CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA NUNES
Psicanalista, graduado em Psicologia.
Analista de Políticas Públicas da Secretaria de Assistência Social de Belo Horizonte e
mestrando pelo programa de pós-graduação em Psicologia da FAFICH/UFMG.
h.oliveira@live.com
Resumo: O artigo trata da medida protetiva de acolhimento, utilizada como instrumento de proteção a crianças e adolescentes pelo Judiciário e pelas políticas públicas de assistência social. Nesse âmbito, o texto explora pontos de tensão entre esses campos no esforço de argumentar que questões em torno da temporalidade, bem como a penetração do discurso jurídico no espaço reservado à escuta dos sujeitos, ocupam posições centrais nesse debate. O desafio está em criar um intervalo para a escuta que propicie a dialetização entre a temporalidade cronológica, na qual opera o discurso jurídico, e a temporalidade lógica, mais própria ao sujeito.
Palavras chaves: medida protetiva de acolhimento; judicialização; políticas públicas de assistência social; temporalidade lógica.
The Temporalities of Foster Care
Abstract: This text discusses the foster care, used by the Judiciary and by public social assistance policies as an instrument to protect children and adolescents. In this context, the article explores points of tension between these two fields, considering that the various temporalities and the penetration of legal discourse in the space reserved for listening to subjects occupy central positions in this debate. The challenge is to create an interval for listening that provides a dialectization between the chronological temporality, in which the legal discourse operates, and logical temporality, more appropriate to the subject.
Keywords: foster care; judicialization; public social assistance policies; logical temporality
Durante a reabertura democrática, ao fim da ditadura empresarial-militar, afinado com as discussões mundiais sobre infância, o Brasil levou o tema da garantia de direitos de crianças e adolescentes como responsabilidade da família, da sociedade e do Estado para o texto da Constituição Federal de 88 (CF88) e, dois anos depois, para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA90). O Estatuto inaugura a chamada Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente. Estes passam a figurar como sujeitos de direitos, cuja proteção passa a ser dever de todos. As políticas públicas organizam-se, assim, numa lógica de proteção e promoção de direitos.
Para tanto, o Estatuto estabelece um rol de medidas de proteção para garantir direitos a crianças e adolescentes que se encontrem em situação de risco ou de vulnerabilidade. Há uma gradação entre essas medidas — algumas bastante simples, como “matrícula escolar” (crianças cujo direito à educação tem sido negligenciado) e “acompanhamento temporário por serviços públicos de saúde e assistência social”; e outras mais complexas e incisivas, por exemplo, em casos extremos de violência contra a criança ou violação de direitos pela família, temos, justamente, a medida protetiva de acolhimento, que é a retirada da criança do seio familiar para ser enviada a serviços de acolhimento institucional, popularmente conhecidos como abrigos, ou serviços de acolhimento familiar de famílias acolhedoras, nas residências de famílias voluntárias.
A medida protetiva de acolhimento possui duas características fundamentais: é excepcional, ou seja, deve ser utilizada apenas quando todas as outras tiverem se mostrado ineficazes e incapazes de garantir proteção; e provisória. Temos aí dimensões temporais: deve ser a última de uma série e deve ser breve.
O Estatuto estabelece que, uma vez que uma criança tenha sido encaminhada a um serviço de acolhimento, todos os esforços devem ser realizados no sentido do retorno da criança para casa. Assim, a família deve receber apoio para que possa reposicionar relações intersubjetivas familiares e sociais, assim como ter garantido seu acesso às políticas públicas, acompanhamento sociofamiliar e proteção do Estado para, finalmente, receber de volta a guarda da criança. Segundo o Estatuto, a separação é um meio para a reintegração da criança à sua família. Nota-se aí o caráter paradoxal.
Apenas nos casos em que, mesmo depois desse trabalho com os pais, tios, avós e outros parentes, nenhum adulto desse núcleo familiar mostrar condições de haver a guarda da criança, é que esta fica, então, disponível para a adoção por uma família que se interesse por ela. A adoção é a última medida.
Importante tal contextualização para que tenhamos em mente que uma adoção pressupõe um tempo anterior a ela. Um histórico que envolve sujeitos, instituições, dispositivos, laços rompidos, antigos afetos e projetos sem sucesso…
As medidas protetivas de acolhimento se dão em dois campos: no primeiro, temos a Vara Cível da Infância e Juventude, na qual todo o processo legal e decisório sobre a guarda das crianças se desdobra; no outro, paralelo, a assistência social com os serviços de acolhimento, que contam com psicólogas e assistentes sociais. O trabalho destas últimas pode ser resumido em dois pontos: humanização do acolhimento das crianças e acompanhamento e atendimento a essas crianças e suas famílias, tendo em foco a possibilidade de reintegração familiar.
A relação entre esses dois campos (judiciário e assistência social) é bastante complexa. Embora sejam independentes (um judiciário e, outro, serviço do executivo municipal), a própria Política de Assistência Social coloca-se como estando em “estreita interface com o Sistema de Justiça” (CNAS, 2009. p. 37). Mas a relação não parece ser simplesmente essa. O que se nota é que o trabalho de acompanhamento às crianças e às famílias, que poderia, como tal, se configurar como a oferta de um tempo e um espaço, ou seja, um intervalo, para uma escuta desses sujeitos, está constantemente sendo atravessado por demandas judiciais.
Teríamos aí o risco da judicialização dos serviços de acolhimento (a penetração de uma lógica jurídica em um campo, a princípio, exterior àquele propriamente jurídico). Mas tal judicialização ainda pode se estender a um segundo tempo, pois, caso a profissional/técnica desses Serviços de Acolhimento esteja desavisada dessas tensões, pode acabar por veicular para a família um discurso que reitera deveres, normas, protocolos padronizados e generalizações. A família (que no processo é chamada de ré) pode acabar sendo convocada a dar provas de ser uma boa família — noção que não passa de imaginarização de relações que são simbólicas e muito mais variadas e complexas. No fim das contas, isso seria veicular uma “medida” na qual nenhuma família cabe.
“Quem diz a verdade? O abuso sexual realmente aconteceu? Essa mulher, com 4 filhos de 4 pais distintos, tem mesmo condições de ser mãe? Esse homem é um bom pai? Favor inquerir esta mulher sobre quem seria o pai da criança, porque esta tem o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento! Tem afeto?” são algumas das questões direcionadas aos Serviços de Acolhimento. Vemos que são questões que os desviam de seu objetivo — a reintegração familiar — e parecem interessadas em reintegrar, na verdade, certo saber à justiça — fazê-lo íntegro, completo.
Espero deixar claro que não se trata de condenar o uso da medida de acolhimento, mas de estar esclarecido a respeito de sua complexidade e até mesmo suas contradições.
Arrisco alguns comentários sobre esse trabalho de reintegração familiar articulando-o a partir da questão do tempo. Destacam-se três temporalidades que se atritam e tensionam: uma da lei ou do judiciário, outra da família e, por fim, uma da criança acolhida (NUNES; PENNA, 2021).
O processo de acolhimento no judiciário se pauta pela provisoriedade do acolhimento, que deve ser o mais breve possível. No sentido da celeridade processual, pautam-se prazos e demanda-se urgência dos serviços de acolhimento da assistência social. O tempo para esse processo na legislação diminuiu há alguns anos. Antes, o prazo máximo de permanência em acolhimento era de dois anos, agora, um ano e meio. Na lei, sempre esteve prevista a possibilidade de prorrogação desses prazos, mas a prática indica que essa possibilidade nem sempre é considerada ou não é considerada por todos. Os relatórios sobre a possibilidade de reintegração da criança à família eram semestrais, agora, trimestrais. Crianças que não são procuradas 30 dias após o acolhimento devem ser cadastradas para adoção. Assim, a pressa em responder[2] chega para os serviços de acolhimento (em especial, em casos de crianças acolhidas).
Claro, há uma exigência que o processo corra no menor tempo possível, pois, quanto menor o tempo em acolhimento, melhor para a criança, certo? Sim e não. O que fundamenta essa demanda de uma resposta rápida para concluir sobre o caso me parece uma problemática identificação operada nesse campo entre a velocidade da decisão judicial e o princípio do “melhor interesse da criança”. Algo aí fica fora do jogo, desconsiderado.
Outra temporalidade seria aquela experienciada pelas famílias. Elas vêm, invariavelmente, de um contexto de vulnerabilidades sociais extremas e historicamente cronificadas de situações violadoras. Não raro, é possível escutar desses sujeitos suas histórias que giram em torno de um mesmo núcleo e que se repetem uma e outra vez, mudando as gerações… Frente a essas questões, embora a demanda verbalizada pelas famílias seja também a de uma pressa na reintegração do filho, com sua escuta é possível cernir que é preciso um tempo estendido, para que se produza uma resposta, reorganização, implicação etc. O tempo da família (atravessada por suas questões singulares e também determinantes históricos, culturais, socioeconômicos) parece ser uma temporalidade não-apressada.
Uma terceira experiência de tempo seria a da criança ou do adolescente acolhido. O tempo aqui aparece nas chamadas fases do desenvolvimento, mas principalmente como demanda de retorno para a família no tempo mais breve possível, o sofrimento pelo tempo afastado do lar… Mas a própria criança não se beneficiaria se sua família tivesse um tempo não-apressado a seu dispor? Estamos de volta à questão do melhor interesse da criança. E aqui poderíamos perguntar: o melhor interesse da criança segundo quem?
Como representativo desses fenômenos, podemos lembrar alguns exemplos, como as Recomendações 04 e 05/2014 da 23ª Promotoria de Infância e Juventude de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Elas foram publicadas recomendando que os serviços de saúde, em especial as maternidades, comunicassem compulsoriamente à VIJ as situações de puérperas com histórico de uso de drogas, que não teriam realizado acompanhamento pré-natal adequado, que estariam em situação de rua e/ou que tivessem interesse em entregar seu bebê diretamente para a adoção.
Esses documentos motivaram muitos acolhimentos preventivos (desrespeitando o caráter excepcional já citado da medida de acolhimento). Vemos aí uma tentativa de antecipar-se às situações que supostamente seriam violadoras de direitos. Ou seja, não apenas saber sobre o melhor interesse da criança, mas saber a priori. É interessante notar que as Recomendações não foram recebidas como um recomenda-se, mas como cumpra-se — sinal da judicialização a que me referi anteriormente.
Não são raros os casos de decisões processuais jurídicas anteriores a uma conclusão sinalizada pelo trabalho com as famílias e crianças. Esses retornos para casa e até encaminhamentos para famílias adotivas fazem um corte abrupto antes que se esboce uma elaboração por parte da família.
As prescrições de prazos que instrumentalizam a urgência da temporalidade judicial está fundada sobre a linearidade suposta de um tempo cronológico. Nessa orientação, o processo judicial progride, protocolar, superando sucessivamente etapas anteriores, dirigindo-se sempre para seu desfecho. Mas diversa é a forma de tempo que se observa na experiência dos sujeitos (famílias e acolhidos).
No trabalho de escuta desses sujeitos, o tempo se inscreve por vezes como persistências, repetições, reincidências, pausas, movimentos que parecem cíclicos e prenhes de descontinuidades (esse é também o modelo do tempo histórico que, embora avance, faz reincidir e acirrar desigualdades sociais seculares). Um tempo lógico que irrompe onde se esperaria uma linearidade processual e cronológica.
Os casos nos quais os familiares fazem uso de drogas, lícitas ou ilícitas, são muito representativos disso. Iniciados os tratamentos, vemos sujeitos que se organizam e caminham em certa direção, mas acabam por vezes retomando o uso abusivo — reincidem, interrompendo o tempo linear de “avanço”. As recaídas, que são até esperadas nesse contexto, algumas vezes são lidas como atraso e como provas da incapacidade da família, que não conseguiria se reorganizar.
Não se trataria, portanto, apenas de fazer uma oferta de “mais” tempo, mas também de estar esclarecido que o tempo subjetivo acelera, regride, retorna, avança e desacelera. Essa temporalidade lógica do sujeito (diferente da cronológica prescrita na lei) não pode ser pré-estabelecida.
Fica o desafio de pensar como inserir um intervalo e tecer uma dialetização entre os tempos lineares e lógicos dessa cena para lidar com essas temporalidades, por vezes concorrentes. Uma temporalidade de urgência ameaça a possibilidade de um tempo para compreender, necessário para alguma elaboração.
Gostaria de finalizar com uma frase de Freud, no texto Sobre o início do tratamento (1913/2017), que demonstrava já estar avisado da impossibilidade de uma duração determinada a priori para uma análise. Segundo ele, ao ser interpelado com a questão de quanto tempo um tratamento durará, o analista deveria responder que “primeiro se precisa conhecer o passo do andarilho, para depois poder calcular a duração de sua caminhada (p. 129).