Paula Pimenta
Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
paularamos.pimenta@gmail.com
Resumo: Este artigo se propõe a apresentar em detalhes o texto de Miller (1997), intitulado “O método psicanalítico”, e o texto quase homônimo de Freud (1904[1905]/2017), intitulado “O método psicanalítico freudiano”. O percurso a ser feito partirá do texto de Freud, passando pelo de Miller e retornando ao de Freud com a intenção de promover uma interlocução entre eles.
Palavras-chave: método psicanalítico; Freud; Lacan; Miller.
THE PSYCHOANALYTIC METHOD: FROM FREUD TO LACAN AND BACK
Abstract: This article proposes to present in detail the text by Miller (1997), “The psychoanalytic method”, and the almost homonymous text by Freud (1904/2017), entitled “The freudian psychoanalytic method”. The route to be taken will start from Freud’s text, passing through Miller’s and returning to Freud’s with the intention of promoting an interlocution between them.
Keywords: psychoanalytic method; Freud; Lacan; Miller.
“O método psicanalítico”, por S. Freud
“O método psicanalítico freudiano”, texto de Freud de 1904, foi escrito em terceira pessoa para ser publicado no livro Os fenômenos compulsivos psíquicos, do médico neurologista alemão Leopold Loewenfeld, que se interessou pelas doenças nervosas. Em nota de rodapé de seu texto sobre o Homem dos Ratos, Freud confessou tomar o livro de Loewenfeld como seu manual padrão para a abordagem da neurose obsessiva.
De acordo com as notas de apresentação do referido texto de Freud constantes na coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud, ele seria “a primeira exposição abrangente acerca da técnica psicanalítica” feita por Freud, aproveitando-se da ocasião para a formalização da psicanálise como técnica terapêutica, uma vez que já ocorria sua expansão internacional por meio dos trabalhos do psiquiatra Eugen Bleuler, na Suíça.
O editor ressalta a curiosa opção nominativa de Freud, que designa como “arte da interpretação” a principal ferramenta técnica de sua jovem ciência, em um momento em que se dedicava a fazê-la ser reconhecida por sua cientificidade no meio médico. Com efeito, vemos que Freud introduz como “arte da interpretação” o que mais tarde passará a chamar de “associação livre”. Ele assim a descreve por meio de uma analogia mineralógica: a “arte da interpretação tem o mérito de, a partir dos minérios das ocorrências involuntárias, representar o teor de metal dos pensamentos recalcados” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55). Tal descrição, como o próprio Freud indica em um momento do texto, não deixa de nos remeter à técnica por ele exposta quatro anos antes em seu artigo sobre a “Interpretação dos Sonhos” e que ele retoma de maneira mais esquemática na última década de seu ensino, em 1932, na Conferência XXIX, “Revisão da teoria dos sonhos”.
Como “ocorrência” (Einfall) podemos entender uma ideia ou imagem que se impõe à pessoa – neste sentido, conferir a nota de rodapé n. 3 na página 60 da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada. As “ocorrências involuntárias” seriam, portanto, toda e qualquer manifestação psíquica espontânea, em resposta à orientação inicial do psicanalista de que
[os pacientes] lhe contem tudo que lhes vem à cabeça, mesmo se acharem não ser importante, ou se acharem que aquilo não vem ao caso, ou que não faz sentido”, enfatizando que “não excluam nenhum pensamento ou nenhuma ocorrência da comunicação pelo fato de lhes parecer vergonhoso ou embaraçoso. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 54)
Por sua experiência, Freud (1904[1905]/2017, p. 54) observa que as ocorrências involuntárias apontam para lacunas nas lembranças da narrativa do histórico da doença, o que o leva a afirmar que “sem amnésia de qualquer tipo não há histórico da doença neurótica”. E acrescenta que, se o psicanalista insiste para o paciente se esforçar em preencher essas lacunas da memória, o que ele recolhe é uma “resistência” em tentar reproduzir os eventos ou correlações esquecidas, denotada, sobretudo, por uma postura crítica do narrador.
Freud estabelece, assim, o momento da resistência na aplicação da “arte da interpretação” como um dos fundamentos de sua teoria da psicanálise, a serviço do recalque (Verdrängung), que busca evitar o surgimento de sensações de mal-estar naquele que narra. “Quanto maior a resistência, maior será a deformação [das formações psíquicas recalcadas (pensamentos ou moções)]” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 55).
Se Freud inicia seu artigo sobre o método psicanalítico trazendo seus antecedentes – ou seja, o “processo catártico”, proposto por Joseph Breuer, e a ampliação da consciência obtida através da hipnose, sem que haja uma postura de proibição sugestiva por parte do médico –, é para ressaltar a importância de sua própria invenção da “arte da interpretação”. Ele a apresenta como o único caminho – apesar de mais trabalhoso, em comparação com a hipnose – para alcançar o objetivo que o método psicanalítico pretende alcançar, o qual ele exprime por várias “fórmulas”, equivalentes em sua essência: suspensão das amnésias, reversão de todos os recalques ou “tornar o inconsciente acessível ao consciente, o que ocorre através da superação das resistências” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56).
Porém, engana-se quem acha que Freud é tolo do Real (nos termos lacanianos) e se ilude com uma fantasia de completude. Logo após a enunciação das tais fórmulas, ele acrescenta: “Mas não podemos esquecer aqui que um estado ideal como esse também não existe em uma pessoa normal, e que só raras vezes conseguimos nos aproximar minimamente desse ponto no tratamento” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 56). Estamos em 1904. Freud não precisou esperar 33 anos para concluir, como faz explicitamente em seus dois textos de 1937 – “A análise finita e a infinita” e “Construções na análise” – sobre a existência de fenômenos residuais em uma análise; em outras palavras, sobre o ponto opaco
que insiste ao longo de toda uma análise e ganha, com a análise, algum contorno, alguma localização, mas insiste sem qualquer possibilidade de desligamento ou apagamento: analisa-se, portanto, para se haver com uma satisfação que se reitera sem se deixar negativizar, porque ela é também, mesmo perturbando-os, o que confere vida aos corpos e implica uma parceria da qual não há propriamente como se livrar ou afastar. (LAIA, 2017, p.400)
Como solução à aporia instituída, Freud enuncia o que se tornou uma célebre passagem de sua obra. Ele diz: “o objetivo do tratamento nunca será algo diferente do que a cura prática do doente, o estabelecimento de sua capacidade de realizar e de gozar” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Vale aqui, novamente, realçar a observação do revisor da edição das Obras Incompletas de Sigmund Freud aqui utilizada, que aponta o reducionismo da expressão mais comumente conhecida “trabalhar e amar”; a justa tradução dos termos usados por Freud (leisten e genieBen) revela os sentidos de realizar (coisas) e fruir ou gozar (a vida). E segue Freud (1904[1905]/2017, p. 57): “Em caso de tratamento incompleto ou de resultados imperfeitos desse tratamento, alcançamos principalmente uma melhora significativa do estado psíquico geral do doente, enquanto os sintomas podem continuar existindo, sem, porém, estigmatizá-lo como doente, mas tendo menor importância para ele”.
Os “resultados imperfeitos” do tratamento relacionam-se também, a meu ver, com um fator mencionado por Freud no início do texto. Ele justificava a pertinência da mudança do método catártico para a “arte da interpretação” pelo fato desta conseguir se aproximar mais da série de impressões que participavam do surgimento do sintoma, que se revelou plural e não apenas como impressão única (e traumática), tal como requeria o procedimento catártico para seu êxito. Sobre essa “série de impressões” que causavam o sintoma – o que nos remete à sua formulação posterior de que o sintoma é uma “solução de compromisso” entre as instâncias do Isso, do Supereu e do mundo externo, ao qual o Eu encontra-se submetido –, Freud (1904[1905]/2017, p. 52) dirá que elas (as impressões em série) são “difíceis de serem superadas”.
Em acréscimo aos aspectos técnicos que justificam a mudança de método, Freud menciona o uso do divã – que, no texto, ele descreve como “cama de descanso” (e não Diwan) – com o propósito de que o analisante poupe “todo e qualquer esforço muscular, assim como toda impressão dos sentidos que possa atrapalhar a concentração na sua própria atividade anímica” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 53), diferentemente, porém, do contexto da hipnose, sem que necessite fechar os olhos ou que haja qualquer contato com a pessoa do médico. A dificuldade de grande número de pessoas neuróticas em serem hipnotizadas é outro argumento, que se soma aos demais, em favor da instituição do novo método da “arte da interpretação”.
E a quem ela se destina? A “todos os quadros sintomáticos da histeria multiforme e também para todas as formações da neurose obsessiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57). Dentre estes, os mais favoráveis são
os casos crônicos de psiconeuroses com sintomas pouco intempestivos ou potencialmente pouco perigosos, ou seja, inicialmente todos os tipos de neurose obsessiva, de pensamento e atuação obsessiva, e casos de histeria em que fobias e abulias têm papel preponderante, mas também todas as manifestações somáticas da histeria, desde que a eliminação rápida dos sintomas, como no caso da anorexia, não se torne a tarefa principal do médico. (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 57)
Freud estabelece condições para a pessoa que será submetida com sucesso à psicanálise: mostrar um estado psíquico normal, sem estados de confusão ou de depressão melancólica; ter determinado grau de inteligência natural e de desenvolvimento ético, pois as deformações marcantes de caráter mostram-se fontes de resistências insuperáveis; e faixa etária abaixo do quinto decênio pois, do contrário, o tempo necessário para o restabelecimento será demasiado longo, além de que, aos 50 anos, a capacidade de reverter processos psíquicos começa a fraquejar. Sobre este ponto, cabe lembrar que a expectativa e a qualidade de vida em 1904 encontravam-se bem aquém das atuais.
Por fim, o tempo de duração da análise é estimado de seis meses a três anos para os casos muito graves, adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva – público corrente dos psicanalistas, até então. Fora de sua experiência prática mais comum, Freud estima que o tratamento dos casos mais leves teria uma duração bem menor, chegando a “obter um ganho extraordinário em termos de prevenção para o futuro” (Freud, 1904/2017, p. 58).
“O método psicanalítico”, por J.-A. Miller
O texto de Miller intitulado “O método psicanalítico” compõe-se pelo estabelecimento de três conferências dadas pelo autor em Curitiba em julho de 1987. Ele participa do livro Lacan Elucidado: palestras no Brasil, publicado dez anos mais tarde, em 1997, como uma coletânea das palestras proferidas por Miller no Brasil entre os anos 1981 e 1995.
“O método psicanalítico” é o título do terceiro capítulo do referido livro e engloba quatro seções: a primeira palestra, intitulada “Discurso do método psicanalítico”; a segunda, denominada “Diagnóstico e localização subjetiva”; a terceira, “Introdução ao inconsciente”; e uma quarta, designada como “Respostas e questões em aberto”.
De pronto, Miller introduz um esquema que encadeará o desenvolvimento das três conferências. Trata-se das finalidades das Entrevistas Preliminares, tempo inicial da prática analítica, que se subdividem em três níveis: 1. A avaliação clínica; 2. A localização subjetiva; e 3. A introdução ao inconsciente. Esses níveis das Entrevistas Preliminares se superpõem, sem que haja separação completa entre eles. Suas interseções configuram-se no estabelecimento de dois processos subsequentes, que Miller denomina de Subjetivação (entre os níveis 1 e 2) e de Retificação (entre os níveis 2 e 3).
Segue o esquema, segundo sua notação:
1. A avaliação clínica
[Subjetivação]
2. A localização subjetiva
[Retificação]
3. A introdução ao inconsciente
Antes de se dedicar à explanação de cada um, Miller circunscreve a prática das Entrevistas Preliminares como o que rege, eticamente, a responsabilidade do analista em responder à demanda de análise formulada pelo candidato a analisante. “Aceitá-lo ou recusá-lo já é um ato analítico” (MILLER, 1997, p. 224) e, para fundamentar tal ato, é preciso saber que, numa análise, nos dirigimos sempre ao sujeito, cuja categoria não é técnica, e, sim, ética.
Em sua proposta de fazer um “discurso do método” da psicanálise, deixando as questões em aberto (daí o título da quarta seção), Miller ressalta que a psicanálise de orientação lacaniana é sem padrões, mas não sem princípios – e se dispõe a formalizá-los.
Começa por esclarecer que quem procura um analista não é um sujeito, mas alguém que quer ser um paciente. O sujeito é um efeito do processo analítico e não está lá desde antes. Desse modo, Miller diferencia o paciente psiquiátrico, designado pelos outros (família, médico, sociedade, instâncias sociais), do paciente da psicanálise. Este último é ativo, é ele quem primeiro avalia seu sintoma e pede ao analista um aval para sua autoavaliação. “Em análise, não há paciente à revelia de si mesmo”, sinaliza Miller (1997, p. 223). A autorização do analista quanto à autoavaliação daquele que lhe chega como paciente configura um ato analítico.
Mas isso não implica em recebê-lo em análise. Aqui se institui o contexto das Entrevistas Preliminares que, dentre outras funções, levará o paciente-candidato a reformular sua demanda. Sua duração é variável, podendo perdurar por um mês, meses, um ano ou vários, sem, no entanto, se descuidar da especialidade desse tempo que precede “a análise em seu rigor” (MILLER, 1997, p. 224).
Desse modo, o primeiro nível das Entrevistas Preliminares, o da Avaliação clínica, terá como função o estabelecimento de um diagnóstico estrutural – neurose, psicose ou perversão. Diante de uma eventual dúvida diagnóstica – não tão eventual assim, por vez comum de acontecer –, Miller indica que o analista poderá recusar a demanda, prolongar o tempo das Entrevistas Preliminares ou assumir um risco mais ou menos calculado. Adverte quanto à importância vital da avaliação clínica nos casos de psicose, pois se ela não estiver desencadeada, a análise poderá vir a desencadeá-la.
“Há uma regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico. Se isso não ocorrer, é necessário ter o máximo de cuidado para não desencadear a psicose, através de qualquer palavra” (MILLER, 1997, p. 226). Essa é uma das passagens do texto que o fazem poder ser considerado datado. A expressão “pré-psicose” denota a detecção de uma estrutura psicótica, porém não desencadeada. Foi somente 12 anos mais tarde, em 1999, em decorrência da série de conversações clínicas ocorridas na França – notadamente a Conversação de Antibes –, que Miller veio a cunhar o termo “psicose ordinária” para abarcar esses casos. A contraindicação da análise para os pacientes de estrutura psicótica também se mostra anacrônica e centrada no modelo do manejo com os pacientes neuróticos – para os quais se aplicam os demais níveis do esquema esboçado neste texto.
Miller aconselha a todo analista ter um saber profundo e extensivo sobre a estrutura psicótica e indica os parâmetros dos fenômenos elementares que devem guiar a avaliação clínica desse primeiro nível: os fenômenos de automatismo mental, de automatismo corporal e aqueles concernentes ao sentido e à verdade. Em seguida, realiza breves diagnósticos diferenciais entre psicose e histeria, psicose e neurose obsessiva e psicose e perversão. Termina então sua primeira conferência, “Discurso do método psicanalítico”, estabelecendo a categoria da enunciação como um operador prático para a clínica psicanalítica e promotora do segundo nível da Entrevistas Preliminares, a saber, o nível da localização subjetiva.
A segunda conferência, portanto, intitula-se “Diagnóstico e localização subjetiva”, e vai abordar o lugar do sujeito na análise. Para diferenciar a clínica psicanalítica, que visa a subjetividade, das demais, objetivas, Miller distingue a conduta do paciente da posição que ele assume diante de seus atos. “Como vemos, o nível descritivo não é de muita valia na experiência analítica. […] O essencial é o que o paciente diz” (MILLER, 1997, p. 235). Miller demarca a importância do analista se separar da dimensão do fato para entrar na dimensão do dito. A isso deve-se acrescentar um segundo passo: questionar a posição tomada por quem fala quanto aos próprios ditos. “Trata-se de distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p. 238). Temos, aqui, o princípio da localização subjetiva, na análise, pela via da distinção entre enunciado e enunciação, entre o dito e o dizer.
Os fenômenos que se passam entre o enunciado, o que se diz, e a enunciação, na qual se localiza o sujeito, são decisivos para a interpretação analítica. Desse modo, diante da modalização instituída pela negação – por exemplo, com o paciente de Freud que enuncia, após o relato do sonho, “não é minha mãe” – ou por outra posição do sujeito, a interpretação analítica mínima é: “Você o disse, eu não fiz você dizê-lo” (MILLER, 1997, p. 240), o que aponta para a etapa lógica seguinte, da retificação subjetiva.
A linguagem segue sempre em retroação; o significante toma seu sentido retroativamente, somente a partir de um segundo significante. Miller o exemplifica com as frases de seu paciente, que primeiro lhe diz: “Sou um joão-ninguém”; ao que acrescenta: “É o que meu pai sempre dizia”, o que modifica o sentido da primeira frase.
O sentido do significante é dado por retroação e o sujeito fala por um contínuo processo de citação.
Não há unidade da cadeia significante, do ponto de vista da enunciação. Uma palavra é a repetição do discurso do outro. É a voz do pai que fala quando o sujeito diz “eu não sou nada”. […] A cadeia significante é polifônica, falamos a várias vozes, modificando continuamente a posição do sujeito. (MILLER, 1997, p. 243)
Isto leva Miller a questionar até que ponto o sujeito fala em seu próprio nome. Como método analítico, ele, no entanto, institui a importância da pontuação do analista, que fixa a posição subjetiva em meio ao deslizamento significante.
Reproduzindo de outra maneira o que expôs Freud em seu texto, ao falar das resistências que vão contra a vontade de restabelecimento do paciente, Miller indica que a modalização do dito pode se dar de tal maneira que uma demanda explícita de mudança pode revelar-se a de não mudar. Com isso, estipula uma função essencial para o analista, nas Entrevistas Preliminares: a de mal-entendido, revelado na pergunta que ele dirige ao analisante – “O que você quer dizer com isso?”.
Assim, localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a caixa vazia onde se inscrevem as variações da posição subjetiva. É como pôr entre parênteses o que o sujeito diz e fazer com que ele perceba que toma diferentes posições modalizadas para com seu dito. (MILLER, 1997, p. 247)
O sujeito é, portanto, essa caixa vazia que lhe revela “eu não sei o que digo”, fazendo da enunciação o próprio lugar do inconsciente.
A terceira conferência, denominada “Introdução ao inconsciente”, retoma a relação entre o dito e o dizer para indicar que a ética da psicanálise toca o bem-dizer.
O analista, separando enunciado e enunciação ao reformular a demanda e introduzir o mal-entendido, guia o sujeito para o encontro do inconsciente: leva-o ao questionamento de seu desejo e do que pretende dizer quando fala, fazendo-o assim perceber que há sempre uma boca mal-entendida. (MILLER, 1997, p. 250)
“As entrevistas preliminares não são apenas uma investigação para localizar o sujeito, mas também a mudança efetiva de sua posição […] alguém que se refere ao que disse guardando distância do dito” (MILLER, 1997, p. 250). Esse processo se constitui em uma retificação subjetiva. Ela é alcançada por meio da localização subjetiva, a partir da qual o sujeito passa a aceitar a associação livre (dizendo nos termos do Freud de 1904, a “arte da interpretação”), a falar sem censurar o que diz buscando o sentido, a abandonar a posição de mestre.
Miller (1997, p. 253) precisa que o essencial para abrir o que chamou de “espaço analítico” é o sujeito. E o define da seguinte maneira: “o sujeito é a própria perda, jamais contável em seu próprio lugar, ao nível físico, ao nível da objetividade. Neste nível ele não existe, e é responsabilidade do analista produzi-lo num outro, que lhe seja apropriado”.
E segue, mais à frente: “A introdução ao inconsciente é, na realidade, uma introdução à falta-a-ser. O sujeito é esta falta-a-ser, não tem substância, existe apenas como a torção dos três tempos” (MILLER, 1997, p. 254). E: “Lacan chamou retificação subjetiva à passagem do fato de queixar-se dos outros para queixar-se de si mesmo” (MILLER, 1997, p. 255).
Miller (1997) observa que, no período mais avançado de seu ensino, no entanto, Lacan não fala tanto de retificação subjetiva, mas da histerização do sujeito. O sujeito histérico é aquele que se vê dividido em relação ao significante-mestre (S1), tomando distância de todo dito, o que lhe propicia a perda de um ponto de referência.
Como conclusão, recapitula o percurso realizado com as três conferências, tendo introduzido o sujeito a partir do tema da enunciação, fazendo aparecer ele mesmo como vazio, configurando o drama da falta-a-ser, com o qual o sujeito neurótico tem que se haver.
E retorno…
Para um ensaio de interlocução entre os textos, dois temas podem ser ressaltados e serão expostos a seguir.
1. Tanto Freud quanto Miller se fazem a pergunta sobre quem poderia se beneficiar do processo analítico.
Freud, em sintonia com seu receio quanto a se tomar sujeitos psicóticos em análise, estabelece a estrutura neurótica, que engloba os tipos clínicos da histeria e da neurose obsessiva, como o público-alvo da análise. Não recuando, no entanto, diante dos casos graves, “adoecidos há muitos anos e com total incapacidade produtiva” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58) como seu público majoritário.
O pensamento freudiano dos primórdios de sua elaboração teórica está às voltas com o mecanismo do recalque e as resistências do aparelho psíquico que venham a proteger o Eu do mal-estar promovido pelo ressurgimento das lembranças reprimidas. Ora, sabemos ser este um mecanismo de funcionamento neurótico, com o recalcamento sendo seu mecanismo de defesa primordial – e a negativa um modo de contorná-lo, assim como as demais manifestações do inconsciente (as modalidades de equívocos pelo falar, pelo agir ou pelo ler, os chistes e os sonhos).
Já Miller (1997, p. 226), ao dizer da “regra segundo a qual devemos recusar a demanda de análise do paciente pré-psicótico”, ou seja, de estrutura psicótica, mesmo em 1987 não parece estar menos advertido quanto aos benefícios que a psicanálise possibilita ao sujeito psicótico. Mas não nos termos da retificação subjetiva, que é seu propósito com as conferências realizadas sobre o método psicanalítico. Para haver a retificação é preciso o mecanismo do recalque; em outros termos, da clínica estrutural, é preciso estar diante de um sujeito neurótico.
2. Ao descrever as condições para o paciente ser submetido com sucesso à análise, Freud aponta que “as deformações marcantes de caráter se mostram fontes de resistências insuperáveis” (FREUD, 1904[1905]/2017, p. 58). Buscando elucidar a afirmativa de Freud com o texto de Miller, temos que este autor indica que o “verdadeiro perverso”, aquele que se enquadra na estrutura clínica da perversão, não procura nem entra em análise por não querer prestar conta a nenhum Outro (MILLER, 2017, p. 255). O perverso não se divide quanto ao gozo, “ele sabe tudo o que há para se saber sobre o gozo” (MILLER, 2017, p. 229), e acrescenta que “o verdadeiro perverso, muitas vezes, escapa à sua própria análise e se autoriza a analisar, por iniciativa própria, porquanto julga ter o mais importante saber, o do gozo” (MILLER, 2017, p. 229).
Se “as deformações marcantes de caráter” de que fala Freud são tomadas como indicativas de uma estrutura perversa, podemos entender, pela via da elaboração de Miller, porque haveria, em alguns sujeitos, “fontes de resistências insuperáveis” à análise.
Por estarem circunscritos a momentos diferentes da elaboração da teoria psicanalítica – 1904 e 1987 –, os textos de Freud e de Miller sobre o “método psicanalítico” apresentam pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. Este último aspecto relança os dois textos, conjuntamente, ao descompasso com elaborações teóricas mais atuais, como o mencionado sintagma “psicose ordinária”, bem como a formalização da clínica iluminada pelos elementos epistêmicos apresentados pelo chamado “ultimíssimo Lacan”. Não obstante, os textos aqui apresentados conservam a bússola orientadora para a prática psicanalítica, evidenciando a posição do analista na transferência ao tomar sob sua condução um tratamento psicanalítico.