
Acrescido à falha no simbólico, a foraclusão do Nome-do-Pai “ressoa sobre a estrutura imaginária, ela a dissolve, a conduz à estrutura elementar chamada estádio do espelho”. (MILLER, 1983/1996, p.122)[16]. Essa regressão especular desnuda o objeto a, deixando o sujeito reduzido à sua miséria. Sobre essa dejeção e o valor extremo de gozo, que se condensa no mais-de-gozar, Miller aponta a exigência do mais-de-gozar como bússola para aqueles que carecem do significante mestre. Isso faz com que a liberdade do gozo prevaleça, embora, continua ele, a relação sexual se torne ainda mais impossível, uma vez que “para fazer existir a relação sexual, é preciso refrear, inibir, recalcar o gozo.” (MILLER, 2005, 13.)[17].
Como possibilidade de apaziguamento do gozo, no momento em que Um-pai é convocado, frente ao furo no simbólico surge a metáfora delirante. Passado o momento da perplexidade, no qual o sujeito se depara com fenômenos incompreensíveis para ele próprio, há a certeza que vem com o delírio.
Diante da falta do significante mestre, da transparência do gozo materno e da identificação ao objeto, prevalece um-dito que, aparentemente, não guarda qualquer segredo. Frente a ele, o sujeito não tem outra saída, senão utilizar suas próprias invenções. No caso clínico de C, acrescido à inoperância paterna, “um pai invisível”, encontra-se uma cultura da permissividade, avessa à privacidade. Ela começa pela mãe, mas não excetua os vizinhos que “fazem a maior putaria lá”.
A prevalência ditatorial do mais-de-gozar “devasta a natureza, faz romper os casamentos, dispersa a família, remaneja o corpo” (MILLER, 2005, p. 13)[18]. No caso de C, a transparência do gozo materno e a invasão desmedida que isso gera, a deixa privada de recursos simbólicos. Diante desse embaraço, restam suas invenções delirantes como tentativas de limitar o gozo.
Diferentemente da neurose, em que o não-dito cabe ao segredo, nesse caso, em que o recalque não opera e, com isso, o gozo da mãe não está ordenado pelo significante fálico, a dimensão de não-dito incide sobre a forma delirante com a qual C trata o real de gozo. Curiosamente, são as suas construções delirantes, tentativas de cifrar esse real de gozo, que ela, de algum modo, mantém em silêncio. Paradoxalmente, aí também um segredo organiza as relações familiares.