DOMINIQUE LAURENT
CAO GUIMARAES
A tese da inexistência do Outro, sustentada por Jacques-Alain Miller em 1996, em seu seminário, inaugura, dizia ele: “a época lacaniana da psicanálise”, aquela “da errância, aquela dos Nomes-do-Pai (non-dupes errent), aquela daqueles que são mais ou menos tolos (dupes) do pai, mais ou menos tolos (dupes) do Outro”[1].
Dizer que o Outro da civilização contemporânea não existe é dizer que os ideais, enquanto tudo, são inconsistentes. Friedrich Nietzsche, ao escrever, em A Gaia Ciência, que “Deus está morto”, já não colocava essa questão? Houve, entretanto, ideais que tiveram uma vida dura e puderam consolidar, de modo decisivo, a função paterna, um dos sustentadores do título de Outro. Isso é tão verdadeiro que, na psicanálise, “o reinado do Nome-do-Pai [pôde aparecer] como o significante de que o Outro existe”[2]. Esse reinado aparente foi uma etapa no caminho da sua desconstrução e da sua pluralização no equívoco dos Nomes do Pai (non-dupes errent). Os ideais, mergulhados na inconsistência, não encontram seu ponto de capiton. Não há mais necessidade de alguém para encarná-lo. A crença no pai não está menos presente. Ela simplesmente tornou-se louca.
Crença e loucura
Desde então a função paterna se apresenta no avesso do mestre, sob a forma rebaixada do escravo. Ela sustenta a crença louca naquele que trabalharia por todos, para assegurar a satisfação dos seus desejos, consagrando-lhes um amor igual. O verdadeiro Outro ao qual se recorre como garantia é o Outro do direito. Esse Outro do discurso jurídico deve garantir a distribuição do gozo que a civilização oferece a partir dos semblantes. Ela indica àquele que encarna a função de pai como se comportar, mas autoriza e reconhece, de maneira inédita, estilos de vida antes condenados. O direito aos gozos não normatizados pelo pai induziu os movimentos de reivindicação e luta das mulheres, dos gays e lésbicas em registros diversos, cujo último, depois do casamento para todos, diz respeito ao direito dos homossexuais de conceber uma criança por PMA[3].
Essa perspectiva deixa em suspenso a questão do desejo para além do pai. O bom uso da função do significante mestre é o de encarnar um desejo humanizado que não esteja fora da lei. O discurso do direito, assegurando a promoção do direito à diferença pelo viés dos comunitarismos, tem como correlato uma pacificação da relação do sujeito ao gozo? Dito de outro modo, a identificação a um significante mestre permite um saber-fazer com o gozo? O gozo não é todo absorvido na prática sexual; o sintoma é a prova mesmo de que o parceiro sexual é, eventualmente, o parceiro sintoma do sujeito.
A norma neurótica, construída sob a lei do pai, prevaleceu por muito tempo. Como Lacan fazia ouvir em “Os complexos familiares” (LACAN, 2003), a neurose é, sob vários aspectos, um efeito de perspectiva captado numa relatividade sociológica na qual prevalece a família paternalista. É a falsa evidência que se impôs num momento da história do patriarcado. Sem dúvida, Lacan falava de um momento terminado. Mas a norma neurótica não é a lei, como sublinhou Michel Foucault em Vigiar e punir. A lei simbólica não recobre o campo das normas. As normas se dizem no plural. Elas proliferam, são tagarelas. A lei se diz no singular. Ela pode, para Lacan, reduzir-se aos ‘mandamentos da palavra’, segundo o Decálogo, que se deduz da enunciação do Deus-dizer. As normas sociais são também aquelas majoritariamente representadas por um estilo de vida. O estilo de vida é o estilo de conflito entre as exigências da civilização e o modo de se viver a pulsão. As normas majoritárias admitem suas minorias, suas margens. Nesse sentido, a quase norma neurótica não está sozinha. Ela coexiste com o estilo de vida das novas parentalidades aparelhadas pelas concepções assistidas, o estilo de vida dos homossexuais ou transexuais, casados ou não, encarregados de uma família ou não. O combate de emancipação feminista frente à ordem simbólica tradicional, substituído pela noção de gênero na tentativa de absorver a diferença homem/mulher, dá lugar também a outros estilos de vida, inclusive os queer, que, confrontados com uma fuga de identificações, se arranjam com modos de gozar cada vez mais singulares.
Passamos de uma sociedade centrada no pai para uma sociedade do parceiro sintoma; melhor dizendo, do parceiro gozo.
Do patriarcado ao parceiro gozo
Essa passagem precisou renovar as ficções jurídicas do casal na sua composição e recomposição, da mesma forma que as da parentalidade. Mais ainda, fomos confrontados com uma nova erótica do divino, marcada pelo fundamentalismo, o retorno pelo artifício às núpcias funestas da pulsão de morte com a impossível identificação primordial ao pai. A época do fundamentalismo não pode ser interpretada como um retorno a um regime pacificador do pai. Trata-se de uma nova figura da crença que pode ser examinada como um novo regime, bem mais próximo da psicose enquanto vontade louca de Deus. Os Deuses de Schreber estão aí para testemunhar isso. Essas normas estão em competição no mercado de estilos de vida. O valor social atribuído a uma ou outra varia segundo o preço estabelecido pela civilização para o ideal e o objeto a. Mas não deixa de ser verdade que a neurose histérica e a neurose obsessiva, que, sublinhemos, não existem mais na classificação do DSM V, resistem na sua forma de religião privada, na singularidade de seus sintomas. Por quanto tempo? Em todo caso, é inútil crer que elas ainda sejam a norma.
Os tipos de sintoma e as exigências de gozo
Lacan apreendeu o sintoma na sua dimensão singular, quer dizer, a partir do sentido e do gozo em jogo para cada sujeito. Nesse sentido, o sintoma está sempre fora da norma, uma vez que reenvia sempre ao um por um. Essa perspectiva do sintoma, no entanto, é correlativa de outra, a do sintoma captado pela estrutura. Na “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” (LACAN, 2003), Lacan coloca a questão dos tipos de sintoma como a clínica os havia isolado antes da psicanálise, em relação à particularidade do sintoma. Como dar conta de uma certa validade de seus tipos, como a fobia, a obsessão ou a conversão histérica e, poderíamos acrescentar, a psicose? Esses tipos clínicos não dependem do nominalismo da contingência, mas do realismo da estrutura. Há tipos de sintomas porque a estrutura, furada, inscreve um certo número de restos típicos do encontro do gozo com o Outro. Poderíamos dizer que os sintomas são, então, identificáveis pela “exigência de gozo”. A Zwangsneurose deve ser generalizada para além do que a neurose obsessiva permite perceber.
Essa questão do gozo está no primeiro plano do caso freudiano do Homem dos lobos, o inclassificável por excelência. J.-A. Miller, em 1985, lhe consagrou todo um seminário de DEA[4]. Foi com esse caso que Freud introduziu, pela primeira vez, o termo Verwerfung, de rejeição a propósito da castração, que se fazia acompanhar, ao mesmo tempo, por um reconhecimento da castração. Para Lacan, como nota J.-A. Miller, o problema teórico pode ser colocado desta forma: “como formular a coexistência da Verwerfung com o reconhecimento da realidade?” (MILLER, 2009, p. 82). J.-A. Miller situa primeiro a etapa que constitui o isolamento da Verwerfung, que ele chama de foraclusão como mecanismo simbólico (LACAN, 1998, p. 394). A noção de Verwerfung “supõe que haja um elemento de linguagem significante – e não um sentido – que está subtraído do circuito”. É um elemento “que só faz sentir seus efeitos por sua ausência e que mobiliza muitas significações ao seu redor, sem que essas significações cheguem a se juntar ao próprio significante” (MILLER, 2009, p. 86). A foraclusão da castração no Homem dos Lobos vai aparecer erraticamente e encontrar um meio de se manifestar na alucinação do dedo cortado. Essa Verwerfung da castração não recoloca em causa toda a ordem simbólica. A problemática do caso “não parece se centrar sobre a assunção […] da função paterna, mas sobre a da castração” (MILLER, 2009, p. 91). A foraclusão do Nome-do-Pai só aparecerá em 1956, com a “Questão preliminar …”. A partir desse texto, a relação de causalidade introduzida entre o pai e a castração abre uma grande questão clínica. Se a metáfora paterna garante a significação fálica, o inverso é verdadeiro? A elisão da significação fálica implica uma foraclusão do Nome-do-Pai?
Da mesma maneira, as relações entre o pai da realidade e sua função de ser o suporte do Nome-do-Pai são questionadas. O pai pode permanecer coordenado à angústia de castração e aparecer assim em sua versão catastrófica. O início da doença do Homem dos Lobos e a sequência de seus sintomas colocam em primeiro plano não a função paterna, mas a função fálica. Desde que um menos avança em direção ao falo imaginário, quer seja sua gonorreia aos dezoito anos ou as figuras do pai imaginário marcadas por um menos, o sujeito fica desestabilizado. É isso que faz com que J.-A. Miller diga que tudo se passa “como se o falo imaginário tivesse uma função de Nome-do-Pai” (2009, p. 110).
A paranoia e a clínica universal do delírio
A tese da foraclusão generalizada introduzida no seminário de DEA não abole as classificações psicopatológicas. Ela as subverte: a foraclusão generalizada vem pontuar o fato de que o real do gozo nunca é inteiramente absorvido pela mortificação significante e que, no que diz respeito a isso, a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada. Lacan chega a considerar que, ali onde está o gozo, e não apenas o gozo-sentido (joui-sens) fálico, é a língua, em seu conjunto, que se encarrega dele. A metaforização do gozo na língua se dá com a ajuda de elementos que não são mais Nomes-do-Pai. Esses elementos que se fixam dependem do sinthome e asseguram uma articulação entre uma operação significante e o gozo, articulação ligada ao corpo. A perspectiva do sinthome tem como desafio não a criação de novas categorias clínicas, mas a procura, em cada caso, da singularidade da distribuição do real, do simbólico e do imaginário.
O conceito de sinthome constituiu um avanço considerável para apreender uma clínica complicada, “inclassificável”, aquela do que se chama, desde a Conversação de Arcachon, de psicose ordinária. Para além do binarismo rígido neurose/psicose, o acento colocado por Lacan sobre o impacto do dizer sobre o corpo antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho radicaliza a paranoia constitutiva do sujeito. “A psicose paranoica e a personalidade (…) é a mesma coisa” (LACAN, 2007, p. 52). Lacan havia, desde o estádio do espelho, mostrado a paranoia constitutiva do sujeito no seu imaginário em relação ao outro e elaborado os diferentes tratamentos da paranoia constitutiva. Chega a concluir, com a teoria dos nós, que a psicose paranoica consiste no fato de o sujeito enodar-se em três, numa continuidade, o imaginário, o simbólico e o real. Esses três nós têm uma única e mesma consistência. Cada um desses registros contém o germe da paranoia fundamental. No registro imaginário, é a paranoia constitutiva do sujeito desde o estádio do espelho. No registro simbólico, “o sujeito então, ele não fala. Isso fala dele e é aí que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 849). No registro real, o traumatismo do gozo é a marca do significante que falta e que tem como matema S ().
O impacto do dizer sobre o corpo, antes de qualquer entrada em jogo do olhar no estádio do espelho, provém do troumatisme. Ele é apreendido a partir do furo (trou), da borda que une o corpo e o laço da linguagem. Esse troumatisme pode ser qualificado como alucinação generalizada no sentido em que o corpo percebe a linguagem exterior, como o que faz furo com seu impacto irremediável de gozo. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo a uma nova definição do sintoma. Não é mais o sintoma como metáfora, mas acontecimento de corpo, emergência de gozo. J.-A. Miller chamou de “clínica universal do delírio, aquela que toma seu ponto de partida disto, de que todos os nossos discursos são apenas defesas contra o real” (1993, p. 7). A fórmula “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” (LACAN, 2010, p. 31) reenvia à “extensão da categoria da loucura a todos os seres falantes que sofrem da mesma carência de saber no que diz respeito à sexualidade” (MILLER, 2014, p. 22). Isso perturba as diferenças feitas, até então, entre neurose e psicose.
Para concluir, não é excessivo dizer que, com o declínio do Nome-do-Pai, o discurso do neurótico, para se defender do real, não é mais a norma, mesmo se ainda haja pais e mães em torno dos quais o discurso se agarra mais ou menos. Os conceitos do último ensino de Lacan são, quanto a isso, fundamentais para compreender os desafios clínicos para além de uma taxonomia fixa.
Tradução: Ana Helena Souza
Revisão: Letícia Soares
Referências
AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, out. 1999.
LACAN, J., “Os complexos familiares e a formação do indivíduo”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J., “Posição do inconsciente”, In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 849.
LACAN, J., “Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes!”, Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, São Paulo, 2010, p. 31-32.
LACAN. J., O seminário, livro XXIII: o sinthoma, (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MILLER, J-A., “L’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 72, nov. 2009.
MILLER. J-A., “Clinique ironique”, La Cause Freudienne, 23, fev. 1993, p. 7.
MILLER. J-A., “Um Real para século XXI”, O real no século XXI – Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. Scilicet. Belo Horizonte: Scriptum e Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.
[1] MILLER J.A., “L’Autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique”, ensino pronunciado na cadeira do departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, aula de 20 nov. 1996, inédito.
[2] Ibidem.
[3] Em francês, PMA: Procréation Médicalement Assistée [N.T.].
[4] Cf. AFLALO, A., “Réévaluation du cas de l’Homme aux loups”, La Cause Freudienne, 43, octobre 1999, p. 85-117.