Fabiana Peralva Lima
Psicóloga da rede de
Saúde Mental de Belo Horizonte e Betim
faperalvalima@gmail.com
Jacques-Alain Miller, propõe em 1998 uma nova forma de pensar a clínica das psicoses. Do binarismo neurose/psicose, pelo qual Freud e o estruturalismo da primeira clínica lacaniana se guiavam, Miller avança trazendo outras orientações com o auxílio das elaborações da segunda clínica de Lacan que, na perspectiva da lógica borromeana, respalda a ideia da constituição da realidade psíquica a partir das amarrações dos registros Real, Simbólico e Imaginário.
Se antes o diagnóstico estrutural possuía definições e contornos bem delimitados sob a referência do Nome-do-Pai enquanto ausência ou presença desse significante fundamental, na segunda clínica lacaniana esses contornos já não são tão precisos e a pluralização dos Nomes-do-Pai tornou-se uma importante baliza na orientação do tratamento.
Conversações clínicas pautadas em casos que apresentavam, para o analista, dificuldades e limitações na definição diagnóstica apontavam para algo novo na clínica psicanalítica. Casos em que não se reconheciam sinais claros de uma neurose e nem tampouco sinais positivos e evidentes de psicose, como alucinações e delírios, faziam ruído à época. Foram três valiosos encontros na França cujas elaborações culminaram na definição do termo “psicose ordinária”, em oposição às psicoses extraordinárias e clássicas nas suas apresentações.
Em 1996, Miller proporcionou o Conciliábulo de Angers sobre o tema “Enigma e Surpresas nas Psicoses”. Em 1997, na Conversação de Arcachon, o debate sobre os casos raros e inclassificáveis e, em 1998, lança, na Convenção de Antibes, o conceito de psicose ordinária, uma construção teórica a partir da prática clínica.
Diferentemente das categorias clássicas determinadas nos manuais de psiquiatria, o termo “psicose ordinária” não pretende ser uma nova categoria nosológica rígida e bem definida. Além disso, exige uma escuta atenta do analista para os sinais e indícios discretos que se manifestam de forma insidiosa e gradativa. É a clínica da tonalidade, dos detalhes, das invenções e da singularidade (MILLER, 2012, p. 422). Novas formas de desencadeamento, novos fenômenos corporais e novas formas de transferências são também identificadas, impactando um novo olhar sobre a direção do tratamento. A atenção aos arranjos singulares do sujeito como defesa contra a desordem do Real e do gozo tornam-se mais relevantes.
Miller (2012), em seu texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, informa que não criou um conceito e nem um novo diagnóstico, mas sim uma noção, um significante dentro do campo vasto das psicoses, com possibilidade de construção no transcorrer dos tempos. Além disso, adverte sobre o cuidado e o perigo para que o termo não se torne “um asilo para ignorância” (MILLER, 2012, p 412-413): “Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno deste significante (MILLER, 2012, p. 401).
Sérgio de Campos (2022) em seu livro Investigações lacanianas das psicoses: As psicoses ordinárias, relata que a psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão até que se defina o tipo clínico da psicose em questão. Considera que não se trata rigidamente de uma psicose não desencadeada e nem de uma pré-psicose. A utilidade clínica em reconhecer um caso de psicose ordinária seria identificar e preservar as amarrações do sujeito que evitaram o desencadeamento da doença no sentido mais positivo do termo.
E quando suspeitar de um caso de psicose ordinária? Miller elabora alguns indícios no que se refere a relação do sujeito no campo social, corporal e subjetivo.
Lacan (1955-56/1998, p. 565) evoca, no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, a célebre frase sobre “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”, e Miller (2012) se utiliza dela para caracterizar um indício presente na psicose ordinária. E acrescenta: “A desordem se situa na maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com as próprias ideias” (MILLER, 2012, p. 411).
A afinidade de um estado melancólico às psicoses ordinárias no sentido do sentimento de vida do sujeito é tratada no texto “A junção íntima do sentimento de vida”, de Sophie Marret-Maleval. Ela cita autores como Miller e Jean-Claude Maleval e considera o estado pré-melancólico como uma “bússola diagnóstica preciosa da psicose ordinária” (MARRET-MALEVAL, 2017, p. 4), uma vez que também se manifestam sob índices discretos e podem, através da superidentificação a uma norma social, indicar uma forma de suplência de uma psicose ordinária, evitando o desencadeamento psicótico.
Miller traz a ideia de uma tripla externalidade. A externalidade social se refere à relação do sujeito com sua realidade social. Quando essa identificação social é negativa, há um desenquadre em sua função social por um desligamento gradativo e progressivo em relação ao Outro social. Nota-se um empobrecimento dos laços sociais e afetivos, ocasionando um prejuízo das trocas simbólicas com o mundo. O sujeito não consegue se estabelecer satisfatoriamente no trabalho, nas relações com a família e com amigos. Há também casos de identificação social positiva, ou superidentificação, quando há um investimento rígido e intenso em sua posição social, por exemplo, um trabalho, apropriando-se de uma identificação imaginária como forma de suplência.
Na externalidade corporal, nota-se um estranhamento em relação ao corpo, o Outro corporal. Em algum momento, algo do corpo se desfaz, torna-se alheio e faz-se necessário que o sujeito recorra a artifícios, grampos para apropriar-se do próprio corpo. Os sintomas e as nomeações podem ser suporte na construção de um corpo.
A externalidade subjetiva evoca uma experiência de vazio, de um estado melancólico, de uma identificação real com o objeto enquanto dejeto. Há grande dificuldade de subjetivar a existência e significantizar o gozo.
A perspectiva das novas formas de desencadeamentos, de conversão e de transferência são também orientadores na identificação e direção do tratamento na psicose ordinária, sob os nomes de neodesencadeamento, neoconversão e neotransferência.
Os desencadeamentos clássicos se dão de forma abrupta a partir do encontro com Um pai, cujo efeito, em função da foraclusão do significante do Nome-do-Pai que inscreve a castração simbólica, é a impossibilidade de responder provocando um furo. Com isso, irrompem os fenômenos psicóticos, como as alucinações auditivas, as produções delirantes e os fenômenos de linguagem. Lacan (1955-56/1998, p. 584), em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, destaca:
Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.
É a falta do Nome-do-pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabiliza na metáfora delirante. […]
É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’.
A noção de neodesencadeamento propõe um avanço na maneira de interpretar o desencadeamento que está mais associada ao desligamento do sujeito com o Outro proveniente do desenodamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Os novos desencadeamentos não apontam para o surgimento de sintomas produtivos, mas de fenômenos sutis, discretos, plurais e dispersos. Conforme afirma Sérgio de Campos (2022, p. 143), “emergem como descarrilamentos íntimos, desconexões entre o eu, o corpo e a pulsão”. Trata-se de desencadeamentos mais referidos à ausência da significação fálica, sendo esta o significante do sexo e da vida.
A partir do conceito de conversão como um sintoma inscrito no corpo com caráter decifrável, Miller (2012) cria a noção de neoconversão para caracterizar os fenômenos corporais em cena nas psicoses ordinárias. A neoconversão inscreve o gozo no corpo impossível de significar, portanto indecifrável e não articulado a um saber, provocando um sentimento de vacuidade. Diante disso, é necessário que o sujeito encontre saídas para constituir um corpo através de próteses que podem ser objetos, tatuagens, dimorfismos corporais, sintomas e outros.
As neotransferências são novas formas de pensar a relação entre o analista e o paciente no contexto da segunda clínica lacaniana. Se, no conceito de transferência, no que tange às neuroses, o analista é um suposto saber do inconsciente, e, nas psicoses, o saber está do lado do sujeito psicótico, na neotransferência é proposto uma posição diferente do analista, uma transferência apoiada em lalíngua. Lalíngua é o furo e a raiz da linguagem, lugar esvaziado do sentido e aquém da articulação simbólica. Trata-se de um traumatismo resultante do encontro com a linguagem. Desta forma, é necessário que o analista aprenda a ler essa língua indecifrável do sujeito e se habilite em saber fazer com o que é exposto. Da sua posição de nada saber através de um vínculo frouxo com o paciente, o analista tem a função de limitar o gozo invasivo do Outro, descompletando-o, além de favorecer a amarração dos três registros.
E, por fim, é importante destacar a relação da contemporaneidade com a psicose ordinária. Na sociedade hipermoderna, em decorrência do enfraquecimento do Nome-do-Pai, testemunhamos a falência dos ideais e de um significante-mestre na sua função organizadora. Se, antes, a existência da função mítica do Pai, enquanto exceção à castração, propiciava a consistência de um conjunto de todos sujeitos castrados, hoje vivemos a era da multiplicidade, das variadas formas de gozo e do enxame de significantes-mestre, levando à necessidade de avanços nas elaborações teóricas. Sob a perspectiva topológica borromeana, talvez possamos inferir sobre uma invasão do Imaginário sobre o Simbólico devido a uma inconsistência de referenciais simbólicos na modernidade. A pluralização dos Nomes-do-Pai vem como um novo paradigma e é nesse contexto que surge o termo psicose ordinária. Diante disso, os casos se apresentam de forma ordinária levando a considerar os indícios singulares dos sintomas e dos modos de gozo, além da multiplicidade de suplências que funcionam como se fossem um Nome-do-Pai.