Mônica Campos Silva
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: monicamposilva@hotmail.com
“Um cristal significante é uma formação do inconsciente feita de um número limitado de significantes, do qual a criança explora todas as permutações possíveis.” (MILLER, 2012, p. 5)
A 30ª conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, ocorrida no 2º semestre de 2024, tratou das respostas das crianças frente aos discursos. Com a participação de Lúcia Melo, Margaret Couto, Frederico Feu e Márcia Rosa, abordou a articulação do saber, do gozo e da palavra da criança frente aos discursos que a constituem.
Segundo Miller (2012, p. 6), a criança é por excelência o sujeito entregue ao discurso do mestre pelo viés do saber. O mestre trata “sempre de reduzir, de comprimir, de dominar, de manipular o gozo daquele que chamamos uma criança, para dela extrair um sujeito digno desse nome, quer dizer um sujeito ‘assujeitado’”. Nesse sentido, é importante delinear a estrutura do discurso do mestre contemporâneo e, a partir desse ponto, investigar de que modo os corpos são aprisionados, ou seja, como são constituídos e responsivos aos significantes mestres da época.
A criança tem o seu saber sobre os segredos de família, sobre o desejo dos pais – sendo deste o sintoma –, e “não se enganam sobre o caráter de semblante dos saberes que se lhes impõe”, de tal modo que “O saber da criança é um saber autêntico, que ele seja sabido ou não sabido, e é como tal que ele se inscreve no discurso analítico” (MILLER, 2012, p. 8). Assim, a criança como objeto resulta em variações diversas do abandono simbólico, associadas ao lugar estranho, à dimensão real da família, trabalho clínico paradoxal que se serve do recurso ao apaziguamento promovido pelas ficções (MELLO, 2024).
Observamos como os diagnósticos, realizados por vários profissionais e instituições, se tornaram o modo de apresentar as crianças que chegam nos consultórios. Situações em que a singularidade, as diferenças, são nomeadas, categorizando a criança. É preciso considerar também nesse contexto a aceitação e o interesse familiar por diagnósticos de transtornos, pelo fato de a criança poder ser “favorecida” com benefícios governamentais.
No que se refere à psicanálise, a verdade que a criança traz não é um mal, mas um sintoma, sua subjetividade, sua posição objetalizada, podendo inventar diante das vicissitudes de sua existência, sendo que, muitas vezes, um pouco de simbólico pode auxiliar a deslocar o sujeito do real que o aprisiona, salvando um certo lugar, experimentando, entretanto, sem ser engolido.
Nos dois casos apresentados na referida conversação da Seção Clínica, vemos os efeitos para a criança do encontro com um psicanalista. Seguindo Miller (2012, p. 9),
no discurso analítico, o saber da criança é respeitado. A criança entra no discurso analítico como um ser de saber e não somente como um ser de gozo. […] Primeiro porque acolhemos na psicanálise sujeitos traumatizados pelo saber do Outro, por seu desejo e por seu gozo os quais, saber, desejo e gozo do Outro tomaram, para certas crianças, valor de real.
Então, trata-se de levar as crianças “ao Outro que não existe” (MILLER, 2012, p. 9), considerando, com Lacan, que o sujeito está sempre não entre, mas hiante (LACAN, 1971-72/2012, p. 222). Essa é a porta aberta, a brecha que a psicanálise pode introduzir na clínica. A criança será escutada, sua palavra tem valor, mas não pesará sobre ela o gozo, a transgressão do Outro.
Por essa via, em uma análise, a criança poderá apresentar o drama familiar em sua dimensão real por convocar o sujeito na construção de soluções diante dos discursos que a constituem. O sintoma e as histórias que ela traz comportam invenções para tratar o mal-entendido que precedeu sua vinda ao mundo, o desamparo, o traumatismo da linguagem, a construção de uma fantasia, os objetos fragmentados do seu gozo, podendo dizer respeito ao pai ou à própria sexualidade.
De toda forma, o analista está do lado do sujeito e buscará levar a criança “a jogar a sua partida com as cartas que lhe foram distribuídas” (MILLER, 2012, p. 9), evitando o tamponamento do intervalo, da hiância, e, consequentemente, permitindo a interpretação do próprio sujeito e as articulações daquilo que é dito, não do dizer (LACAN, 1971-72/2012, p. 224), da enunciação, não do enunciado. Por tal ação, podemos dizer que “a sessão analítica é um lapso de tempo absolutamente especial, em que o sujeito é levado a fazer a experiência pura da reversão temporal […] que determina a significação do inconsciente” (MILLER, 2000, p. 49).
Através dos casos discutidos, percebemos que a análise de uma criança permite a experiência de um trabalho com o trauma da linguagem em seu avesso, sobre como se conectar e separar, talvez vislumbrando o que não tem relação. Ou seja, no tratamento de uma criança, é preciso dar a ela a chance de uma possível construção de seu próprio fantasma.
No caso clínico apresentado por Margaret Couto, podemos extrair a pergunta sobre as soluções de cada sujeito ao se deparar com o impossível de simbolizar. Aqui o recurso ao duplo é oferecido como manifestação sintomática, sendo necessário diferenciar seu uso na psicose e no autismo:
diferentemente do que ocorre na psicose, o duplo autístico não é fundamentalmente persecutório. Ao contrário, em sua função de borda, o sujeito encontra nele um elemento próprio para apaziguar os seus transtornos. No autismo esse duplo está no real e não se constitui como um objeto estranho e maléfico. É um objeto familiar, que pode ser controlado ou considerado como um amigo do qual o sujeito pode se utilizar para tratar o gozo pulsional, assegurar algum controle ao seu mundo e permitir uma enunciação. Por outro lado, os esquizofrênicos nem sempre conservam a capacidade de se distanciar de seus duplos. Eles acabam por se tornarem persecutórios e perdem sua função pacificadora. (COUTO, 2024)
Margaret indaga, ainda, como diferenciar o que seria da ordem de uma fantasia infantil e de um delírio? Segundo ela, no último ensino de Lacan, com suas formulações sobre a inexistência do Outro e sobre a foraclusão generalizada é possível reler os fenômenos alucinatórios e do delírio, indicando que todos deliram. Contudo, é necessário distinguir, na condução de um caso, o que seria da ordem de uma foraclusão generalizada, posta para todo ser falante, e de uma foraclusão específica, restrita aos sujeitos psicóticos. Isso permite ao analista operar de boa maneira com uma construção delirante.
O psicanalista segue o sujeito delirante e faz vacilar suas convicções sem retirar-lhe o delírio por completo, porém retirando a consistência do Outro. Não se trata, portanto, de um analista guardião da realidade, mas sim um analista que possa seguir o paciente na construção de sua defesa diante do Real. (MILLER, 2015)
Em seu comentário, Frederico Feu nos lembra, com Freud, que “o inconsciente é o infantil”, lugar em que se sedimentam e se cristalizam as vivências, percepções, enigmas e traumas da criança. São esses restos e fragmentos solidificados, conforme a metáfora freudiana de uma arqueologia do inconsciente, que a fala analisante depositará em filigranas a cada sessão analítica e que alimentam a construção dessa infância perdida.
Em seu comentário, Márcia Rosa indica que os corpos são subordinados ao discurso, porque os corpos também têm discurso. O significante entra no corpo, mesmo sendo incorporal, ou seja, temos o efeito corporal do significante, seus efeitos de gozo.
Para Frederico Feu, os casos apresentados nessa Seção Clínica do IPSM-MG são como massa de argila sendo moldada. Como ocorre com o pequeno Hans, ou com o neto de Freud e o seu jogo de fort-da, a cerâmica se quebrará e dela não restará memória que não sejam vestígios da infância, como peças avulsas e peças que faltam no mosaico da construção analítica.
Se, para a criança, há um inconsciente a trabalho, é aí que o desafio de construir um apoio para o corpo e para o Eu que seja menos atrelado ao objeto do fantasma materno e ao duplo caracteriza o trabalho analítico.
Para concluir, observamos, contemporaneamente, de um lado, o mestre em sua tentativa de fazer valer o universal, com tudo que este é capaz, valendo-se do DSM – que tenta salvar o universal da saúde mental e dos comportamentos –, e, de outro lado, temos a criança, que com seu sintoma faz vacilar cada passo do diagnóstico.
A criança, no discurso analítico, é o grande interpretador. Ela é o sujeito analisando que pergunta “onde estou no dizer?” (LACAN, 1971-72/2012, p. 225), construindo, para essa questão, várias possibilidades, sem deixar que as conclusões se solidifiquem. A criança em análise coloca o real em jogo, não deixando que o discurso do mestre o tampone, sustentando o lugar para a presença do sujeito na criança, suas ficções, seus impasses e suas invenções. É nessa vertente que podemos dizer: quando a criança pode fracassar em sua certeza, o sujeito advirá.
Se, para Lacan, o sintoma da criança se encontra na situação de responder por aquilo que há de sintomas na estrutura familiar, definindo-se como representante da verdade do casal parental, o que constatamos é que a criança revela o gozo. Então, qual o lugar para a palavra da criança?
Constatamos que o mestre contemporâneo tende a dispensar a interpretação. E, nos casos que se apresentam, faz-se necessário dar lugar ao que fala além do que se diz. Um espaço que permita à criança uma saída do lugar de objeto que ocupa. A psicanálise nos salva de acreditar que aquilo que digo é uma verdade, havendo em cada sujeito uma diferença entre aquilo que se diz e aquilo que se é.