ANAËLLE LEBOVITS-QUENEHEN
Psicanalista, AME da ECF/AMP
anaelle.lebovits.quenehen@gmail.com
Resumo: A autora trata, neste artigo, da relação entre psicanálise e política, “em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política”. Para tanto, distingue diferentes modalidades dessa relação, assim como diferentes níveis de implicação do psicanalista com o político. Ainda de acordo com a autora, a conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue a existir, ou seja, cabe aos analistas “não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética”.
Palavras-Chave: psicanálise; política; discurso analítico.
Psychoanalysis and politics: four modalities of a relationship
Abstract: In this article, the author discusses the relationship between psychoanalysis and politics, “particularly the way a psychoanalyst is interested in politics”. In order to do so, she distinguishes different modalities of this relationship, as well as different levels of involvement of the psychoanalyst with the political. According to the author, the connection between psychoanalysis and politics always points to “not preventing” the analytic discourse from continuing to exist, that is, it is up to analysts “to never cease to make the impasses found in the world the occasion for an epistemic advance on the basis of ethical necessity”.
Keywords: psychoanalysis; politics; analytical discourse.
Pensar a relação entre psicanálise e política e, em particular, a forma como um psicanalista se interessa pela política, quer dizer, como intervém no campo político, sem dúvida supõe distinguir diferentes modalidades dessa relação.
Comecemos pela primeira, que se coloca de início. Um psicanalista está interessado, em primeiro lugar, pela política no sentido em que ela é de sua época, quer dizer, do tempo e do lugar em que vive e exerce a função de analista. Desde 1953, Lacan contempla a psicanálise completamente tomado, inclusive “arrastado”, pelo redemoinho de sua época. Essa passagem do “Discurso de Roma” é bem conhecida: “Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas” (LACAN, 1953, p. 322). Sobre esse ponto, Lacan não variará. Volta a encontrá-lo vinte anos mais tarde, em 1973, afirmando com a mesma ênfase e, ainda mais explicitamente, que um analista deve ser absolutamente “contemporâneo”. Nesse momento, faz dele um slogan:
“Somos de nosso tempo. Tive um amigo que produzia como Schlachwort, (quer dizer) slogan: ‘Sejamos significativamente contemporâneos’. Creiam, é um bom aforismo. Sejam significativamente contemporâneos tanto mais quanto que não tenham outro recurso. O que não é da sua experiência está perdido, perdido de uma vez por todas” (LACAN, 1973, p. 237-238. trad. nossa).
Certamente, essa afirmação é, em primeiro lugar, para nos prevenirmos contra a tentação de reação, mas também indica, uma vez mais, a afinidade de um analista com seu tempo, a forma em que é tomado, da qual depende, e isso à margem da sua vontade. O analista não está recluso em sua torre de marfim, não se mantém acima da contingência diária, não está ocupado mais além de se colocar à altura e pensar uma técnica que sirva para a eternidade e para um dia de uma determinada época, e isso sem escapatória possível. Por outro lado, ser de seu tempo é, na verdade, ter relação com a política como componente da época em que se vive. Por isso, é necessário sabê-lo e medir o que se implica em relação à prática analítica, esta mesma comprometida com certa evolução, assim como o saber que a orienta e a indexa, por sua vez.
Na história do mundo, na qual a política é um componente principal, por mais que não realize mais que revoluções, que se repita e veja o real voltar ao mesmo lugar, tal como a terra gira sobre si mesma (LACAN, 2017, p. 7), não é menos certo que o psicanalista que o habita não saiba ignorar aquilo do que é contemporâneo sem limitar o campo da sua experiência.
O primeiro nível de implicação de um psicanalista no político procede unicamente do fato que o político é um componente da época em que se vive.
O segundo, o terceiro e o quarto nível, que serão diferenciados, se situam de outro modo, a partir da experiência da Escola da Causa Freudiana ao longo dos últimos 20 anos. Lacan não tematizou esses níveis como tais, mas a orientação seguida pelos psicanalistas de sua Escola no campo político é afim àquela que oferece seu Ensino. Essa orientação se pode localizar, entre outras, na menção decisiva do “Ato de Fundação” (1971), no qual Lacan afirma que a Escola está feita para devolver “a práxis original que Freud instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 1971, p. 235). O que isso quer dizer, senão que, em primeiro lugar, a práxis freudiana tem um dever no mundo, o primeiro dos quais, sem dúvida, é o de se dar os meios de perdurar, de existir, e isso mantendo viva a subversão daquela que procede?
Importante destacar que a responsabilidade do psicanalista está comprometida quando o político se interessa pela psicanálise. Nesse ponto, figura o segundo tipo de relação entre psicanálise e política que abordaremos. Não é, portanto, o psicanalista que se interessa aqui, em primeiro lugar, pela política, mas o político que, se interessando por seu campo, o convoca às vezes a responder, ou seja, literalmente a fazer-se responsável. Assim, quando o político se interessa pela psicanálise, raras as vezes o faz para valorizá-la, senão — e isso desde alguns anos atrás — para impor uma ordem que se supõe que lhe falte, frequentemente com as melhores intenções, mas colocando em perigo as condições de sua existência.
Desse modo, vimos, por exemplo, o político pretender se misturar na formação dos psicanalistas. Em tal contexto, a responsabilidade do analista encontra-se convocada e comprometida, ao menos quando se atém ao discurso analítico. Todo o desafio está efetivamente em não deixar debilitar o progresso da psicanálise nem degradar sua utilização, para retomar as palavras de Lacan em “O Ato de Fundação” (1971). Isso é verdade tanto no interior quanto no exterior do campo psicanalítico. Do mesmo modo que a Escola está feita para proteger a psicanálise da errância de certos psicanalistas, também está feita para protegê-la das errâncias do político quando se apresentam contra ela.
Uma terceira forma de considerar a conexão entre psicanálise e política consiste em destacar a dependência da psicanálise do regime político em que se pratica. O Estado de direito, especialmente, é uma das condições de possibilidade do livre exercício da psicanálise — Judith Miller o assinala em Por que Lacan (MILLER, 2021, p.71). Freud e os primeiros psicanalistas vienenses o viveram bastante nos inícios do movimento analítico, dado que, nascida em Viena, a psicanálise foi rapidamente expulsa pela intervenção da política. Uma mudança de regime político é, então, suficiente para impor um pesado exílio à psicanálise. Lacan destaca, por sua vez, as consequências para o movimento analítico e certos desvios que então tomou.
De fato, a dependência do discurso analítico do Estado de direito é tal que todo ataque a esse discurso parece revelar a fragilidade do Estado de direito, ainda que o ataque ao Estado de direito seja ipso facto ataque ao discurso analítico. Aqui, todavia, tê-lo em conta é uma forma de fazer-se responsável quanto ao discurso analítico e de suas condições de possibilidade.
A quarta forma de considerar a conexão entre psicanálise e política nos é oferecida pela observação da forma como Jacques-Alain Miller interveio a propósito da “questão trans”, destacando aí um impasse do discurso corrente, não sem efeitos potenciais no discurso analítico. Quando esse discurso corrente tende, nessa questão em particular, a erguer a escuta em valor supremo, inspirando-se por outro lado, para isso, no mesmo discurso analítico e de sua propagação na opinião pública, este proíbe nesse impulso toda interpretação, faz como se interpretar se convertesse em rechaçar, como se perguntar ou interrogar fosse já negar, como se convidar para a elucidação fosse já trair, ou, pior ainda, humilhar. Por outro lado, um psicanalista está bem situado para saber que certos enunciados se interpretam e que interpretar não equivale nem a “julgar”, nem a “rechaçar”, nem a “negar” aquele que faz um enunciado no âmbito da relação analítica. Inclusive, frequentemente se apresentam casos em que interpretar ou interrogar uma ideia é, de fato, a única forma de acolhê-la dignamente, a fim de permitir aceder a sua própria verdade e, a partir daí, cernir o real que essa verdade bordeja. Isso se faz notar especialmente com certas crianças com sintomatologia inquietante, tanto mais inquietante quanto a acolhida que se faz a solidifica. Que os psicanalistas façam saber os efeitos de uma interpretação analítica é também para eles a ocasião de afirmar a dignidade de sua abordagem, assim como a dos sujeitos suscetíveis de fazer essa experiência. Realizando, se aproveitam de um impasse presente na civilização para fazer progredir os pontos importantes da doutrina que orientam ou reorientam sua prática. É, então, a ocasião de um progresso à medida daquilo que o espírito da época impõe.
Tomar “o lugar que lhe corresponde neste mundo”, para retomar as palavras de Lacan, é, assim, para o psicanalista, a melhor forma de não fixar seus princípios, de proscrever todo dogmatismo e de não cessar de fazer dos impasses que se encontram no mundo a ocasião de um avanço epistêmico sobre a base da necessidade ética.
Revela-se, então, que o dever que se tem de velar pela psicanálise é também uma das vias pelas quais a psicanálise progride, aquela que não cessa de restaurar a “sega cortante de sua verdade” utilizando a via que “denuncie os desvios e concessões” (LACAN, 1971, p. 235), que, sem essa, a aceitam. A conexão entre psicanálise e política aponta sempre “a não impedir” que o discurso analítico continue existindo. E esta é, para os psicanalistas, uma exigência mínima.
Cada um dos ataques mais ou menos dirigidos, cada um dos discursos que vão contra ela, seja de forma intencional, seja por acidente, são, assim, ocasiões em que os psicanalistas podem abordar para experimentar ou comprovar suas teses, inventar o que deve ser inventado, ler de outra maneira o que já foi lido, ou seja, manter-se vivos e no vivo. Assim, ocorre-lhe de meter-se em política, sempre e quando o discurso analítico dependa disso — nem mais nem menos.