Musso Greco
Psiquiatra e psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: mussogreco@gmail.com
“A psicanálise muda, isso não é um desejo, mas um fato”. A frase de Miller, em “O inconsciente e o corpo falante”, no X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, no Rio, em 2016, situa a perspectiva do Inconsciente para o século XXI.
Lacan designou esse novo Inconsciente por meio de um neologismo, parlêtre, criado a partir da junção de parler (falar) e l’être (ser), que evoca par lettre, “pela letra”, aludindo ao elemento real transportado no significante pelo ser falante. Distinto do Inconsciente freudiano, essa entidade tem necessariamente um corpo, uma vez que não há gozo sem corpo, e equivale à pulsão: o corpo falante fala em termos de pulsões. Nesse sentido, o Inconsciente e o corpo falante são um único e mesmo real. Como fica o manejo do corpo falante nos registros Imaginário, Simbólico e Real?
No ensino dos nós, a afinidade entre o corpo e o Imaginário é reafirmada, uma vez que é pela via de sua imagem que o corpo participa da economia do gozo. O Imaginário é o corpo. Lacan, no Seminário 16, fala da imagem especular do corpo como uma imagem equivocada e refratária à apreensão do gozo do corpo, referindo-se à sua insuficiência clínica para se compatibilizar com os orifícios do corpo. O Imaginário pode ser definido, assim, pela crença de que o ser falante possui um corpo – ou seja, o Imaginário é o corpo que se acredita existir −, mas o corpo vivo do ser falante é evanescente e inconsistente, escapa-lhe a todo o tempo. É um corpo que se goza, goza sozinho, sem fazer laço.
E como se engancham Simbólico e corpo para Lacan? Sobre esse lugar de inscrição, é preciso distinguir o Um do corpo que se apresenta sob a forma de um indivíduo, e o Um do significante que se repete. Ao dizer, com Lacan, no Seminário 19, “il y a de l’Un!”, se introduz na experiência analítica o Um, indicando que todo significante traz consigo as marcas do gozo Um, e criando uma nova presença do significante e do corpo. Lalangue − um dos conceitos fundamentais do último ensino de Lacan, que advém do domínio onomatopaico e materno, constituindo uma forma de satisfação que não depende da significação, sustentada pelo mal-entendido e pela homofonia – é o nó necessário entre os três registros responsáveis pela ordenação do espaço habitado pelo sujeito. A linguagem, tida como elemento estruturante do Inconsciente, não se resume à articulação significante, S1-S2, sendo sustentada por lalangue, que dá ao Inconsciente outro estatuto, de Inconsciente real. O ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller, em “Os trumains”, luta contra a inadequação do Simbólico, que é visto por ele como “um fator de confusão”: “é o significante que faz com que não nos achemos nele”.
Hoje, diante da evidência da não existência da proporção sexual para o ser falante, percebemos nos discursos uma fala que é simples conjunção do Um e do corpo, sem Outro, uma fala que não está ligada a um saber, mas a uma satisfação, um enxame de S1 – sem S2 −, sem o que venha significar o Um que comanda o gozo. Assim, somos colocados diante do paradoxo do Um que dialoga sozinho – por “dialogar” com o Outro que não existe, ou seja, romper com o Outro −, o Um-sozinho, que, para além do fantasma, permanece com os restos sintomáticos de um gozo incurável, ininterpretável e sem sentido, sem se ligar a nada. Que restos são esses? Restos de um discurso, letras, traços que desenham o corpo falante, bordas de gozo, sobras das identificações, decantações… Dessas peças soltas que tocam o ser de gozo do ser falante, trata-se de buscar o novo, um saber ler de outro modo o que é feito de linguagem e furo, o que volta sempre ao mesmo lugar, o Real.
Se a Psicanálise muda, diante do Inconsciente real e do Um que dialoga sozinho, muda também o psicanalista. Este, diferentemente de uma suposição de saber, pode ser, hoje, uma manifestação do Inconsciente, um lugar que faz laço, uma presença que faz aparecer o que está fora, o que é obstáculo, o que se equivoca. Como indica Lacan, no Seminário 11, o psicanalista é uma presença “passível de dar corpo ao Inconsciente real”.