FABIÁN A. NAPARSTEK
Psicanalista, AME da EOL/AMP
fabiannaparstek@hotmail.com
Resumo: Neste artigo Fabián Naparstek parte de uma referência a Cervantes e Borges para, com as indicações de Lacan, abordar o laço entre psicanálise e política. Desse modo, o autor faz uma leitura da política envolvida no laço entre os analistas, na direção do tratamento, assim como na própria posição do analista no mundo, marcando uma orientação que vai contra os processos de segregação, propondo uma estratégia que segue, a cada época, uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro.
Palavras-chave: psicanálise; política; sintoma; segregação.
Psychoanalysis and Politics
Abstract: In this essay, Fabián Naparstek makes reference to Cervantes and Borges in order to discuss the link between psychoanalysis and politics. The author comments on the politics involved in the bond between analysts, in the direction of treatment, as well as in the analyst’s own position in the world, marking an orientation that goes against segregation, proposing a strategy that has in mind the singular of the symptom that is not without the other.
Keywords: psychoanalysis; politics; symptom; segregation.
“Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face
do mundo. Sua tarefa persiste. Se nossas previsões não
estiverem erradas, daqui a cem anos alguém descobrirá
os cem tomos da segunda enciclopédia de Tlön. Então,
desapareceram do planeta o inglês, o francês e o mero
espanhol. O mundo será Tlön”.
(BORGES, 1940, p. 435, tradução nossa)
A leitura e a política
O engenhoso fidalgo Don Quixote de La Mancha passou da leitura para a cidade real. Isso o levou a pelejar contra os moinhos de vento.
Borges, por sua vez, pensava que a leitura poderia mudar o mundo. O borgeano, se é que isso existe, é a capacidade de ler tudo como ficção e acreditar no seu poder. Definitivamente, o mundo Tlön, de Borges, é a ilusão de um universo criado pela leitura e que depende dela. Lê-se o real perturbado e contaminado pela ficção. Uma ficção que tem consequências. Por sua vez, J.-A. Miller comparava esse mundo borgeano com a leitura de Jacques Lacan. Com efeito, Lacan dedicou uma vida a se colocar diante de seus alunos — os que o seguiam — fazendo uma leitura pública do retorno ao Freud. Uma leitura que supõe uma posição política e que tenta produzir consequências. Produziu para ele próprio, já que ousou ir mais além do pai e de Freud.
Três citações
Partirei de três indicações de Lacan para abordar o laço entre psicanálise e política. Em primeiro lugar, J. Lacan falava sobre a “falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos do Homem” (LACAN, 1985, p. 12). Imediatamente acrescentava, que “Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável” (LACAN, 1985, p. 12) e que “Todos sabem que a política consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos, por centenas de milhares” (LACAN, 1985, p. 13). Definição que pode ser estendida ao conceito de política em geral, mas que, nesse caso, se refere aos eventos de excomunhão aos quais Lacan foi submetido pela Associação Internacional de Psicanálise. Sublinha-se o fato de ele próprio ter sido objeto de negociação pelos seus próprios alunos e pacientes.
Em segundo lugar, vou deter-me em uma referência ao texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Ali J. Lacan propôs uma política específica na realização dos tratamentos. Destaca, em primeira instância, a impotência de sustentar uma práxis quando ela se reduz ao “exercício de um poder” (LACAN, 1998, p. 592). Com efeito, toma a perspectiva do lugar do analista e de suas dificuldades.
Por fim, fornece mais uma indicação que, surpreendentemente, remete “ao dever que lhe compete em nosso mundo” (LACAN, 2003, p. 235). Na verdade, essas são as perspectivas que J.-A. Miller (1999) apontou no início de seu seminário sobre a Política Lacaniana nos anos de 1997 e 1998.
A política do tratamento
Em relação ao tratamento, a política tem um lugar central na discussão da época. Em vez da suposta neutralidade do analista, Lacan se opõe propondo na psicanálise uma política bem determinada, na qual o analista é tudo, menos livre. É menos livre na tática e na estratégia. Existe apenas UMA política! Por outro lado, a referência à política no tratamento centra-se na ação que emana de sua falta a ser, e não de seu ser. De fato, como assinala J. Lacan, o analista “é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (LACAN, 1998, p. 593-594). Vale a pena mencionar aqui, como disse J.-A. Miller, que tal ação é o antecedente do que será mais tarde o ato analítico e que esse ato terá algo de não natural. É por isso que, para Lacan, o problema central não será que haja analisandos, mas que haja um analista. De fato, “a reprodução dos sintomas já não constitui um problema, mas somente a reprodução dos analistas; a dos pacientes está resolvida” (LACAN, 1998, p. 630).
A política e os analistas
Quanto ao laço entre os analistas, Lacan subverte o tipo de estrutura de associação possível e os modos de obtenção de títulos entre eles. A invenção dos dispositivos lacanianos — entende-se pela Escola, o cartel, o dispositivo do passe, etc. — perturba a tendência natural ao encontro dos analistas como grupo de ajuda mútua para o exercício de poder. De fato, vale ressaltar que a invenção de dispositivos é para forçar algo que vai contra uma tendência natural ao poder e à manutenção do vínculo libidinal entre iguais. A Escola e seus dispositivos, na política de Lacan, visam acolher o diferente, colocar o analista como um desconhecido, um de cada vez, e a uma elaboração coletiva a partir da heterogeneidade das singularidades. Uma política na qual “tudo é da ordem do analítico” (MILLER, 2016, p. 12).
A política da psicanálise no mundo
Finalmente, nos referimos ao aspecto da psicanálise e dos analistas no mundo. Como já foi apontado, J. Lacan atribui um dever ao analista no mundo. Aqui também não se trata da neutralidade. A referência não é tanto que o analista participe como cidadão (algo que não lhe é proibido obviamente), mas que ele possa introduzir algo a partir da perspectiva analítica. A questão é sobre o que a psicanálise pode fazer valer a partir de sua própria orientação. Se a política em geral responde ao discurso do mestre na medida em que tenta introduzir a captura do sujeito por um significante mestre, a posição da psicanálise visa destituir o sujeito desse significante para que ele possa contribuir com o que nele há de singular.
- Lacan (2003, p. 560) nos fala do direito ao sintoma. Surge daí uma política que visa a desidentificação para que cada sujeito possa contribuir a partir de sua perspectiva mais singular, de sua “luz interior”, como coloca S. Weil (2021). De fato, percebe-se que qualquer política que vise sustentar identificações necessariamente leva à segregação. Questão que foi de grande preocupação para J. Lacan em diferentes momentos de seu ensino. Os efeitos de uma segregação que, em seu extremo, leva ao extermínio do diferente.
A proposição
Na “Proposta de 9 de outubro de 1967…”, J. Lacan apresenta sua preocupação com a segregação e sua ligação com os campos de concentração.
Quando fala sobre isso, ele nos diz que:
“(…) o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação” (LACAN, 2003, p. 263).
Nesse parágrafo, ele não apenas aborda a questão extrema dos campos de concentração como um evento recente, mas também anuncia que isso pode acontecer novamente no futuro. A análise política da questão é realmente uma revelação chocante. No ano de 1967, na época das grandes liberdades na Europa Ocidental e após o suposto aprendizado que os horrores da Segunda Grande Guerra poderiam ter acarretado, J. Lacan antecipa novas segregações. Na verdade, coloca os Naziz como precursores do que está por vir. Pode-se indicar que foram precursores do modo gueto, onde se separa o diferente e marca uma época já há algum tempo. Os agrupamentos sociais que se reorganizam podem ser vislumbrados nas diferentes formas de bairros, mais ou menos fechados, que servem para que cada um viva ao lado daqueles que assumem desfrutar do mesmo que si mesmos. Sua indicação aponta que, quanto maior a universalização da ciência — o que hoje chamamos de globalização —, maiores serão os efeitos da segregação.
O mais surpreendente é que essa indicação é feita na “Proposição” do dispositivo do passe. Quero dizer que, onde ele introduz sua política ou sua concepção do final da análise, assim como sua política de Escola para a seleção de analistas, é também o momento em que ele introduz essa análise de seu tempo e do que está por vir. Nesse texto encontramos articulados os três aspectos da política para J. Lacan: em torno da direção do tratamento, do laço entre os analistas e do analista na pólis. Assim, pode-se inferir que o problema da ação do analista ou do ato do analista será central na articulação entre política e psicanálise no que diz respeito aos três aspectos que focalizamos.
Lacan e o tempo
Nesse ponto, vale situar que Lacan pensa em seu tempo e faz a dedução do porvir. J.-A. Miller faz um desenvolvimento muito preciso do que podemos entender por tempo em J. Lacan. Lá ele aponta que se trata da “realidade transindividual do sujeito” (MILLER, 2021, p. 21, tradução nossa) em um dado momento no tempo. Miller indica que “o exemplo memorável que todos conhecem e lembram, mesmo que não sejam lacanianos, é o dos três prisioneiros. São três indivíduos, mas estão presos um ao outro, o que constitui uma subjetividade, uma subjetividade prisioneira, como um prisioneiro de seu próprio tempo” (MILLER, 2021, p. 22, tradução nossa).
Em 1944, J.-P. Sartre escreveu a sua famosa peça Entre quatro paredes (2008), na qual se mostrava que o inferno são os outros. A Segunda Guerra Mundial ainda não havia acabado, assim como Paris também não havia sido libertada, e Sartre colocou na mesa o problema do confinamento e dos outros. A obra mostrava uma única cena contrária a qualquer possibilidade de pensar um lugar diferente. De fato, J. Lacan (1998, p. 197) argumenta com Sartre — propondo exatamente o contrário —, pois para ele não há saída para o sujeito a não ser com o Outro.
Vale notar que Lacan tenta ler, como outro prisioneiro de seu tempo, as variáveis que determinam nossa posição e que nos dão a possibilidade de pensar uma estratégia específica a partir da dedução de nossa posição a cada momento. Uma estratégia que segue uma política do sintoma singular, mas não sem o Outro. A era atual gera novos significantes aos quais o indivíduo pode se identificar gerando novos modos de segregação, e veremos se a psicanálise estará à altura da tarefa de contrapor esses novos modos de segregação a partir de seus dispositivos e de uma política que permita desidentificar e colocar no horizonte o fato de que não há solução total (final) que permita evitar totalmente o sofrimento.
Por fim, pode-se concluir que em Lacan há um “realismo” (MILLER, J-A., 1999, p. 9-12) em sua concepção de política. É um realismo que se opõe a qualquer idealismo segregativo. O uso dos significantes mestres, que se apresentam de maneira diferente em cada época, pode levar, em cada ocasião, a novos modos de segregação. Assim, a atual pressão por uma identidade que ofereça a ilusão da eliminação do sofrimento coloca os analistas diante do dever de ecoar que a saída é, para cada sujeito, no singular e que nenhuma identidade pode resolver o mal-estar na cultura.
Prosseguimos com uma advertência de J. Lacan no sentido de que:
“(…) O fato de o sintoma instituir a ordem pela qual se confirma nossa política — foi esse o passo que ela deu — implica, por outro lado, que tudo o que se articula dessa ordem é passível de interpretação. Por isso é que tem toda razão quem põe a psicanálise à frente da política. E poderia não ser nada fácil, para o que da política fez boa figura até aqui, se a psicanalise se revelasse mais esperta” (LACAN, 2009, p. 115).
Seguindo essas indicações, o sintoma, a política e o direito podem ser amarrados em seu laço com a singularidade. Que, finalmente, supõe o direito à interpretação em cada sujeito que decide tomar a palavra frente a uma época que pretende fazer valer os supostos direitos, para eliminar o mal-estar total na identificação à literalidade de uma palavra (MILLER, 2021).
Como dizia Lacan em “A terceira”, embora o real atravesse, “o analista tem por dever combatê-lo” (LACAN, 2015, p. 17, tradução nossa). Ele poderá fazer, em cada caso e em cada momento, a sua leitura e a sua interpretação.