Resumo
Nas religiões monoteístas, há diferença entre crença e fé. A crença é uma opinião considerada verdadeira e a fé o efeito de um encontro entre um sujeito ou um povo com um Outro que lhe fala. No entanto, na psicanálise Lacan opera um deslocamento em relação ao pivô que organiza a fé. Esse ponto será a palavra enquanto tal e a única relação em jogo será a do sujeito com a palavra.Palavras-chaves: crença, fé, palavra, psicanálise, religião
Abstract
In monotheistic religions, there is a difference between belief and faith. Belief is an opinion considered true and faith is the effect of an encounter between a subject or a people with an Other who speaks to them. However, in psychoanalysis Lacan operates a shift in relation to the pivot that organizes the faith. This point will be the word as such and the only relationship at stake will be that of the subject with the word.Keywords: Belief, faith, Psychoanalysis, religion
Foto de Nelson de Almeida
ANTONIO DI CIACCIA
Psicanalista, membro da ECF.
Entre todas as bússolas humanas (cf. MILLER, 2015), há uma que denota o homo religiosus: a fé. A palavra adquire uma conotação precisa no âmbito das três religiões monoteístas, a saber, de todos aqueles que seguem os passos de Abraão, que é “o pai de todos os que aderem” (Rm., 4,11).
As palavras para dizê-lo
No monoteísmo, se desdobram o sentido e a significação de uma verdadeira constelação que gira em torno do termo “fé”, e entram em jogo dois polos que nomearemos, para simplificar, o sujeito e o Outro.
Em geral, os termos “fé” e “crença” são usados como sinônimos, mas, enquanto a fé diz respeito a esses dois polos, a crença diz respeito a apenas um, o sujeito. De fato, a crença, encontrada em todo homem e em toda comunidade, implica uma opinião considerada verdadeira e segura. Ela diz respeito tanto ao indivíduo quanto à coletividade e se refere a noções ou conceitos cuja demonstração não pode ser produzida. Trata-se, em suma, de uma convicção de um sujeito ou de uma comunidade inteira em relação à existência de algo ou de alguém. Na maioria das vezes, no que diz respeito a assuntos religiosos, a crença está presente em toda teoria. A crença, definitivamente, está ligada ao pensamento.
A fé, ao contrário, é uma questão de palavra. É o efeito de um encontro de um sujeito ou de um povo com um Outro que lhe fala. Para permanecer na tradição judaico-cristã, é pela palavra que Yahvé se anuncia a Moisés (Ex., 3, 1-15), o qual irá lhe responder através de uma fé sólida (Hb., 11, 23-29), e, no Novo Testamento, em sua “Epístola aos Romanos”, São Paulo insiste na fé como efeito da palavra (Rm, 10, 17). Desde então, se toda fé comporta a crença, nem toda crença comporta a fé.
Partamos do texto bíblico. No Antigo Testamento há uma variedade de vocábulos que refletem a complexidade da atitude do crente e que, fundamentalmente, estão correlacionados a duas raízes: aman, que remete à firmeza e à certeza, e batah, que remete à confiança.
No século III antes de Cristo, os tradutores judeus da Bíblia para a versão grega, a Septante, tiveram que inventar os termos, pois os gregos acreditavam em deuses e não tinham palavras apropriadas para expressar a crença em um só Deus. Eles então traduziram a raiz –batah pelos termos elpis, elpizo, pèpoitha, que São Jerônimo fez, na versão latina, a Vulgate, por spes, sperare, confido, que foi traduzida em francês por “espoir”, “espérer”, “avoir confiance”, “se fier en”[1]. A raiz –aman, ainda presente em nosso amém, foi traduzida em grego pelos termos pistis, pisteuo, aletheia, em latim, na Vulgate, por fides, credere, veritas, e enfim, em francês, por “foi”, “croire”, “verité”[2].
O estudo dos termos bíblicos apresenta, portanto, a fé segundo estas duas vertentes: por um lado, a confiança, colocada pelo sujeito, dirigida a esse Outro que lhe fala e que é fiel à sua palavra, e, por outro lado, um certo passo do sujeito que lhe permite aceitar essa palavra vinda do Outro, uma palavra que lhe dá acesso ao que São Paulo chama de “a prova das realidades que não se vê” (Hb., 11:1). Nas línguas romanas, o termo em latim fides está na origem do termo “fiel”, empregado em geral como sinônimo de crente. No texto bíblico, entretanto, esse termo é inicialmente uma prerrogativa de Yahvé, definido quando de sua revelação a Moisés como “rico em graça e em fidelidade” (Ex., 34, 6). A fidelidade (emet) quer dizer que a palavra de Yahvé não mente e não se retrata (Nm., 23, 19), embora não houvesse meios de discutir com ele, como o diz Jó em sua aflição (Jó, 9,32). De fato, entre a palavra de Yahvé e a do homem, existe uma profunda imparidade, se quisermos utilizar um termo caro a Lacan. Se Yahvé é fiel, seu povo, ao contrário, oscila entre uma irredutível infidelidade, que o deixa surdo e cego (Is., 42, 18ss). Essa é a origem da cólera divina, pois a fidelidade que Yahvé exige de seu povo é que tenham um pacto de aliança (Jó, 24, 14). Finalmente, é pela contiguidade com a fidelidade divina que o homem pode se dizer fiel. No cristianismo, essa fidelidade é encarnada, por antonomásia, por Cristo.
No entanto, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o crente não pode ser fiel sem receber essa fides, essa fé, como um dom que lhe chega por parte de Deus, dom gratuito que provém de Yahvé, o Fiel, mas também aquele que é rico em graça (ben), uma outra das prerrogativas divinas. Esse termo, que se diz em árabe, no islã, pela palavra “misericordioso”, se tornou, em grego, Karis e foi traduzido em latim por gratia. É pela graça de Deus que o fiel recebe o dom da fé em Deus.
Vamos compartilhar esses termos de acordo com os dois polos da experiência religiosa. A graça é uma prerrogativa de Deus. A fé é um dom que a graça de Deus faz ao homem, que lhe permite aceitar a palavra de Deus, a saber, a revelação. De sua parte, o homem pode ser um homem de fé, ou seja, capaz de confiar na palavra de Deus, de ter confiança nele, como o profeta sugere (Jr., 17, 5-7), mas também de ser fiel a sua própria palavra: “Que vossa linguagem seja: Sim? Sim. Não? Não.” (Mt., 5, 37). Ora, essa confiança na palavra do Outro, a própria possibilidade de receber essa palavra, não deixa de ter uma prerrogativa, dessa vez, tipicamente humana, a humildade, cujo paradigma é dado por Moisés, “o homem mais humilde que a terra tenha criado” (Nm., 12, 3). Somente a humildade permite ao homem ouvir a palavra de Yahvé, “devorá-la em êxtase e alegria”, usando as palavras de Jeremias (Jr., 15, 16). “Confiança e humildade são de fato inseparáveis”[3], lembra o monge Marc-François Lacan.
E a psicanálise? Não há conexão…entre o sujeito e o Outro
Lacan, Jacques, desta vez, não sem conhecer essas indicações, vai operar um deslocamento essencial em relação ao ponto pivô que organiza a fé. Esse ponto deixa de ser a relação entre o sujeito e o Outro. Será a palavra enquanto tal, e a única relação em jogo consistirá, de agora em diante, essa do sujeito à palavra, “que se revela na questão do que falar quer dizer” (LACAN, 1998, p. 332–333). Todavia, é por uma “verdadeira” humildade (Ibid.) que cada um poderá acolher um discurso. No entanto, acolher o que o sujeito “quer dizer” já deixa claro que ele não o diz. Mas o que quer dizer esse “quer dizer” é uma dupla escuta que compete ao ouvinte: escutar o que o falante quer lhe dizer pelo discurso que lhe dirige ou o que esse discurso lhe ensina sobre a condição do falante.
Assim, não somente o sentido desse discurso reside naquele que o escuta, como é também de sua acolhida que depende quem o diz, ou seja, ou é o sujeito a quem ele dá sua confiança e autorização, ou é esse outro que lhe é dado por seu discurso como constituído. […] Ora, o analista apodera-se desse poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência (Ibid. p. 331).
É, pois, a palavra que tem o poder de distribuir as cartas, embora os atores em jogo permaneçam os mesmos: o locutor e o ouvinte. Não é mais o poder de Deus, mas o poder da palavra enquanto tal que exige a humildade da acolhida, a confiança e a fé nela. E é em nome da palavra que o analista toma esse poder até o ponto que “ele impõe ao sujeito, no dito de seu discurso, a abertura própria da regra que lhe atribui como fundamental” (Ibid. p. 333).
O céu esvaziou-se do poder da palavra. Ela está esvaída e seu poder se reduz à relação que o homem mantém com ela. Da mesma maneira, Lacan desloca a constelação em torno da fé tal como declina a tradição religiosa no que chamamos virtudes teológicas: a fé, a esperança e a caridade. Da esperança, Lacan fala, em “Televisão”, respondendo pessoalmente a seu interlocutor, Jacques- Alain Miller, que lhe havia proposto as três questões retomadas por Kant do dominicano Agostinho de Dácia para a formação dos irmãos pregadores. Uma das quais foi formulada nestes termos: “O que me é lícito esperar?”. Sua resposta é: “Espere o que lhe aprouver” (LACAN, 2003, p. 540).
Ainda em “Televisão”, Lacan trata também da caridade. Falando do psicanalista e nomeando-o segundo o termo de “santo”, emprestado da tradição religiosa, ele diz que, como este último, o psicanalista “não faz caridade. Antes, presta-se a bancar o dejeto: faz descaridade” (Ibid, p. 518). Lacan joga com o equívoco e com os deslizamentos entre as línguas. Se a palavra “caridade” provém do latim, significa amor ao próximo que nos é carus e pode se abrir para uma reciprocidade que São Tomás de Aquino chama de amizade, retomando a philia aristotélica. O termo charitas também ressoa do termo grego Karis, que significa graça. O analista não se situa em relação a seu analisante do lado de quem faz caridade, que esbanja ao próximo um amor que seria um efeito do dom da graça. Tampouco precisa se situar como alguém que expande a graça feita ou não ao sujeito, salvo se for louco. Mas ele deve se ater ao que a estrutura da linguagem impõe, ou seja, “permitir ao sujeito, ao sujeito do inconsciente, tomá-lo como causa de seu desejo” (Ibid, p. 518).
Enfim, a fé. Lacan dirá que o analista não tem que tomar posição sobre a conveniência ou não de uma crença. Neste breve artigo, eu me referirei a uma passagem de Lacan na qual é esclarecida a utilização do verbo crer, limitando-me às significações de “croire à” e “croire en”[4]. Esse verbo, assim utilizado, se situa, de fato, no cruzamento dos dois termos de fé e de crença, e pode se aplicar tanto a um quanto a outro. Essa possibilidade de mal-entendido inclusa na língua resultou em grandes disputas entre Roma, Lutero e Calvino no que concerne notadamente à exegese dos textos de São Paulo. Não é o mesmo dizer, por exemplo, que acreditamos “nos deuses” e de dizer que acreditamos “em Deus”. A expressão “croire à” quer dizer que o sujeito está convencido da conveniência de uma proposição, de uma descoberta ou de uma hipótese, enquanto que a expressão “croire en” quer dizer “ter confiança em”, “se fiar a”, portanto, ter a fé, entendida aqui como uma virtude teológica.
No seminário Mais ainda, Lacan, após ter falado da existência de Deus e de ter sido zombado pelos teólogos, pouco inclinados a crer nisso, exclama: “vocês vão ficar todos convencidos de que eu creio em Deus. Eu creio no gozo da mulher no que ele é a mais, com a condição de que esse a mais, vocês coloquem um anteparo antes que eu o tenha explicado bem” (LACAN, 1985, p. 103).
O céu esvaziou-se. Para o falasser, resta a função e o poder da palavra, sem outra garantia senão sua ocorrência, seja sua imanência.
Tradução: Maria de Fátima Ferreira
Revisão: Luciana Silviano Brandão
Referências