FRANÇOIS ANSERMET
Poderia-se definir a família como uma instituição feita para tratar a diferença dos sexos e das gerações. Baseado nessas diferenças, ela é, ao mesmo tempo, uma construção artificial que vela o real que essas diferenças indicam. Ela é, portanto, fundamentalmente desnaturada, sempre para além dos fatos biológicos sobre os quais ela repousa, mudando de forma antes que se tenha tempo de entendê-la, mas permanecendo como uma necessidade – o que revelam, por exemplo, seus dispositivos contemporâneos, como no caso de casais homossexuais e transexuais e seu desejo, por vezes militante, de adotar ou mesmo conceber crianças.
A família fornece, em seu seio, procriação e genealogia. É preciso, no entanto, compreender bem que procriação e genealogia são dois registros radicalmente heterogêneos. Mas a fascinação contemporânea pela causalidade natural quer superpô-los a todo preço – inclusive com um recurso cada vez mais frequente aos testes de paternidade, tornados disponíveis para todos em caso de dúvida súbita, sob a forma de kits comandáveis pela internet. As cerdas de uma escova de dentes ou um pequeno resto sobre uma colher de sobremesa são suficientes para saber de onde vem ou se sua criança vem mesmo de si.
O parentesco biológico é assim frequentemente evocado, com veemência, para negar aquilo que se teceu no fio das identificações e da história – como se nada houvesse se passado desde o nascimento! É o caso, em se tratando da inseminação com doador (IAD – insémination avec donneur), quando se convoca a genética no lugar da história, ou seja, o doador de esperma no lugar do pai, como se ele pudesse se apagar diante do espermatozoide. É também o caso no que concerne à adoção, com os famosos pais ditos biológicos. Geração e adoção são efetivamente duas visões concorrentes do parentesco. Existem, inclusive, casos limites em que a adoção foi vista como um “a mais” em relação ao parentesco por geração, como nos Mbaya-Guaicuru citados por Lévi-Strauss nos Tristes trópicos (1955, p. 260):
“Esta sociedade se mostrava muito adversa aos sentimentos que nós consideramos como naturais; assim ela experimentava um forte nojo pela procriação. O aborto e o infanticídio eram praticados de maneira quase normal, e a perpetuação do grupo se efetuava bem mais por adoção que por geração, um dos alvos principais das expedições guerreiras sendo o de encontrar crianças. Assim calcula-se, no começo do século XIX, que no máximo 10% dos membros de um grupo guaicuru lhe pertencia por laços de sangue.”
[1]Vertigens biotecnológicas
É preciso admitir que os universos subjetivos, simbólicos e imaginários da sexualidade, da procriação, da gestação, do nascimento e da filiação são fundamentalmente sem relação entre si, a não ser pelo fato de estarem às voltas com o real impensável da origem, com as suplências inventadas por cada um para compensar as disjunções – entre elas, a criança – que reconduzem mais ao real que à origem. É assim que, em análise, pode-se, por vezes, levantar o véu que recobre esse real e distinguir, a propósito do que concerne à família, a vertente do semblante da vertente do gozo, este último sendo, definitivamente, o avesso da família.
Na clínica só podemos nos orientar a partir de uma concepção desnaturalizada da estrutura familiar. É o que revelam, de maneira explícita, as procriações justamente chamadas artificiais, quando elas utilizam paradoxalmente a natureza como um artífice – mostrando, pela defasagem que elas implicam, aquilo sobre o qual repousa toda procriação.
As procriações medicamente assistidas (PMAs) revelam o diferencial sexual curto-circuitando-o. Elas desvelam também o âmbito do diferencial geracional congelando o tempo através da crioconservação, que comporta o potencial, senão a possibilidade de saltar gerações.
Seja como for, as PMAs forçam-nos a pensar a procriação da qual não temos habitualmente representação. Temos uma data de nascimento, não uma data de procriação. Elas obrigam a pensar o impensável, a representar o irrepresentável. Nisso, as PMAs são uma falsa resposta a uma verdadeira questão, a uma questão impossível, aquela da origem e da procriação. Está aí a fonte principal das vertigens que induzem as biotecnologias, que apontam justamente o real em torno do qual giram os laços familiares.
No buraco do impossível, tudo vem submergir, em particular as teorias sexuais infantis próprias a cada um dos pais, que têm a característica de contornar o sexo, como nas biotecnologias da procriação. É nesse ponto que, finalmente, somos todos nascidos fantasmaticamente de PMA! Mas é preciso também reconhecer que as PMAs podem acrescentar à realidade modos de fazer inéditos, ao ponto de tornar a natureza artificial, na medida da fantasia de cada um. Brevemente, tudo será possível: até procriar a partir de células-tronco, podendo ser transformadas seja em espermatozoide, seja em óvulo – isso ainda é experimental –, com a perspectiva, melhor ainda que pela clonagem, de se tornar filho de si mesmo, como Galaad para Lancelot.
As PMAs, dissociando a sexualidade da procriação e a procriação da gestação, deixam finalmente às únicas referências simbólicas – aquelas da diferença dos sexos e das gerações – a possibilidade de construir uma filiação, instalando, ao mesmo tempo e de maneira inesperada, as referências próprias à psicanálise sobre o que está no centro da cena. Esse é um efeito paradoxal das vertigens biotecnológicas que se trata de destacar.
O avesso da biografia
A biografia não é redutível à história, inclusive aquela da procriação. Como indica Lacan (2006a, p. 332), o que determina a biografia é inicialmente “a maneira pela qual se apresentaram os desejos do pai e da mãe”, quer dizer, o modo “como eles efetivamente ofereceram ao sujeito o saber, o gozo e o objeto a”[2].
É disso que a criança deve advir, ela que faz sua entrada no mundo no lugar de objeto a – “aborto do que foi, para aqueles que a engendraram, causa do desejo” (LACAN, 1991, p. 207)[3]. Ela deve advir como sujeito a partir desse estatuto de objeto, para vir “se substituir à hiância que se designa no impasse da relação sexual” (Idem, 2006a, p. 347)[4]: essa é uma marca particularmente forte na clínica das PMA.
Eu poderia citar o caso desse casal que quer dizer a seus filhos, nascidos de esperma doado, a verdade sobre sua origem. A mãe me fala do pai biológico. O pai se retrai. Por que falar do pai biológico e não de doador de esperma? O que é um pai? O que é um espermatozoide? O que é um doador de esperma? Eles retornam para repensar no fato de dizer mais do que na maneira de dizer… A mãe me fala de sua fantasia: se as crianças desejarem um dia encontrar o doador de esperma – as duas crianças são do mesmo doador depois de uma única inseminação –, ela será perturbada a ponto de ser tomada de paixão por esse homem… Afirmação que a surpreende a ponto de deixar a questão momentaneamente em suspenso.
Eu poderia também evocar o caso de Pierre-Marie, que não para de perguntar “onde está papai?”. Pierre-Marie tem três anos. Sua mãe é uma mulher que concebeu essa criança sozinha, de maneira artificial por FIV (fecundação in vitro) em Boston, com doação de esperma. Ela queria oferecer fantasmaticamente essa criança à sua mãe, que teve que dá-la, no seu nascimento, à sua própria mãe e não podia mais ter filhos, em consequência de complicações ginecológicas consecutivas à gravidez.
Pierre-Marie veio de um doador de esperma americano, definido pela ficha do banco de esperma californiano como de origem francesa e alemã – o que representa alguma coisa na história dessa mulher – mas também cherokee (etnia indígena norte-americana), tendo como principal qualidade o otimismo, como principal defeito a procrastinação e como livro preferido: The power of one. Eis que ela volta para a Suíça, grávida, depois de uma FIV que lhe deixa ainda um zigoto à disposição, crioconservado em Boston.
Ela deu à luz, sem problemas, uma criança que se desenvolverá normalmente, mas a inquietando – inquietante estranheza – ainda mais depois do dia em que ele começa a falar e não para de invocar o pai: Quem é papai? Onde está papai? Questões reiteradas que deixam a mãe completamente desprovida, sem voz. Tais questões tornam-se progressivamente, para Pierre-Marie, a principal via para agredir sua mãe.
Depois de uma aventura, ao modo de Wim Wenders, através dos Estados Unidos para encontrar os traços do doador, de centros de PMA aos bancos de esperma, ela acaba por fazer um novo implante do zigoto crioconservado que restou – dessa vez, sem sucesso. Da árvore genealógica conhecida à árvore genealógica suposta, tudo isso não cessará até que ela aceite meu dizer, endereçado a ela e a seu filho, de que a única resposta a essa questão é que não há resposta. Essa intervenção traz uma pacificação na relação com o filho e uma melhora sintomática quase imediata para a criança.
Em resumo, é a partir de um lugar já estabelecido e de decisões já tomadas que a criança terá que fazer suas próprias escolhas para ir além de seu estatuto de objeto, além dos modos de gozo dos quais ela descende.
O que ele inventa, então, o separa para além daquilo que o determina, segundo um desejo que lhe é próprio, que emerge das respostas através das quais ele se constitui, qualquer que seja o modo de procriação ou os modos de gozo dos quais ele advém.
A morte na procriação
Pode-se então observar o gozo como uma primeira versão desse avesso da procriação. Mas o avesso da procriação é também a morte, com o estatuto nem vivo nem morto dos embriões crioconservados em suspenso no nitrogênio líquido a -196 graus. É uma espécie de avesso de Senhor Waldemar, de Edgar Allan Poe, que queria manter-se por hipnose entre a vida e a morte no momento de morrer. Aqui, ao contrário, é no momento de emergência da vida que o futuro é congelado. Novas formas de demanda se articulam concernindo os embriões e os gametas crioconservados: assim, uma mulher gostaria de congelar seus óvulos no momento de aceitar um emprego importante que lhe tomará todo seu tempo, para dispor deles quando sua carreira estiver estabelecida. É também instituída hoje a oferta de separar e crioconservar os espermatozoides, ou, mais recentemente, os óvulos, quando um tratamento oncológico ofereça risco de esterilidade – esses gametas podem inclusive sobreviver àqueles de quem eles provém. Encontramos as mesmas questões com os embriões que se acumulam nos laboratórios. Daí uma nova lei na Suíça que obriga a tomar uma decisão após cinco anos de crioconservação – ou se implanta o embrião, ou se o destrói – escolha impossível para a maior parte.
Temos então uma clínica nova nutrida de enunciados inéditos, testemunhando sobre o estranho estatuto dado às crianças vindas dos zigotos crioconservados entre procriação e gestação, como essa mãe que, no final da consulta, diz para seu filho: “Vem, meu pequeno Findus, está na hora!”[5]. Ou essa outra que fala de seu filho como seu “pequeno congelado”. Qualquer que seja seu modo, toda procriação visa a parte imortal no vivente mortal, para retomar a expressão de Sócrates referindo-se às proposições de Diotima no Banquete de Platão. Para que procriar tenha seu sentido pleno, como o enuncia Lacan: “É preciso ainda, que nos dois sexos, haja apreensão, relação com a experiência da morte” (1981, p. 330)[6]. É esse avesso da procriação que o projeto de clonagem rejeita, como os delírios de procriação dos psicóticos, com a perspectiva prometida de poder se recriar idêntico a si, portanto, eterno – o que é impossível, pois o clone será de toda maneira outro independente daquele de onde ele vem, devido à existência do Outro e do sujeito, ele mesmo.
Pós-criação
Isso nos leva a uma terceira versão do avesso da procriação, para além do gozo e da morte: aquela da criação, onde o sujeito realiza para além de sua procriação.
Se a procriação realiza uma suplência à não relação sexual, uma conexão para além da disjunção entre o gozo e o Outro, entre o homem e a mulher, o avesso da procriação se apoia sobre uma parte de intransmissível que oferece, paradoxalmente, ao sujeito, o espaço de criação, de uma “pós-criação” para retomar uma formulação de Joyce em Ulisses (1995, p. 442)[7], que dá sua versão do avesso da procriação como criação para além do que foi procriado.
De todo modo, a partir de acasos que empurram para a direita ou para a esquerda, o sujeito vai se fazer um destino (LACAN, 2006b, p.162)[8] que ele recompõe a posteriori. A grande lei do universo é, com efeito, a contingência. Tudo depende do imprevisto, do encontro. Como o enuncia Lacan (1998, p.18), “Vocês surgiram desta coisa fabulosa, totalmente impossível, que é a linhagem geradora. Vocês nasceram de duas células que não tinham nenhuma razão para se conjugar, se não fosse por esta espécie de maluquice que se convencionou chamar de amor.”[9] De qualquer modo, o sujeito é fundamentalmente disjunto de seu modo de procriação. Qualquer que seja a técnica pela qual a criança nasceu, nada pode resolver para o sujeito o enigma de sua vinda ao mundo. Só lhe resta se inventar, encontrar suas próprias respostas – e, por que não, também, por meio de uma análise – desorganizando e reorganizando diferentemente o que estava no seu nascimento para além do que presidiu sua concepção.