GUILHERME RIBEIRO
A medicina contemporânea se sustenta em novas proposições epistêmicas. O surgimento das técnicas de avaliação e o uso dos protocolos de diagnóstico e tratamento trouxeram modificações significativas para a prática médica. Essas mudanças se sustentam no modo contemporâneo de produção de conhecimento médico, que é verificado em práticas que se tornaram mundialmente disseminadas, como a “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) e a psiquiatria orientada pelo “Manual de Diagnóstico e Tratamento” (DSM). A primeira se propõe a ser um guia para orientar as melhores práticas na medicina clínica, com ênfase nos sintomas, e a segunda orienta uma proposta para diagnóstico em psiquiatria, em que também são privilegiados os sintomas, sem levar em conta as causas psicodinâmicas.
A introdução da MBE e do DSM pode ser vista como uma substituição da avaliação clínica tradicional, que privilegia o caso a caso e a experiência clínica, pela lógica da avaliação e do protocolo. No protocolo o diagnóstico e terapêutica são sustentados em trabalhos científicos onde os resultados são medidos pela estatística e podem ser reproduzidos em outros experimentos semelhantes. As estatísticas estão no campo da matemática, da mensuração e do cálculo. A validade dessa substituição ocorre, pois existe uma equivalência (MILLER; MILNER, 2006, p. 4) entre os dois processos, entre a clínica do caso a caso e a mensuração/cálculo. A equivalência se dá por ambas produzirem um conhecimento sobre a condição apresentada pelo paciente, estão ambas na esfera do saber. No entanto, mesmo que exista a equivalência entre a prática do caso a caso e aquilo que é medido ou calculável, é um equívoco considerar que elas pertençam ao mesmo campo.
A prática da avaliação, que é realizada a partir de protocolos, vem do campo da administração, que não é o mesmo campo da clínica. A “clínica do DSM”, que propõe uma psiquiatria que se sustenta na quantificação e qualificação dos sintomas, que passam a definir os diagnósticos e tratamentos, sem levar em consideração os aspectos subjetivos daquele que sofre e que demanda alívio de sua condição, está ainda mais radicalmente inserida no campo da avaliação e dos protocolos. O DSM desconhece a causalidade psíquica além do que ela estabelece como uma origem cerebral para as doenças psiquiátricas. A MBE (GUYATT et al., 1992 p. 2421) ainda propõe que se considere a fisiopatologia no desenvolvimento das doenças, embora acentue que ela não deve mais sustentar os diagnósticos e terapêuticas médicas.
Para os médicos, as novas formas de produção de conhecimento na medicina se constituem em um grande desafio, pois são novos discursos que diferem da prática médica precedente. Se, na clínica tradicional, encontramos a valorização do raciocínio clínico e da experiência de cada médico que se responsabiliza pelo atendimento ao paciente, a MBE propõe que o mestre, tomado no lugar de autoridade clínica, como aquele que detém um conhecimento sustentado em sua experiência, seja deixado de lado. Para a MBE (GUYATT et al., 1992, p.2421), ao contrário da clínica tradicional, “o novo paradigma coloca bem menos valor na autoridade”. Os sintomas são avaliados a partir das evidências recolhidas no atendimento, e as respostas devem ser buscadas nos trabalhos científicos. Os trabalhos científicos que sustentam seus resultados no campo da avaliação estatística dos resultados. Essa mensuração da eficácia dos procedimentos, seja de forma qualitativa ou quantitativa, não leva em conta a experiência dos clínicos.
A introdução da lógica da MBE do DSM ocorreu em paralelo ao declínio da prática da clínica do caso a caso e associada ao avanço das tecnologias diagnósticas e terapêuticas sustentadas na ciência. Para Leguil (2011, p. 40), o declínio da clínica não decorre do fato de que os terapeutas, médicos, psicólogos não tocam mais o corpo do paciente. Esse declínio, verificado nas múltiplas tecnologias que substituem o raciocínio clínico, é decorrente do fato de que o corpo que desapareceu da clínica é o corpo do clínico.
A consequência se faz sentir na transferência nos novos tratamentos. O mestre em questão não é mais sustentado pela experiência dos clínicos, o mestre contemporâneo que é dotado da suposição de saber passa a ser o protocolo de avaliação, que pode ser encontrado rapidamente nos mecanismos de busca da internet. A ausência do corpo do médico modifica a transferência nos tratamentos que se efetivam.
Leguil (2011, p.40) constata que foi alcançado o ideal do DSM foi alcançado ao conseguir substituir a experiência acumulada dos clínicos e psiquiatras pelos protocolos de avaliação clínica. A sagacidade e a intuição dos clínicos não são mais levadas em conta na prática orientada pelos protocolos. É o sonho de fazer uma clínica sem transferência, em que também não há responsabilização do médico, tudo é confiado às mãos do Outro. Esse Outro é o Outro da avaliação, que pretende ocupar o lugar do saber universitário todo, pretensão que frequentemente utiliza a estratégia da intimidação (MILLER; MILNER, 2006, p. 17). Se, de um lado, os protocolos de tratamento colocam o médico ausente da relação terapêutica com o paciente, a posição que o médico passa a ocupar diante desse Outro todo é a de um “empregado da empresa universal da produtividade” (LACAN, 2001, p.14)
Ainda se pode apontar outras consequências para a clínica, à medida que a MBE (LAURENT, 2010) e a clínica do DSM passaram a orientar os tratamentos médicos. A escolha pela verificação científica das evidências resulta na redução da influência da intuição e da sagacidade do clínico na condução dos tratamentos. Outra consequência é a preferência por abordagens e tratamentos mais simples, em detrimento dos tratamentos mais complexos e que podem abranger muitos outros aspectos, como os elementos sociais, psíquicos e subjetivos, que não podem ser mensurados. Verifica-se, ainda, que a adesão aos protocolos limita as escolhas e as adaptações que podem ser feitas pelo clínico. Essas escolhas e adaptações são feitas mesmo que sua eficácia não possa ser sustentada pelas melhores evidências científicas e se sustentam na experiência. Finalmente, é importante ressaltar que os protocolos de avaliação levam também à produção de uma burocracia que é dedicada a sua manutenção e difusão.
Tendo circunscrito os elementos que marcam o trabalho do clínico na medicina contemporânea, passo a considerar qual poderia ser a contribuição possível da psicanálise nesse debate.
Incialmente é necessário distinguir o que é próprio da posição do médico e do analista. Podemos diferenciar o sintoma para o médico e para o psicanalista. Seja na estruturação de um sintoma endereçado à análise, na construção de uma fantasia, ou ao permitir que o paciente se movimente de acordo com as vicissitudes próprias do inconsciente, o analista coloca o sujeito em primeiro plano. Já a medicina é a prática que busca o alívio ou a desaparição dos sintomas e, para isso, lança mão dos recursos disponíveis pela ciência, em especial, da medicação, o que é a principal arma terapêutica do médico e do psiquiatra.
Um exemplo a considerar é a angústia. Laurent (2005, p. 29) aponta que, se a medicina se caracteriza pela eliminação dos sintomas, a questão de desangustiar ou não é própria da psicanálise. A psicanálise não defende a desculpabilização do sujeito por causas humanitárias, como é próprio da medicina. Laurent (2005, p.30) ainda exemplifica algumas possibilidades no tratamento analítico da angústia, seja com o sujeito angustiado com a presença do sintoma, ou com a angústia fixada pela fantasia, ou, ainda, com a angústia que não pode ser circunscrita nem pelo sintoma nem na construção da fantasia. Ao comentar o tratamento analítico de um sujeito psicótico, Laurent (2005, p.39) afirma que o analista pode ocupar um lugar que favorecerá a estabilização do sujeito psicótico, na medida em que o analista “se encontra no lugar de um parceiro-sintoma”. Esse lugar a ser ocupado é orientado a partir da transferência dirigida ao analista no tratamento.
Ao considerar o trabalho realizado pela medicina com o olhar da psicanálise, Lacan (1966/2001, p.10) faz uma advertência aos médicos, em relação à demanda de cura. Quando um paciente procura o médico, ele “não espera pura e simplesmente a cura”, na verdade, “ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente”, o que pode implicar que o paciente está “preso à ideia de conservar sua condição de doente” (LACAN, 1966/2001, p.10).
Em relação ao corpo, as tecnologias científicas de diagnóstico e tratamento se esforçam para apagar o que Lacan chamou de falha epistemo-somática, em que o saber sobre o corpo encontra limites que o próprio corpo lhe impõe. A parafernália tecnológica fotografa, mede, cifra o corpo de cada doente, o que, no entanto, não permite escutar os murmúrios do sujeito no atendimento. Ainda em relação ao corpo, sede da queixa do sujeito, o que existe, de verdade, sobre o gozo pode ser apresentado àquele que escuta: “o corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (LACAN, 1966/2001, p.11).
São essas as duas balizas que o médico dispõe para sustentar sua posição, em primeiro lugar, a demanda do doente, em segundo lugar, o gozo do corpo.
Para Lacan, a posição possível para o médico consiste em encontrar uma resposta a esse desafio do paciente na demanda. Em uma intervenção em um congresso de psiquiatria, Lacan (1972) aponta que, se o médico se dispõe a escutar o paciente, ele pode “realmente ter tudo que quer, os atos falhos, os balbucios, as fraquezas incríveis, as confissões que são raramente recolhidas”. Esse trabalho de escuta se sustenta no “interior dessa relação firme” entre o médico e a demanda do doente (LACAN, 1966/2001, p.14). Essa trilha permite ao médico conduzir o paciente a voltar-se para o lado oposto das ideias que emite ao fazer a demanda. Nesse novo caminho o sujeito produz na fala os significantes que revelam o que se esconde por trás da demanda. Nesse campo, trata-se da relação do sujeito com o gozo do corpo. Está aí a possibilidade de produzir aquilo que, para Lacan, é a forma do médico manter a originalidade de sua prática.
Seria possível dizer que uma clínica que se orienta pela subjetividade, que pode se ater ao modo de resposta à demanda e ao gozo do corpo, pode encontrar saídas opostas aquelas propostas pela MBE e pelo DSM. Para Laurent (2010, p. 263) essas saídas incluem a possibilidade de considerar a subjetividade, ao aceitar que os casos podem necessitar de intervenções mais complexas que a medicação, ao integrar a sagacidade e a intuição clínica, ao rejeitar os protocolos e os tratamentos que não admitem as adaptações individuais, ao valorizar os ditos e valores dos doentes, ao fazer disso material de seu trabalho e ao recusar a uniformização proposta pela burocracia institucional.