Márcia Mezêncio
A.P. da Escola Brasileira de Psicanáise/AMP
Mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG)
marciasouzamezencio@gmail.com
Resumo: Este artigo traz a leitura, a contextualização e o comentário acerca do artigo de Freud intitulado “Sobre o início do tratamento”, publicado em 1913 na série que ficou conhecida como Escritos técnicos, e desdobra algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise, remetidas ao momento atual.
Palavras-chave: início do tratamento; técnica da psicanálise; leitura do inconsciente; desejo de saber.
INVENTING YOUR OWN WAY OF READING
Abstract: This article presents a reading, contextualization and commentary on Freud’s article entitled “On the beginning of treatment”, published in 1913 in the series that became known as Technical Writings, and unfolds some reflections on the transmission of knowledge in psychoanalysis, referring to the current moment.
Keywords: beginning of treatment; psychoanalysis tecnique; reading of the unconscious; desire to know.
Agradeço a oportunidade e o convite para estar aqui e para trabalhar com vocês um texto apaixonante, como são para mim os escritos de Freud. Sou de uma geração que se iniciou na psicanálise pela obra de Freud e se fascinou com as aberturas que a leitura feita por Lacan tornou possíveis. O modo de ler de Lacan tornou-a um texto vivo que, como tal, permite que inventemos nossa própria maneira de ler (MILLER, 1997, p. 249). Se digo paixão e fascínio, refiro-me à paixão da ignorância, a paixão colocada em jogo na experiência analítica, implicada na transferência. É pela via do amor e da suposição de saber que tudo começa, e aqui já me insiro no próprio tema desta lição.
As Lições Introdutórias são, para mim, um espaço privilegiado, eu já disse isso em outras ocasiões, por proporcionar retornos sobre textos fundamentais, bem como sobre a nossa própria trajetória, não sem lançar luz sobre o atual e o contemporâneo, abrindo portas a uma nova leitura. Retomamos hoje esses escritos de Freud na perspectiva não mais de um retorno a Freud, já empreendido por Lacan – e quanto a isso é importante assinalar ainda uma vez que a série dos seminários de Lacan, em seu retorno a Freud, se inicia justamente com os “escritos técnicos” –, mas do desafio contemporâneo de fazer valer a existência do inconsciente em nosso tempo e de que as análises comecem.
Para isso, é preciso que uma pergunta se coloque. Mais que uma questão de método, também é condição de existência do inconsciente e de sobrevivência da psicanálise. Nunca é demais reafirmar esse princípio, levando em consideração que é característica desse tempo em que praticamos a psicanálise que existam somente respostas.
Dominique Laurent, discutindo as implicações do ensino com o saber e a Escola, salienta a importância de ensinar os textos fundadores, para manter a transmissão do saber explícito da psicanálise – e aqui considero a função do Instituto em relação a esse ensino. Ela prossegue reafirmando a necessidade de “perseguir a transmissão do saber implícito, aquele saber sob transferência, assim como a dimensão política de sua ação” (LAURENT, 2018, p. 4) No entanto, ela conclui que “o ensino faz obstáculo ao saber, no sentido de Lacan” (LAURENT, 2018, p.5). E defende um saber que não se reduz a uma aprendizagem e que faça oposição à demanda daqueles que se endereçam à Escola, ou ao Instituto, para obter um saber-fazer no mau sentido, ocultando, assim, seu ponto de não saber. Cabe a nós operarmos com o furo no saber e acolher a transferência de trabalho que o desejo de saber coloca em funcionamento.
Com essa orientação, organizei minha apresentação em dois eixos: o comentário do artigo e algumas reflexões sobre a transmissão do saber em psicanálise.
Uma questão de preliminares: no início o mal-entendido
O texto de Freud que provoca nossa conversa – seja por seu título, “Sobre o início do tratamento”, seja por sua proposta (cito Freud (1913/2017, p. 121): “tentarei reunir algumas dessas regras para o início do tratamento, no intuito de serem utilizadas pelo analista praticante”), ou por seu contexto, a saber, a expansão do movimento psicanalítico e as primeiras dissidências – possibilita inúmeras entradas.
Uma entrada possível ocorreu-me ao considerar o nosso contexto, a série na qual essa nossa conversa acontece: Lições Introdutórias, que também reverbera com a ideia de um início, ou iniciação, introdução, e que haveria algo de mal-entendido contido na própria ideia de transmitir, através desses escritos ou dessas lições, a técnica da psicanálise. Uma primeira recomendação ou advertência se coloca. É mesmo com ela que Freud abre seu artigo: há limitações para transmitir as regras do jogo, seja o do xadrez, seja o da análise. É preciso a experiência, o jogo jogado pelos grandes mestres, no caso do xadrez, ou a de cada um que se coloque o desafio da prática da psicanálise, em nosso campo.
Por outro lado, estamos no nosso elemento, nada como o mal-entendido para começar. Veremos como Miller (1997, p. 246) ressalta a função primordial do mal-entendido e da paixão da ignorância como a paixão analítica: o princípio é não compreender. É por essa entrada, a do não-saber, que se abre a via das questões, das perguntas, princípio de método fundamental em psicanálise. É o que Lacan (1962-63/2004) aponta como necessário no plano da experiência: colocar todas as perguntas. Isso não quer dizer que tudo possa ser dito. É necessário considerar que a ética que orienta a análise, sendo a ética do bem-dizer, remete ao saber inconsciente, em sua radical singularidade a cada sujeito. Freud igualmente valoriza o princípio de começar cada caso como se fosse o primeiro, colocando em suspenso todo saber prévio adquirido através de outros casos.
Dito isso, começo pela nota de edição.
Vale lembrar que a palavra central do título (Einleitung) tem o sentido de início, mas que o verbo einleiten tem também o sentido de “colocar em movimento numa determinada direção”, o que é precisamente uma das principais questões de Freud no texto. (IANNINI; TAVARES, 2017, p. 148)
Ainda na nota de edição, lemos que esse texto funciona como báscula no conjunto dos chamados “escritos técnicos” de Freud, ao mesmo tempo fechando uma série e abrindo outra – o que se observa na Edição Standard, na qual ao título se segue um subtítulo, reproduzido da edição original: “Novas recomendações sobre técnica da Psicanálise I”, sendo o artigo que o antecede justamente chamado “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, lido aqui na lição anterior; na oportunidade, Cristiana Pittella abordou a nuance na diferença de tradução do título entre as edições, referente ao plural no destinatário, bem como a justificativa do endereçamento das recomendações ao “médico” e não, ainda, ao psicanalista, como se consolidará no prosseguimento da obra de Freud.
Seguindo na leitura da nota, somos informados também de que esse artigo permanece como a principal referência acerca do início do tratamento, encontrando enorme repercussão no movimento psicanalítico. Tal asserção parece confirmada no eixo dessas Lições Introdutórias – “Sobre o início da experiência analítica” – e no tema do ENAPOL que elas antecipam – “Começar a se analisar”. É destacado ainda o interesse de Lacan no que se refere às entrevistas preliminares, apresentadas longamente no texto em questão, do qual constituem, a meu ver, o tema central.
O contexto em que Freud escreveu esses artigos é o das primeiras dissidências e, então, ele via em risco os princípios sobre os quais havia criado sua técnica. Ao longo dessa série de artigos, bem como ao longo de toda a sua obra, ele deixa claro que não é a técnica que define a psicanálise, podendo esta ser variável segundo a “preferência pessoal” do analista, desde que os princípios analíticos — que ele chama as “pedras angulares” da psicanálise — sejam tomados em consideração. Esses fundamentos, ou princípios, dos quais Freud fará sempre uma defesa intransigente, são a teoria do inconsciente, do conflito psíquico e do recalque, o reconhecimento da importância etiológica da sexualidade e do complexo de Édipo. Ênfase particular será dada ao reconhecimento da causalidade psíquica e sobre o sentido dos sintomas e à sua característica de satisfação substitutiva. Especificamente no artigo em questão hoje, Freud (1913/2017) é assertivo: Se o tratamento opera pelo manejo da transferência, com o objetivo de vencimento das resistências, está em causa um tratamento analítico.
É o que está em jogo nesse esforço de detalhar a técnica: esclarecer seus fundamentos éticos e clínicos, sem os quais ela não existe ou se justifica. Foi nesse mesmo contexto da defesa da existência da psicanálise que se deu a criação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), em 1911. Outro marco no esforço de esclarecer esse ponto foi a publicação, em 1914, da “História do movimento psicanalítico”, texto que sucede os escritos técnicos, no qual Freud valoriza nas primeiras dissensões (Adler e Jung) o abandono dos pilares, dos conceitos necessários à fundamentação de qualquer técnica da psicanálise. Trabalhei essas questões detalhadamente em minha Dissertação de Mestrado, na qual insisto que Freud estava longe de ser ortodoxo e que desenvolveu uma investigação exaustiva no sentido de adequar a técnica analítica às mudanças da clínica que se apresentavam, já vislumbrando a singularidade, isto é, não somente a técnica se deveria à preferência pessoal do analista, como deveria responder às necessidades de cada paciente, estendendo-se a quadros clínicos diversos dos casos de neurose para os quais a técnica havia sido inicialmente construída.
Vocês puderam ler, ao longo deste artigo, a preocupação de Freud com a sobrevivência da psicanálise e um esforço de diálogo com os bem-intencionados (sempre é prudente desconfiar) inovadores: a existência e o modo de funcionar do inconsciente exigem que a psicanálise responda à altura. Em nosso tempo, a psicanálise também corre o risco de deixar de existir e esse é um motivo suficiente para nos debruçarmos sobre as questões fundamentais que esses textos nos apresentam e que continuam válidas, mesmo que devam ser atualizadas ao nosso contexto. De toda forma, não farei uma leitura linha a linha, vou partir da premissa de que vocês leram o texto e vou fazer alguns recortes pontuais para conversarmos e remetermos às questões de atualidade na clínica.
Retomo a nota de edição, que nos informa que o texto foi publicado originalmente em duas partes e que teria três seções: Sobre o início do tratamento (primeira parte), A questão das primeiras comunicações e A dinâmica da cura (segunda parte). A edição que conhecemos não está dividida em partes ou seções. Mas essa informação pode ser útil para nossa leitura.
A tentativa de considerar que a primeira seção parece abordar principalmente questões práticas, estabelecendo as condições para o início do tratamento, e que as duas seguintes tratariam de questões clínicas, privilegiando as intervenções do psicanalista na direção do tratamento, mostra que é impossível obter essa divisão, mesmo para fins “didáticos”. Pois o que vemos se desdobrarem em questões aparentemente objetivas é sua implicação ética no que delas se espera. Assim, as entrevistas preliminares, ou tratamento de ensaio, as determinações referentes a tempo e dinheiro, o uso do divã, referido como o “cerimonial da situação na qual é conduzido o tratamento”, se mostram condições decisivas para o engajamento do paciente em um trabalho com o inconsciente, que ultrapassam suas justificativas objetivas, que as colocariam no nível de condições de um contrato. Vejamos.
As entrevistas preliminares, cuja função é a seleção e o diagnóstico dos pacientes, são justificadas pelas razões objetivas de protegê-los de dispêndio inútil e proteger a psicanálise do risco de um fracasso se o caso não for indicado à intervenção analítica. No entanto, devem ser conduzidas nas mesmas premissas do tratamento propriamente dito, sendo decisivas para sua “direção”, lhe sendo prévias, mas fazendo parte dele, e sendo sua função a de cuidar da instalação e consolidação da transferência.
As questões de tempo e dinheiro não se reduzem à garantia da ocupação, remuneração e sobrevivência do profissional, mas estão implicadas na economia psíquica do paciente.
Relativa ao tempo, a questão da duração do tratamento envolve, segundo Freud, o desconhecimento da etiologia das neuroses e o esquecimento da proporcionalidade necessária entre tempo, trabalho e sucesso, o que gera expectativas exageradas em relação à análise. O que impediria o encurtamento do tempo de tratamento é “a atemporalidade dos processos inconscientes e o vagar com que as transformações psíquicas profundas ocorrem” (FREUD, 1913/2017, p. 130). Esse processo segue seu próprio caminho, e o analista não tem o poder de impor direção ou sequência.
Não irei abordar aqui, por razões de tempo e escolha, a discussão sobre a duração do tratamento nos dias atuais e outras variáveis no manejo do tempo, sejam aquelas introduzidas por Lacan em relação ao tempo lógico, sejam as incidências das mudanças tecnológicas sobre a vivência contemporânea do tempo, que se torna acelerado ou mesmo instantâneo, como a experiência dos atendimentos on-line têm demonstrado. No que se refere ao tempo de entrada em análise, indico a leitura do argumento de Jorge Assef, no site do ENAPOL.
Quanto ao dinheiro, Freud lembra de que há poderosos fatores sexuais envolvidos, sendo um assunto tratado na vida cotidiana com dubiedade, pudicidade e hipocrisia. O analista, segundo ele, deve exercer vigorosa oposição sobre tal modo de tratamento e enfrentar abertamente essa questão, levando em consideração a desvalorização do tratamento advinda de se cobrar pouco pela consulta, os inconvenientes do tratamento gratuito, o lucro secundário da doença, entre outros fatores que impactam o sucesso do tratamento. Sobre o aparente investimento excessivo no tratamento, ele é taxativo: “não há nada mais caro na vida do que a doença e – a estupidez” (FREUD, 1913/2017, p. 134). Considerações que seguem válidas e devem ser levadas em conta nos formatos e lugares onde se pratica e aplica a psicanálise atualmente, bem como nas novas formas de circulação do dinheiro, que também se tornam cada vez mais virtuais.
Sobre o uso do divã, apresentado como resquício do tratamento hipnótico, seria motivado por uma questão pessoal, a saber: o incômodo de ser observado por horas por outra pessoa revela-se, na verdade, muito mais uma justificativa de ordem clínica – evitar que, através de expressões faciais que a postura de entregar-se à atenção equiflutuante poderia produzir no analista, se forneça material ao paciente para que interprete e se influencie em suas comunicações, impondo-lhe, ainda, a privação do objeto olhar, o que remete à questão da opacidade do analista.
Em entrevista recentemente publicada em português, Miller (2022) reflete sobre as perspectivas atuais e futuras do divã. Em uma frase que ressoa a Freud, ele diz que não é o divã (onde Freud colocava a técnica) que define a psicanálise e aponta como, em seu manejo, é crucial levar em conta as singularidades de cada paciente, e que o divã pode ser um objeto importante e emblemático das relações que se estabelecem entre paciente e analista, incidindo sobre as fantasias do primeiro. Reflexões semelhantes estão presentes nesse artigo de Freud, que apresenta exemplos de situações e resistências dos pacientes à submissão ao divã.
A entrevista de Miller avança questões sobre o momento atual, atribuindo ao divã uma incidência sobre a banalização da presença virtual. A permanência do divã se justifica largamente por encarnar a impossibilidade da relação sexual e o paradoxo de efetivar a presença do corpo e ao mesmo tempo seu despojamento: “Deitar-se no divã é tornar-se puro falante, fazendo ao mesmo tempo a experiência de si como corpo parasitado pela fala, pobre corpo doente da doença dos falantes” (MILLER, 2022, p. 44). O real da presença dos corpos faz-se assim necessário para que o paradoxo permaneça e o objeto encarnado pelo psicanalista permita que a experiência como sujeito se dê: “como falante, sem saber o que quer, nem o que diz, nem mesmo a quem” (MILLER, 2022, p. 43).
No começo, a associação livre
Definidas essas questões práticas, mas nem tanto, por onde começar? Em que ponto e com que material? Verei-o amanhã’” (KARDINER, 1979, s/p).
Freud diz que é indiferente, o paciente escolhe o tema que gostaria de trabalhar. Mas, só que não, como se diz hoje em dia, pois aqui se impõe a regra fundamental: o paciente deve comunicar aquilo que lhe ocorrer, sem omitir, com o compromisso de sinceridade plena. Sem escolher, no fim das contas: eis aí o mal-entendido da regra da associação livre. Por isso, desencoraja-se a preparação prévia do material da sessão, que estaria a serviço da resistência e não facultaria o engajamento do sujeito na dinâmica do tratamento, impedindo o acesso ao inconsciente.
Exemplo disso encontramos em uma intervenção irônica de Freud, relatada por um de seus pacientes, candidato a analista, destacada no site do ENAPOL, na seção “Citações”, como um chamado aos praticantes: começar a se analisar e esclarecer a própria relação com o inconsciente: “Freud me parou aqui e disse: ‘Você preparou este relato?’. ‘Não’, respondi, ‘mas porque você me pergunta?’. ‘Porque foi uma apresentação perfeita. Quero dizer que foi, como dizemos em alemão, druckfertig (“pronto para imprimir”). Verei-o amanhã’”. (KARDINER, 1979, s/p)
Outro exemplo corriqueiro, com o qual nos deparamos frequentemente em nossa clínica. O paciente começa a sessão dizendo: “Tive vontade de não vir, pois não pensei em nada durante a semana para falar hoje”. Ao que respondo: “Que bom que veio, assim podemos conversar sem preparação prévia”. Ele começa a falar do dia no trabalho e várias questões surgem. Quando corto a sessão, ao sair ele diz: “Achei que não sairia nada, mas acabou que deu para ‘conversar’ muito hoje”.
Outra paciente começa a sessão dizendo que iria ler o que escreveu, para não se perder e não esquecer o que gostaria de trabalhar naquele dia. Inicia a leitura e, já nas primeiras linhas, o relato escrito é deixado de lado, provocado por uma pergunta da analista, que desvia o curso para a associação, livre, nesse caso, do roteiro preestabelecido.
Outras recomendações são detalhadas, como discrição sobre o tratamento (para evitar resistências externas e escoamento dos temas a serem trazidos para a sessão). Do lado do analista: encaminhamento das intercorrências a outro profissional, atenção aos sinais de resistência, como o silêncio (manifestação da transferência), aos primeiros sintomas ou atos casuais e à inclusão no tratamento do material dito nas franjas da sessão, fora do divã. E, principalmente, o tema da transferência deve ficar intocado até que ela tenha se transformado em resistência.
Essas recomendações enquadram o desenrolar das entrevistas preliminares, dirigindo-as ao ponto em que, instalada a transferência produtiva, sejam feitas as “primeiras comunicações” e se coloque em funcionamento a dinâmica da cura e se mobilize o jogo de forças capaz de levantar o recalque e vencer a resistência. Miller (1994) traduz essas recomendações: uma análise começa pela espera do analista, até ser investido pela transferência e situar-se em uma posição de domínio para interpretar. Lacan (1958/1998) aponta que Freud reconheceu que aí estava o princípio de seu poder, mas que se arranjava bem com isso, renunciando a fazer uso dele.
Para se começar, então, é preciso a transferência. Miller assevera que esse princípio é um consenso entre as várias escolas de psicanálise e de que “Até Lacan havia uma doutrina bastante precisa em relação a isto. Primeiro esperar a emergência da transferência para depois interpretar” (MILLER, 1994, p. 6).
Miller aponta também a demanda como uma forma de entrada em análise, considerando que se há demanda há transferência. Ele indica que Lacan faz uma torção ao dizer que a transferência é a interpretação, na medida em que dá uma significação de inconsciente a esse significante: “Sem dúvida, para ir até um analista, é preciso já ter interpretado seu próprio sintoma, atribuindo a ele uma significação inconsciente, ou seja: Não sei ler isto sozinho” (MILLER, 1994, p. 11).
Na prática das entrevistas preliminares está em jogo o ato analítico e a ética da psicanálise. Técnica em psicanálise é, lembremos, questão de ética, pois “não há clínica sem ética” e “há ética onde há escolha” (MILLER, 1996, p. 113). Nessas “entrevistas ditas preliminares, duas coisas são essenciais – assegurar-se que se está lidando com sintomas do tipo analítico e com um sujeito capaz de produzir leituras do inconsciente”. (MILLER, 1994, p. 5). É dessa forma que se selecionam, nas palavras de Miller (1996), casos éticos, analisáveis.
As entrevistas preliminares servem, então, para a avaliação clínica ou diagnóstico, essencial para a direção do tratamento. Isso também segue sendo válido, mas não sem mal-entendidos. Miller já relatava o desconforto dos contemporâneos, e mesmo de alguns alunos de Lacan, com sua prática do diagnóstico e da apresentação de pacientes, que consideravam segregativa. Atualmente, ainda que a prática do diagnóstico se ocupe mais de esclarecer a relação do sujeito com o Outro e o real, é igualmente acusada de segregativa pelos militantes da despatologização generalizada.
Miller (1994, p. 4) detalha que “Um critério de analisabilidade é a capacidade de associação livre. O sujeito é capaz de estabelecer uma nova relação com seu próprio dizer? Para ser analisável, é preciso poder dizer sem assumir por conta própria o que se diz”. Diz ainda que “É preciso assegurar-se de uma segunda coisa – que o candidato à psicanálise é capaz de fornecer o texto a ler, a interpretar, e mesmo de o ler de diversas maneiras. É isto que chamamos de ‘entregar-se à associação-livre’” (MILLER, 1994, p. 4).
A associação livre, nos termos de Freud, é uma expressão pela qual tentamos cernir o modo de dizer próprio ao sujeito em análise. É muito difícil cernir o que é este modo de dizer, o modo de dizer analisante. De certo modo, não tomo por minha conta o que digo como analisante – posso mencionar raivas, desejos, temores, pensamentos em que não me reconheço, os quais eu rejeito. Não tenho nada a ver com isto, sou inocente em relação a isto, não sou eu. (MILLER, 1994, p. 4)
Também servem à localização subjetiva, que equivale à subjetivação, responsabilidade pelo dizer, pelo gozo e pelo desejo. Onde está o sujeito? Quem fala? Para essa localização, “o essencial é o que o sujeito diz”. Ao valorizar a fala, um primeiro movimento é acionado, trata-se de separar-se da dimensão do fato, dos acontecimentos, para entrar na questão do dito; o que prepara um segundo passo: a partir dos ditos localizar o dizer do sujeito, a enunciação, quer dizer, questionar a posição de quem fala (modalização do dito). “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). O sujeito é a caixa vazia onde se inscrevem as modalizações do dito, lugar da sua ignorância.
Por isso, as entrevistas preliminares e a função essencial do mal-entendido que a regra da associação livre possibilita servem para que o sujeito minta e assim perceba alguma antinomia na lógica de seus ditos. Tal antinomia entre o dito e o dizer, se traduziria como: “Eu (o paciente) não sei o que digo” (MILLER, 1997, p. 247). O lugar da enunciação é então o próprio lugar do inconsciente.
O bem-dizer, para Lacan, é a chave da ética da psicanálise, a ética do dito e do dizer, antes de um acordo ideal entre o dito e o dizer, trata-se de encontrar uma maneira de dizer que leve em conta a diferença entre o dito e o dizer, e que também leve em conta a possibilidade de modificar a posição subjetiva a respeito do dito. (MILLER, 1997, p. 249)
Nos dias atuais, na fórmula “eu sou o que digo que sou”, há uma identidade entre o dito e o ser, ou não há um querer dizer por trás do dito. Não há lugar para o mal-entendido ou para um questionamento ou interpretação. Dessa forma, o discurso analítico não encontra seu lugar de incidência: introduzir o sujeito no inconsciente através da localização e retificação subjetiva. Já em 2002, nas “Intuições milanesas”, Miller (2011) alertava que o ato do psicanalista está sob ameaça. Por esse motivo, a pergunta sobre como começam as análises é decisiva para o futuro do ato analítico.
Silvia Salman (2022, p. 6), repercutindo essa reflexão de Miller, mais atual do que nunca, sobre a degradação da posição do analista, avalia que “o sentimento de desvalorização da psicanálise surge do fato de não ser captada a partir de um desejo de verdade, mas de uma demanda de atenção pessoal”. E se pergunta como fazer frente à degradação do discurso analítico e “fazer surgir o desejo de verdade ali onde só se espera atenção personalizada que faz prevalecer o narcisismo social e a primazia do eu, em detrimento do mistério do corpo que fala” (SALMAN, 2022, p. 6). Sugere o interesse de se examinar e formalizar os inícios de análise, pois “Fazer prevalecer o analítico a cada encontro é não cessar de fazer emergir um você disse algo ‘que é diferente do que queria dizer’” (SALMAN, 2022, p. 6).
E quanto ao ensino? O que afinal se transmite?
No curso da preparação do texto para minha apresentação hoje, encontrei ressonâncias com o que eu pretendia abordar aqui, para concluir, condensadas no comentário sobre a aula inaugural no ICP-RJ, feito pelos alunos Diogo Pereira de Sousa e Samantha de Moura Ribeiro, que vou ler para vocês:
A aula inaugural se propôs a introduzir o tema da entrada em análise, estabelecendo uma conversa com o XI ENAPOL que acontecerá em setembro/2023. Como circunscrever o momento em que uma análise se inicia, aquele que marcaria o início do trabalho pelo analisante? Seria esse um ato do analista? Seria ato do analisante? Talvez a resposta venha, como de praxe, a posteriori e in casu, quando olhando para trás é possível pinçar o momento em que um não-saber surgiu, através da manifestação do inconsciente. Como nos lembra Laurent, há algo da incidência de uma verdade que passa a implicar o analisante em sua mensagem e o situa de outra forma em relação à sua demanda. Com isso em mente, gostaríamos de lançar uma provocação: haveria um ponto de encontro (ou desencontro) entre a entrada em análise e a entrada numa escola de psicanálise? Em uma análise, cabe ao analista escutar e fazer ressoar, seguir o analisante “destacando os significantes que pesam”. Contudo, para que as pontuações tenham efeito, produzindo quedas e aberturas, é necessário um consentimento do analisante, um deixar-se ir, que também é dar de si. Seria esse consentimento a transferência, seria ele precedente a ela ou viria dela? E na entrada em uma escola do que se trata? (SOUSA; RIBEIRO, 2023, s/p)
E é por estar também em torno dessas questões da transmissão, da Escola e da transferência de trabalho, que me é impossível conversar sobre esse texto, sem me colocar essas e outras perguntas.
Como ensinar algo sobre a psicanálise e sua técnica?
Em suas observações sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud (1919[1918]/1976, p. 219) se refere à impossibilidade de sua transmissão integral em aulas teóricas, invocando a necessidade “para finalidades de pesquisa” de acesso ao material clínico, por meio de ambulatório ou hospital.
Mais que as recomendações, indicações, pretensamente pragmáticas, sabemos estar diante de um impossível. Se Freud assinalava o impossível de psicanalisar, incluindo a psicanálise entre as profissões impossíveis ao lado das de educar e governar, Lacan afirmava o impossível do ensino da psicanálise e apostava em sua transmissão.
Uma pergunta puxa outra, e outra… esse é mesmo o método da psicanálise, que coloca em jogo o que Miller indicava como paixão da ignorância, não há saber todo, não há transmissão toda. Talvez o que se transmita, afinal, seja mesmo uma questão, na melhor das hipóteses, um desejo de saber.
É pela transferência de trabalho que se entra na Escola e é ela que faculta a transmissão, a “inventar a própria maneira de ler”.
Em relação ao texto do inconsciente trata-se de “produzir uma certa distância de si para ler-se de outro modo” (SALMAN, 2022, p. 6).
Concluo, com Miller (1994, p. 3), que
Este enunciado indizível, causa do sintoma, é a partir de então assimilável a um enunciado escrito no sujeito e que ele não poderia lê-lo como se deve. Isto que Freud chamou de inconsciente, é estritamente equivalente a um texto escrito indecifrável, subsistindo como os hieróglifos antes que Champollion viesse a lê-los e – para usar os termos que Lacan tomou emprestados de Saussure, mas que não eram ignorados pelos estoicos – subsistindo como significantes sem significados. Nesse sentido, Lacan pôde dizer que o inconsciente é acima de tudo algo que se lê.