Cristiana Pittella
AP, membro da EBP/AMP
Resumo: A autora faz uma leitura do texto freudiano “Neurose e psicose” (1924), servindo-se da orientação lacaniana.
Palavras-chave: Neurose; psicose; sonho; delírio; simbólico; real.
A FISSURE IN THE SELF’S RELATIONSHIP WITH THE EXTERIOR WORLD
Abstract: The author reads the Freudian text “Neurosis and psychosis” (1924), using the Lacanian orientation
Keywords: Neurosis; psychosis; dream; delirium; symbolic; real
Sonhei que era uma borboleta, e quando acordei vi
que era um homem. Agora não sei se sou um homem
que sonhou ser borboleta, ou se sou uma borboleta que sonha ser um homem.
Chuang Tzu, mestre taoísta
A questão da realidade, do ser e da existência é fundamentalmente humana. Em “Clínica irônica”, Jacques-Alain Miller (1996a) afirma que, para Freud, nada deixa de ser sonho, e, para Lacan, a propósito de Freud, se tudo é sonho, então todo mundo é louco, isto é, delirante. Assim, “diante do louco, diante do delirante, não se esqueça que você é, ou foi, analisante, e que também fala ou falava, sobre o que não existe” (p. 199).
Nesta 58ª Lições Introdutórias à Psicanálise, “Uma fissura na relação do eu com o mundo exterior”, vamos trabalhar o texto freudiano “Neurose e psicose”, de 1924. Nele Freud investiga a gênese das duas entidades clínicas, neurose e psicose, e é a primeira vez que ele utiliza o termo psicose. O contexto é o da segunda tópica, em que Freud, no texto “O eu e o isso” (1923), expande o inconsciente para além do recalque ao apresentar o aparelho psíquico pelas instâncias eu, isso e supereu.
O eu encontra-se submetido às exigências do isso e do supereu, “com o anseio em servir a todos os seus senhores a um só tempo” (FREUD, 1924/2016, p. 271). Freud vai delimitar a neurose e a psicose a partir da posição do eu. A neurose resultaria do conflito entre o eu e o isso, e, a psicose, do conflito entre o eu e o mundo exterior. Ele mesmo considerará isso uma solução simplista, pois a etiologia é comum para o início tanto da neurose quanto da psicose. Trata-se de um elemento incompatível que se impõe ao eu, e este decide rechaçá-lo: “trata-se de um impedimento (Versagung), uma não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos de infância” (FREUD, 1924/2016, p. 274).
A ideia de conflito entre a defesa e as moções pulsionais, de forças antagônicas, perpassa a obra de Freud. Também em 1923, em seu texto “A perda da realidade na neurose e psicose”, Freud considera mais claramente que há na neurose uma perturbação da realidade, algo que não cessa de não se escrever, e ela própria é uma fuga da realidade. O real insiste, as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer. Neurose e psicose são modalidades de defesa. Para ambas, tratar-se-á de uma perda da realidade e da criação de uma nova realidade (FREUD, 1923/2016, p. 284).
Para explicitar a origem desses conflitos e as soluções encontradas, Freud, no texto que estamos lendo, destaca, a partir de sua experiência, dois campos: o das neuroses de transferência e o das neuroses narcísicas.
Nas neuroses de transferência, o eu, a serviço das exigências do supereu (ideal), se defende das moções pulsionais através do mecanismo de defesa, o recalcamento. Ele se separa de uma parte do isso. O recalcado, entretanto, retorna pela via do compromisso — o deslocamento do afeto de uma representação para outra —, encontrando por essa transferência uma satisfação substitutiva: o sintoma.
Freud delimita três neuroses de transferência: a histeria, a obsessão e a fobia. Na fobia de Hans, o desejo pelo pai se desloca para o medo do cavalo, que o impede de circular livremente. No homem dos ratos, o desejo de matar a mulher que se ama é deslocado para a aflição de que ela tropece numa pedra, ora colocando, ora retirando essa pedra. Na histeria, o afeto converge para o corpo: em Elisabeth von R., suas dores nas pernas e dificuldade de andar surgem do desejo sexual pelo marido de sua irmã.
Para especificar o conflito nas psicoses, Freud se valerá no texto do exemplo da amência de Meynert como um paradigma das neuroses narcísicas. Trata-se de uma aguda confusão alucinatória em que a ruptura com o mundo exterior — pelo grave e intolerável impedimento de desejo por parte da realidade (Wunschversagung) — leva a uma recusa das novas percepções (verweigert). Há uma retirada da libido do mundo exterior (das significações compartilhadas, do laço social), assim como do mundo interior (perda de si e da identidade). O eu cria para si um novo mundo, fechado em si mesmo, construído de acordo com as moções pulsionais.
Freud também se refere às esquizofrenias, em que há um embotamento afetivo e uma perda de toda participação no mundo, do laço com o Outro. Há, na esquizofrenia, um retorno do gozo sobre o corpo. O esquizofrênico não se defende do real com o simbólico porque, para ele, o simbólico é real (MILLER, 1996a). Sua ironia é uma defesa.
Se há um delírio que é do real, é o do esquizofrênico. Temos por orientação nunca nutrir o delírio (MILLER, 2015), pois ele pode levar ao pior. Em uma supervisão em serviço de saúde mental, o CAPS, Rômulo da Silva (1999) relata que um paciente, invadido por uma voz que o questionava se ele seria um anjo, acaba chegando à conclusão — a partir do que trabalhava nas atividades da instituição — de que era o anjo Gabriel. Não obstante, ele se desenlaça das atividades de sua vida. Para que ele participasse das atividades, um técnico vai lhe delegar a função de “anunciar” as atividades do serviço. O paciente ganha um mais de vida; passa a correr com os braços abertos e a anunciar o que lhe era solicitado. Entretanto, para esse sujeito, o simbólico, o significante, é real, não representa o sujeito para outro significante. Seu delírio não alcança um valor de metáfora delirante. Por consequência, ele passa ao ato: “bate as asas” pulando da janela de onde morava, vindo a falecer.
Desde sua leitura de Schreber (1911) e também em “Neurose e psicose”, Freud ressalta que as formações delirantes são um remendo onde originalmente surge uma fissura na relação do eu com o mundo exterior. Elas são tentativas de cura e reconstrução da realidade psíquica, pelo retorno do gozo no significante, fazendo o Outro existir. Freud dá uma dignidade ao delírio concebendo-o não como um distúrbio do juízo, mas como algo singular, do enlaçamento do eu à realidade, ao Outro.
Schreber, um doutor em direito na Alemanha, é chamado a ocupar o lugar de juiz. Trata-se de uma função simbólica que exige do sujeito um uso da significação fálica advinda da metáfora do Nome-do-Pai. Entretanto, Schreber é confrontado com a foraclusão do significante do Nome-do-Pai em sua estrutura, não encontrando um significante que possa representá-lo junto a outro significante, o que acarreta uma ruptura de sua realidade psíquica. Essa ruptura produz uma desestabilização, a saber, um desencadeamento do significante, um desastre crescente do imaginário, e deslocaliza o gozo que retorna no corpo e no Outro do significante.
Ele escreve com rigor, em suas memórias, as imposições e abusos que sofre; como seu corpo é invadido, comandado e modificado por raios divinos, desfazendo seu mundo em cascata. Pela sua escrita podemos ler como ele vai reconstruí-lo com o delírio e encontrar um lugar, uma nomeação, no ponto onde originalmente surgiu a fissura.
A ideia de ser transformado em Mulher é o germe de seu sistema delirante. Ela lhe ocorre a partir de um pensamento de que, afinal de contas, deve ser realmente muito bom ser mulher e submeter-se ao ato da cópula. Esse empuxo à mulher se impõe ao sujeito e, se num primeiro momento, o horroriza, em seguida, ele o aceita como um compromisso razoável, para tornar-se um compromisso irreversível (LACAN, 1955-1956).
Com seu delírio, designando-se “A mulher de Deus”, ele pôde, durante um período, viver a sua rotina e exigências do trabalho. Sua existência, seu mundo e lugar junto ao Outro são reconstruídos com esse remendo.
A clínica universal do delírio
Formular uma clínica universal do delírio implica situarmos as diferenças entre as modalidades de delírios dos neuróticos — articulados ao fantasma, aos ideais e às exigências superegoicas — e os delírios na psicose.
Se o neurótico e o paranoico distintamente fazem o Outro existir defendendo-se do real com o simbólico, o esquizofrênico nos ensina acerca da inexistência do Outro, de um real que se apresenta sem a mortificação da linguagem e um uso da ironia.
J.-A. Miller nos convida, em “Clínica irônica” (1996a), a apreendermos a posição do psicanalista como irônica. Mas como tocar o real com as palavras? Como tocá-lo de boa maneira? (MILLER, 2015). Como um psicanalista, na posição irônica, permite interrogar os modos de defesa de cada sujeito?
Advertido de que não há Outro do Outro, a ironia é um modo de fazer e questionar os significantes mestres, em que as palavras podem dizer outra coisa do que dizem e, assim, confrontar o sujeito com a sua própria dimensão delirante.
Exige uma investida, uma presença do analista, que ele aporte o tom, a voz, o acento, um gesto e o olhar, para que seu ato mobilize o corpo do falasser. Nas psicoses, pretendemos apagar ou acomodar o delírio (MILLER, 2015), assim, temos que considerar quando a ironia é uma defesa mínima do sujeito e quando ela pode servir para perturbá-la.
Uma análise pode reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido para fazer um uso do sinthoma. A clínica universal do delírio também aponta para isso que, como psicanalista, trata de escutar o que se enuncia da boca do paciente, o que se vocifera do lugar de mais-ninguém (MILLER, 2015), lugar do sujeito designado desde antes que o significante desenrole suas tessituras capciosas, que fazem esquecer que aí onde se sofre, se goza.
A leitura de “Neurose e psicose” por Lacan
A definição de defesa no texto “Neurose e psicose” recebe nomes diversos, como recusa, recalcamento e rejeição, sem uma delimitação estrutural clara, e sim mais continuísta. Contudo, Freud termina o texto perguntando-se qual seria o mecanismo análogo ao recalcamento na neurose para a psicose, através do qual o eu se desliga do mundo exterior.
Será Lacan, em seu Seminário 3: as psicoses (1955-1956), ao se referir ao texto freudiano, quem vai delimitar estruturalmente a neurose e a psicose, distinguindo-as quanto às perturbações que elas produzem nas relações do sujeito com a realidade. Ele sublinha que Freud admite um fenômeno de exclusão para o qual o termo Verwerfung parece válido, e que esse modo de defesa se distingue da negação (Verneinung), que é reconhecida por Freud como a matriz simbólica do inconsciente.
A Verneinung, negação, é um momento constitutivo que delimita o mundo da realidade psíquica, um momento que está na origem da simbolização. É importante ressaltar que essa origem não está em um ponto do desenvolvimento, mas que responde a uma exigência, a uma escolha forçada. É ela que permite a emergência do mundo simbólico enquanto um sistema de articulação, de oposição entre elementos diferentes: S1– S2 , presença e ausência, dentro-fora, bom-mal…
Neurose e psicose são modalidades de negação, de defesa face ao real. Elas são ordenadas em relação a uma afirmação primária do significante (S1), a Bejahung, e, ao mesmo tempo, em que há uma afirmação, há uma expulsão definitiva (Austossung).
Esse significante (S1) — lalíngua —, que não é feito para se comunicar, marca o corpo do que Lacan nomeou em seu último ensino, falasser. Esse choque de lalíngua no corpo, que chamamos de trauma, itera fora-de-sentido num enxame de significantes S1 (essaim) que não se articulam. A realidade psíquica do falasser se constitui ao redor desse furo traumático (troumatisme), desse choque que ressoa o gozo do Um, um excesso traumático (tropmatisme).
Na neurose, o modo de negação, de defesa em relação às pulsões ao que vem do Outro, é a Verdrangung, o recalque. Nesse modo de defesa, o ser falante consente com a afirmação primordial de um significante (Bejahung) S1. Entretanto, nega-se a identidade do sujeito com o significante: S1 # $. O sujeito não é o significante, ele só vai figurar no discurso unicamente através de um representante. O significante irrealiza o mundo — a palavra mata a coisa —, a referência está vazia.
Um significante promove o sujeito no discurso, mas isso só se dará em relação a outro significante, o que equivale a dizer que o sujeito é barrado, cindido. O sujeito então se constitui nesse movimento de queda de um significante, que é recalcado, consentindo com a falta-a-ser. Falta a ser o falo. Tem-se a castração do sujeito e do Outro.
O significante recalcado (S1), como nos diz Freud, vai atrair para sua direção outros significantes, segundo as leis da metáfora e da metonímia (condensação e deslocamento), constituindo a cadeia significante, a realidade do sujeito.
Na neurose, o que se elide, nos diz Lacan (1955-1956), é uma parte de sua realidade psíquica (isso), parte esquecida que continua a se fazer ouvir. Como?, pergunta Lacan, e ele mesmo responde: de uma forma simbólica. A estrutura de linguagem do saber inconsciente se define então por essa conexão dos significantes, e o saber recalcado reaparece nas formações do inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e sintomas.
A dimensão da castração, a divisão do sujeito, o leva a uma busca recorrente de significação. O enigma do gozo se presentifica na indagação “o que isso quer dizer?”, provocando surpresa e propondo uma questão ao desejo: o que quer o Outro? O neurótico, ao tentar apreender o objeto no Outro, só encontra a vacuidade de um gozo.
A parada dessa busca infinita na cadeia se dá com a construção de sua posição de gozo enquanto objeto (a) para o Outro, $<>a, a construção da fantasia fundamental. Defesa que implica um ponto ininterpretável e que, uma vez atravessada em uma experiência analítica, o falasser possa vir a se virar com o gozo fora-de-sentido, o sinthoma.
Pode acontecer, todavia, de o sujeito recusar o acesso ao seu mundo simbólico, de alguma coisa que ele experimentou e que não é outra coisa senão ameaça à castração. Esse modo de negação, de defesa, cai sob o golpe da Verwerfung e tem uma sorte diferente.
Na foraclusão, o ser falante “escolhe” a psicose, insondável decisão do ser. A negação recai sobre o significante mesmo, que fica nulo quanto a sua função de representabilidade do sujeito. Nesse sentido, a Bejahung não se produz — trata-se da rejeição de um significante primordial. Não há o consentimento, um sim ao significante. Essa rejeição coloca em dúvida todo o conjunto significante — toda a cadeia significante —, o Outro — fazendo com que alguma coisa não seja manifestada no registro simbólico retornando no real.
Há, portanto, uma anulação do significante: o significante não representa o sujeito para outro significante, o que faz com que Lacan, no Seminário 11 (1964), nomeie como holófrase S1 S2, ou seja, há uma falta de articulação. Não há espaço entre os significantes, e, mais tarde, em seu ensino, Lacan escreverá apenas como a iteração do S1…S1…S1, escrituras que demonstram a falta de dialetização, a certeza psicótica e a não extração do gozo (a). A função do S1 de representar o sujeito junto ao S2 parte à deriva …S1…S1…S1.
É isso o que caracteriza a foraclusão do Nome-do-Pai, da metáfora primordial da castração. O significante, por não representar o sujeito para outro significante, vai funcionar redobrando o real. O sujeito se depara com um vazio de significação, um buraco, que é a perplexidade, para, em seguida, retornar no real uma resposta, uma significação da significação, que traz uma marca única, que é a certeza (MILLER, 1996b). O Nome-do-Pai ordena o universo do sentido, estabelece vínculos entre significante e significado e une o desejo à lei ao interditar o gozo primordial.
A foraclusão na psicose incide, portanto, diretamente sobre esse significante do Nome-do-Pai, provocando “um furo correspondente no lugar da significação fálica” (LACAN, 1957-1958/ 1998, p. 564), impossibilitando a simbolização da castração. Por consequência, temos a foraclusão do falo. O gozo não é extraído do corpo _ o psicótico tem o objeto (a) no bolso _ provocando uma “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958 p. 559).
Embora, no Seminário 3, as psicoses, Lacan afirme que “não fica louco quem quer” (1955-1956/ 1985 p. 177) ao considerarmos que a referência está sempre vazia, Miller, ao propor uma clínica universal do delírio, nos indica que todo discurso é uma defesa contra o real. As ficções edípicas, a fantasia — a crença louca no pai — são tão delirantes quanto um delírio na psicose. Ambas são produção de sentido ao gozo.
O delírio é universal, porque os homens falam e porque há linguagem para eles. A linguagem serve à tecitura das ficções com as quais ignoramos o que temos de mais real: a não relação sexual e a nossa própria mortalidade. Há nesse ponto uma interseção entre neurose e psicose no sentido que ambos se deparam com S(A/), ou seja, a forclusão generalizada.
O significante do Nome-do-Pai é, portanto, uma solução entre outras para tratar o gozo. Com o seu declínio, efeito da foraclusão generalizada e, também, mais além da foraclusão localizada na psicose (a Verwerfung), cada um tem que encontrar sua resposta sinthomática frente ao furo, ao real que lhe cabe.
A vida é sonho
Freud, em “Neurose e psicose”, aproxima o sonho da psicose. Essa aproximação se dá, pois há uma realização alucinatória do desejo no sonho, e a ideia de que se alucina quando se dorme atualiza a tendência do aparelho psíquico de se fechar. O sujeito acorda para continuar a dormir na rotina de sua fantasia e evitar o despertar para o real (MILLER, 2020).
Podemos também considerar a intrusão da vida no sonho; o sonho não só na via do inconsciente transferencial — das formações inconscientes —, mas na perspectiva do UM do inconsciente real: um despertar para o real de uma posição de gozo.
Alguns fragmentos do passe de Rômulo da Silva1, membro EBP/AMP, parece-nos contribuir para essa 58ª Lições Introdutórias à psicanálise. Sua análise lhe permitiu reduzir o sofrimento causado pelas ficções que o sujeito inventou para tratar o real, recortando o sintoma até o sem-sentido e fazer um uso do sinthoma.
Ao redor dele, o prazer e a alegria estavam do lado das mulheres. Desde novo queria saber sobre o gozo do Outro, o que a mulher quer, para assim alcançar o objeto de sua satisfação, o que redundou para ele querer ser esse objeto. De família italiana, na tristeza e na alegria, ouvia “mangia che te fa bene!“. Fazer falar e fazer rir eram maneiras de fazer o outro gozar. Posição que satisfazia uma parte da fantasia.
Até os seis anos foi considerado anoréxico. Havia preocupação com sua magreza e falta de apetite. Sua voz era áfona. Passa a comer com vigor, como elas, e passa a falar como elas.
Quando lhe perguntavam o que queria comer, respondia sempre: tanto faz. Quando solicitado a falar, a voz não saía e experimentava uma retração do corpo. E, sob pressão, o que lhe acometia era um choro que não se externava; saía um gemido, uma expiração impedida, um grito contido.
Tomar a palavra, falar em nome próprio, é assumir uma separação simbólica. Deixar sair a voz é ceder o gozo, separar-se, cair um objeto ao qual se mantém apegado. A função evocante da voz fazia com que ele entrasse em mutismo.
A voz é um objeto intrusivo dado pelo Outro e não se pode recusar. Os autistas e alguns psicóticos nos ensinam o quanto esse objeto é intrusivo. O ouvido não é um órgão que se fecha, diferentemente do objeto oral, que pode ser retirado pelo Outro, deixado pelo sujeito e também recusado por ele na anorexia.
Para se constituir como sujeito, é necessário que o objeto seja extraído do corpo, que o sujeito consinta com o significante. Falar em outra língua foi importante na análise de Rômulo. O analista o acolhe, mas adverte: é preciso falar melhor o francês.
As interrupções das sessões tinham repercussões para além da fala. O silêncio do analista o fez percorrer todo o mito familiar, as situações traumáticas e as soluções para se defender do real.
Sua história, que tanto gostava de contar, foi se tornando vazia e ridícula. Convocado a falar o que não tinha ainda falado e possibilitado de tomar a palavra sem que ela fosse articulada ao sentido, o angustiava, presentificava o objeto.
Ele sonha. Está submerso num tanque cheio de água. Não tem como respirar. Há uma torneira em forma de santo. Se a abrisse, encheria mais ainda. Em seu desespero, abre-a e surpreende-se: o tanque se esvazia.
Não encontra palavras e repete “je me sens… je me sens… je me sens…” (“eu me sinto…”), o que faz assonância com gemeção, ao tentar expelir o ar, o choro da infância, a voz. O analista intervém: J’aime saint, fazendo reverberar o gozo pelo equívoco. Fim da sessão. Ser analisante é aceitar receber de um psicanalista o que perturba a sua defesa (MILLER, 2014).
Faria sentido: a torneira era um santo, o santo que o salvou, o santo que ele é… E Rômulo repete j’aime saint… mas, em francês, não se diz, como em português, “Amo santo”, e sim, j’aime le saint (amo o santo). Ao que ele escuta: J’aime sang… (eu amo sangue). Ou seja, não ama nem é santo… tanto que virou o santo de cabeça para baixo para se salvar.
Rômulo, como o mestre taoísta Chuang Tzu, que não evita o despertar quando seu discípulo lhe diz, “é apenas um sonho!”, desperta para o real de sua posição de gozo. De uma voz tímida e feminina, do compromisso identificado à mãe e às mulheres que seduzia sendo um homem adorável, sua voz tornou-se mais ativa, de acordo com suas cordas vocais, e falava menos na vida. A função evocante da voz estava vinculada ao se fazer ver que o objeto (a), o olhar, impunha.
Um outro sonho revela isso. Um neologismo em francês feito por letras de fumaça: goulant. O som parecia Gourmand, ele via as sílabas go, gol, goul, na, um, aun, ant se desfazendo e não podia formar uma palavra colocando em jogo o sem-de-sentido, um enxame de S1 (essaim). Foi nos últimos suspiros da análise que a queda do objeto olhar se apresentou e permitiu o fim.
Para além da travessia da fantasia, ele nos conta dois episódios.
No primeiro, sempre carregava uma mochila com seus apetrechos. Em uma sessão, o analista, aos berros, exige que ele a deixe fora da sala. Ele a joga num canto. Rômulo não fala desse episódio na sessão, mas havia uma reação violenta em seu corpo, pronta para explodir, e, ao mesmo tempo, tentava entender o desejo do analista. Sai da sessão se perguntando se o analista pensava que ele seria violento e se carregaria uma bomba. O recebimento dessa mensagem invertida revela a sua posição.
No segundo, na sala de espera do analista, fala e gesticula sem parar com alguém que também aguardava e acaba derrubando um vaso no chão. Sem graça, tenta limpar, não consegue. Sai para pedir ajuda e encontra a esposa do analista no hall. Ao não encontrar a palavra em francês, sai disfarçando.
Vai para a sessão, nada fala do ocorrido. A cena o visita em sua forma edípica: “fiz uma besteira, tentei explicar para ela, ela não entendeu. O senhor pode dar um jeito?”. O analista carinhosamente quis saber os detalhes. Rômulo se sente ridículo contando e o analista faz um gesto de “deixa para lá”. Em seguida, volta-se para ele: “mas você quebrou o vaso?”. Ele responde que não e que limpou o que pôde. Em outro gesto tranquilizador e furioso, agarra o braço dele e diz: “mas, se tivesse quebrado, você teria que pagar!”. Ele sai apavorado, pensando nos milhares de euros, como se fosse um vaso da dinastia Ming.
A acolhida e, em seguida, a não cumplicidade do analista confrontaram-no com a solidão de seu gozo. Enquanto falava desenfreadamente na sala de espera, não levava em conta os outros. Não era só narcisismo, mas um autoerotismo; sua satisfação não levava em conta o Outro, simplesmente gozava.
Ao perturbar a defesa, o analista, com sua investida e presença, coloca em jogo a pulsão escópica e a invocante. O efeito de seu ato é mobilizar o corpo do falasser, pois as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer.
Como em um paralelo com o fenômeno elementar e a função do delírio na psicose, trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, sobre os quais o sujeito, em sua neurose, delirou (MILLER, 1996c). O Um sobre o qual o neurótico construiu suas defesas, suas elucubrações ficcionais, histórias de família tecidas de identificações ideais e verdades mentirosas.