ALMANAQUE ENTREVISTA MARIE-HÉLÈNE BROUSSE
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Foto de Nelson de Almeida
ALMANAQUE: Temos hoje uma diminuição da crença e um aumento da fé. O que você poderia nos dizer sobre o crescimento das religiões, das seitas ultraconservadoras e do fundamentalismo?
MARIE-HÉLÈNE BROUSSE: O que a psicanálise pode dizer? Eu me lembrava de um pequeno texto de Lacan, o “Triunfo da religião” (LACAN, 2005).
Então, o que as religiões têm de novo? Elas são cada vez mais fundamentalistas. Não todas! Mas aquela que chama maior atenção sobre si neste momento, a religião muçulmana, é fundamentalista.
Quanto maior o saber científico — esse saber ligado à combinatória da escrita matemática, privada de sentido —, maior a aspiração a encontrar o sentido e, sobretudo, o sentido religioso. Há uma grande aspiração a encontrar o sentido e, mesmo que as religiões mudem, há sempre o sentido religioso. Agora, o que as religiões têm de novo?
Eu faço uma distinção nítida entre Deus, de um lado, e as religiões, de outro. As religiões são discursos de dominação: dos corpos, dos atos e do pensamento. A crença em Deus, a fé, é outra coisa. Deus é outra coisa, Deus é muito mais um enigma. Não há um crescimento de Deus, há um crescimento das religiões.
Vivemos em um período no qual isso que chamamos de modo de gozar, ou seja, todas as novas formas de satisfação, é aquele do Um sozinho. É como se fosse uma espécie de sede de marcas. As tatuagens, os piercings, as maneiras de customizar. Tudo isso são tentativas de fazer entrar os Uns sozinhos sobre a cena. Diante disso, as religiões tentam colocar uma ordem. As religiões vêm no lugar das adições. Aliás, há muitas assim! Os renascidos (born again), os arrependidos… Eles são todos ex-aditos do sexo, da droga, etc.
Então, a religião é uma solução que se propõe sob a mesma versão que as adições. É um vício legal.
A: Você disse isso em seu texto, “O temor a Deus libera de todos os outros” (2019, p. 135).
M-HB: Sim!
A: Como enfrentar o crescimento das políticas do medo, ou seja, o medo como instrumento para gerir os seres humanos, os estados religiosos?
M-HB: Como a psicanálise não é um discurso da dominação, não há nada a dizer sobre o fato de as pessoas serem religiosas ou não. É a escolha delas…
Eu vejo essa escolha como uma solução sintomática. A psicanálise não é antirreligião. Ela é fora da religião. Não é a mesma coisa, porque o sentido religioso é sempre o sentido sexual, e a psicanálise tem por objetivo fazer cair o sentido — o sentido sexual, evidentemente! E a metáfora e a metonímia e tudo isso…
Não há um cenário de combate ateísta na psicanálise. Trata-se de interpretar o grande A barrado como tentativa de vislumbrar um Outro, mais além do Outro da linguagem — o que as religiões fazem. Ou quer dizer o inverso, isto é, um tipo de vazio… nas nem todo mundo tem acesso a ele nem ao porquê. Há toda uma orientação na psicanálise antes de Lacan e depois de Lacan. Nós vimos isso no nosso país, a França, na ocasião do “Casamento para todos”, em que há toda uma orientação na psicanálise — que é uma orientação paternalista — que vai decididamente contra a modernidade e que combina perfeitamente com a ascensão das religiões. Acontece que a orientação lacaniana não vai nesse sentido. Se nós estamos mais-além do Pai, se vislumbramos ir mais-além do Pai em uma análise, forçosamente deixamos cair o Deus eterno. Mas não sob a versão do não ser tolo dele.
Enfim, é preciso suportar que as pessoas tenham necessidade disso para viver, por que não? Poder-se-ia transformar a religião em sinthoma. E a psicanálise é um outro sinthoma, diz Lacan.
A: A religião é o universal, quer dizer o “para todos”. É absolutamente uma criação da linguagem. Mas sob a versão do misticismo, do êxtase, é outra coisa! Temos, atualmente, além do crescimento de religiões, o interesse pelas filosofias orientalistas e espiritualistas… Como você percebe esse fenômeno?
M-HB: Como Freud de O futuro de uma ilusão: uma ilusão sempre do futuro! A religião é o futuro, mesmo que, como Freud o diz, ela seja uma ilusão. Mas é difícil fazer a diferenciação entre um semblante, de um lado, e uma ilusão, de outro. Enfim, a perspectiva freudiana é extremamente ateia. A posição de Lacan é mais complexa, puxa Deus mais em direção ao conceito de gozo do que em direção ao conceito de Lei.