DERICK DAVIDSON SANTOS TEIXEIRA
Professor e psicanalista em formação. Doutorando em Estudos Literários na linha de pesquisa Literatura e Psicanálise pela Universidade Federal de Minas Gerais e aluno do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais | derick.davey@gmail.com
Resumo: No prefácio à edição inglesa do seminário 11, Lacan escreve que “a psicanálise, desde que ex-siste, mudou”. Sabe-se que essa mudança decorre, principalmente, de uma promoção do corpo e da escrita no interior da psicanálise. Da escrita poética chinesa à obra de James Joyce, passando pelo corpo tomado por uma satisfação pulsional que escapa à articulação significante, Lacan reformula a interpretação analítica. O presente texto trata dos desdobramentos da interpretação na fase final do ensino de Lacan. Faremos um breve percurso pelo tema do “moterialismo” e da emergência da letra na psicanálise. Nessa via, elucidamos os efeitos de uma interpretação que não se pauta apenas pelo sentido, mas que faz valer, também, um furo — a realização de um vazio semântico —, um efeito de sentido real.
Palavras-chave: Psicanálise; letra; interpretação; real.
Abstract: In the foreword to the English edition of Seminar 11, Lacan writes that “psychoanalysis has, since it has ex-sisted, changed”. It is known that this change derives mainly from the promotion of the body and of the writing within psychoanalysis. From Chinese poetic writing to the work of James Joyce, passing through the body taken by a drive satisfaction that escapes the signifying articulation, Lacan reformulates analytical interpretation. This text deals with the unfolding of analytical interpretation in the final phase of Lacan’s teaching. We will take a brief journey through the theme of “moterialism” and the emergency of the letter in psychoanalysis. In this perspective, we elucidate the effects of an analytical interpretation that that is not only guided by meaning, but that also makes a hole — the realization of a semantic void — an effect of real meaning.
Keywords: Psychoanalysis; letter; interpretation; real.
Em seu prefácio à edição inglesa do seminário 11, Lacan escreve que a psicanálise, “desde que ex-siste, mudou” (1976 /2003, p. 567). Sabemos que essa mudança implica alguns desdobramentos: do inconsciente transferencial, estruturado como linguagem, passamos ao inconsciente real; da verdade, vamos à varidade; da história, à histoeria[1]. Em suma, de uma primeira clínica mais atenta ao funcionamento simbólico, vamos em direção a uma clínica do real. Este texto pretende abordar, principalmente na fase final do ensino de Lacan, os desdobramentos de seu último ensino que concernem à interpretação.
Em seus primeiros seminários, Lacan dava primazia ao registro simbólico desprendendo as formulações freudianas de seus conteúdos imaginários e reformulando-as a partir da linguística estrutural de Saussure. Pela brevidade desse percurso, uma análise aprofundada do lugar da interpretação no primeiro ensino de Lacan não será possível, no entanto, é plausível dizer que, devido à primazia do simbólico, em seus primeiros seminários, Lacan detém-se, sobretudo, na significação da interpretação: a nomeação do desejo, a sugestão e o ponto de basta como momento em que o significante é amarrado a um significado são exemplos de uma interpretação que opera na via da fala e do sentido. Conforme escreveu Éric Laurent, embora legítimos, os efeitos dessas interpretações, por vezes, demonstram a “contaminação do discurso pelo sono” (2018, p. 61).
A partir do seminário 7, levando sua teoria do desejo em direção ao gozo, Lacan introduz, gradualmente, o registro do real, o qual levará a uma torção na sua teoria e na sua noção de sujeito. Desse momento, é exemplar o dito de Lacan, segundo o qual a psicanálise, na sua ex-sistência, mudou, pois Lacan situará a psicanálise, a um só tempo, dentro e fora de si mesma: dentro enquanto detentora de um saber discursivo sustentado pelo sentido, o que se elabora entre S1 e S2, e fora uma vez que lança um olhar para o avesso do sentido, para os furos, as opacidades semânticas. Surge, nessa perspectiva, a crucial orientação para o real, registro do qual a ex-sistência é a “característica fundamental” — já ao imaginário caberá a consistência e, ao simbólico, o furo (LACAN, 2007, p. 36). Nesse ponto, Lacan passará da primazia de um sujeito que só existe enquanto articulado ao significante a uma noção de sujeito que abarca, também, o corpo tomado por um tipo de satisfação que escapa à articulação dos significantes e aos possíveis sentidos, sendo essa a base da sua última noção de sujeito: o falasser, o qual conjuga o sujeito do inconsciente e o corpo gozante.
Na via do falasser e do corpo falante, há um afastamento da linguística estrutural e uma promoção do escrito, conforme lemos em “Lituraterra”. Conforme escreve Miller, Lacan fez entrar o corpo na psicanálise ao mesmo tempo em que fez entrar “o gozo da escrita” (2015, p. 87). Com efeito, em “Vers un signifiant nouveau”, comentando a interpretação analítica, Lacan retoma o tema da escrita chinesa, abordada em seu seminário 18, para dizer-nos que o significado, embora ressoe com a ajuda do significante, não vai longe. No entanto, segundo Lacan, poderíamos ser “inspirados por qualquer coisa da ordem da poesia para intervir” (1979, p. 16)[2]. Instigado pela escritura chinesa e pela escrita de James Joyce, Lacan visa a uma interpretação que se aproximaria da poesia a partir de um novo uso do significante. A interpretação, aqui, seria duplamente articulada: por um lado, um efeito de sentido e, por outro, um efeito de furo, de esvaziamento, o que a torna, conforme elucida Miller (2009), adequada ao gozo. Nessa via, vemos uma elaboração acerca da interpretação como ato que visa, a partir de um efeito real de sentido, surtir efeitos no corpo. Vejamos, então, como a escrita joyceana, estudada por Lacan, nos ajuda a pensar a interpretação na fase final de seu ensino.
O moterialismo e os efeitos da letra
O leitor de Um retrato do artista quando jovem não poderá deixar de notar uma instigante construção textual logo nos primeiro parágrafos. Ao narrar a infância de Stephen, Joyce modula seu texto: orações curtas, poucas subordinações, ausências de pontuação e vocabulário infantilizado que se aproxima da lalação. É buscando fazer a escrita juntar-se de forma indistinta ao contínuo fluxo da vida, sobretudo no nível da forma, da materialidade do texto, que a escrita se aproxima da infância da personagem. A narrativa segue como se a escrita amadurecesse junto com o corpo que ela quer fazer adentrar a narrativa. No entanto, Joyce não o faz pela simples via do significado, mas, sim, a partir de uma atenção concedida à materialidade do significante. Está anunciado, destarte, o caminho que levará a Finnegans Wake, livro em que o autor busca não mais a construção imagética do sentido, mas seu escoamento devido ao cuidadoso trabalho com a materialidade da palavra.
Em Finnegans Wake, escrevendo “o que há de mais próximo do lapso” (LACAN, 2008, p. 20), Joyce faz neologismos que se apoiam menos na voz que na letra. A análise de qualquer frase de Finnegans Wake nos demandaria muitas linhas; peguemos, então, de uma frase, apenas uma palavra: “to watsch the future of his fates”. “Watsch” é um exemplo das famosas palavras-valise de Joyce. Embora imperceptível na pronúncia, vemos, na grafia, que a palavra “Watch” contém a palavra “Wash” — uma condensação a partir da qual a frase pode se desdobrar, no fio da equivocidade, em, no mínimo, dois significados distintos: “para lavar os traços de seu rosto” (to wash the features of his face) ou “para assistir ao futuro de seu destino”, (to watch the future of his fate).[3] Watsch vem, assim como o conhecido exemplo “familionário” (familiar + milionário), em uma dupla acepção — no entanto, com Joyce, a condensação é clara na materialidade do significante evidenciada pela grafia. O que há de novo? A passagem da voz para a letra expondo uma descontinuidade, um furo, entre som e sentido.
Essa não-relação entre som e sentido que revela um furo entre ambos no mesmo movimento em que nos aponta a materialidade da palavra é retomada por Lacan em “Conferência em Genebra sobre o sintoma” (1975). Sem passar ao largo dos artifícios joyceanos, na conferência, para se referir à materialidade do significante e seus efeitos, Lacan cunha o neologismo “moterialisme”, uma condensação de mot (palavra) e materialisme (materialismo).
O efeito de furo que afasta som e sentido e a materialidade da letra são elaborados, com notável densidade metafórica, em “Lituraterra”, texto que Lacan escreveu após retornar de uma viagem ao Japão. Aqui, ele desdobra o que lhe ocorreu pensar no momento do sobrevoo pela planície siberiana ao observar as ravinas e os traços que o remetiam à escrita. No texto, Lacan repensa a letra não mais como significante, mas como aquilo que, na língua, opera fora do veículo de sentido, o que constitui furo, sendo situada no litoral entre real e simbólico. Em resumo, no texto, as nuvens aparecem como metáfora do semblante, o que constituía forma, em oposição aos riachos e as ravinas, como metáforas da letra que sulca a terra, como a escrita — primeiro “godê a estar sempre pronto a dar acolhida ao gozo, ou, pelo menos, a invocá-lo com seu artifício” (LACAN, 2009, p. 118). Entre um estado e outro há ruptura — furo — figurada no texto através da precipitação: “a escrita é, no real, o ravinamento do significado, aquilo que choveu do semblante como aquilo que constitui o significante” (LACAN, 2009, p. 22). Da nuvem aos riachos e ravinas, algo permanece: “água da linguagem”, conforme a metáfora de Lacan na conferência em Genebra, no entanto, na escrita, o que temos é a água que choveu do semblante, isto é, restos do significante que dava forma — a letra. Lacan encontra um mote em Joyce que “desliza de a letter para a litter”, de uma carta/letra para lixo (LACAN, 2009, p. 106). Se, até então, a letra era suporte do significante, materialidade que transportava significação — letter —, como lemos em “A carta roubada”, de Poe, em “Lituraterra” ela é litter — dejeto, materialidade manipulável.
No que a letra aqui evocada pode concernir à interpretação e ao corpo? Em “Lituraterra”, Lacan tomará a letra como aquilo que constitui um litoral, entre saber e gozo, simbólico e real. A letra é o que faz furo evocando o gozo ao romper o semblante, indo em direção, portanto, à pulsionalidade do corpo. Segundo Laurent, nessa mudança da interpretação, a antiga sugestão dá lugar à jaculação: o “impacto do significante no corpo”, que leva ao “tratamento da disrupção do gozo”, graças à “autoelaboração de uma ficção não-padrão” (2018, on-line). Esse ato convém, sobretudo, à clínica do falasser e do Outro que não existe. A antiga sugestão e seus efeitos de sentido ficam, portanto, ligados a um sujeito suposto saber e à “contaminação do discurso pelo sono” (2018, on-line), contrário a um despertar. A jaculação, segundo Laurent, não é uma enunciação apoiada no imaginário ou no simbólico; é, antes, o efeito de sentido real que visa a “uma realização subjetiva do vazio” (2018, on-line). Essa abordagem da interpretação é consonante, como vemos, com os efeitos da letra e do moterialismo elaborados por Lacan na fase final de seu ensino.
Um psicanalista como artista
Nessa inspiração pelo recurso poético, não se trata de uma exaltação do belo simplesmente, nada de uma estéril estetização da clínica; em relação a isso, Lacan era claro: “não temos nada de belo a dizer” (1979, p. 23)[4]. Tanto no poema quanto no matema, há rigor. Para manipular com o som o silêncio do furo, é preciso, portanto, fineza na tomada da equivocidade inerente à linguagem e uma atenção à materialidade do significante.
A respeito dessa face da interpretação que vemos surgir no último período do ensino de Lacan, há uma cena, a meu ver, exemplar, no conhecido documentário Um encontro com Lacan, de Gerard Miller. Na cena, uma ex-analisanda de Lacan, que viveu os horrores da Segunda Guerra, relata uma interpretação de Lacan que, através de uma escansão, desliza de “Gestapo” para “geste à peau”, de Gestapo para gesto na pele — separando, assim, através da materialidade da letra, som e sentido. Essa interpretação segue a emergência da letra, conforme lemos em “Lituraterra”. Lacan faz um furo, uma descontinuidade: de “Gestapo” a “gest à peau”, da nuvem, do significante como semblante, à letra que dissolve, faz chover, e permite que algo se escreva de outra forma. Se tomarmos a imagem que guia “Lituraterra”, podemos dizer que Lacan faz precipitação, faz chover diluindo o que antes era forma: acordar às três da manhã (o horário em que a Gestapo passava pelas casas à procura dos judeus) se torna, nas palavras da analisanda, “qualquer coisa como um apelo à humanidade”. De um estado ao outro, ela diz, a dor é o que permanece — assim como a água que chove das nuvens permanece nos riachos que ravinam a planície siberiana avistada por Lacan. Furado o semblante, no entanto, ainda que doa, algo se escreve de outra forma — e as águas de um riacho têm mais mobilidade que as águas imóveis nas nuvens.
Um outro exemplo pode ser contemplado no relato de passe de Ana Lucia Lutterbach Holck (2007), em que ela relata uma “interpretação sem sentido do analista” referente a um sonho em que um cão surge defecando um patê: “esse patê é você”, interpretação a partir da qual se dá o corte da sessão produzindo um deslizamento de sentido: “fazer-se ‘patê’ (para ser tida), fazer-se ‘pavê’ (para ser vista), fazer-se ‘pa cumê’ (para ser comida), fazer-se ‘pra tudo’ e finalmente ‘pastout’ (2007, p. 36). Nessa passagem de um todo para o não-todo (pas-tout) do gozo feminino, a palavra também surge como materialidade evidenciando um furo entre som e sentido, desfazendo, assim, o semblante que constituía forma.
Segundo essa reelaboração, a interpretação opera o ravinamento do semblante fazendo com que surja aí algo de real, um gozo tocado, um efeito de despertar, diferente do discurso contaminado pelo sono. Vemos, assim, a palavra tomada tanto como materialidade como aquilo que, tal qual o litoral, entre simbólico e real, possuirá uma face de sentido e uma de furo, um pas-de-sens[5] (passo de sentido e um sem sentido). No último ensino de Lacan, portanto, a interpretação não opera mais somente com os semblantes, com um simbólico impotente em relação ao real, mas, sim, com um simbolicamente real. Nessa via, a palavra se aproxima do corpo através da sua materialidade. É preciso, ainda, escutar — isso é certo —, mas, além da escuta, trata-se de ler o escrito.