MARÍA DE LOS ÁNGELES CÓRDOBA
Psicanalista membro da EOL/AMP |
angelescordoba2@gmail.com
Resumo: A autora faz uma leitura apurada do testemunho de Hilda Doolittle sobre a sua análise com Freud, presente no livro Por amor a Freud, no qual Doolittle se esforça para transmitir algo da experiência desse encontro de maneira vívida. A autora destaca a “atmosfera interpretativa” e o efeito do impacto do gesto e das palavras do analista sobre o corpo da analisante a partir de umas das intervenções freudianas relatadas por Doolittle — uma intervenção de exceção, pouco ortodoxa, que seguiu ressoando por muito tempo após o fim dessa análise.
Palavras-chave: Interpretação, corpo, corpo do analista, gozo.
AN UNORTHODOX INTERVENTION
Abstract: The author makes an accurate reading of Hilda Doolittle’s testimony about her analysis with Freud present in the book For love of Freud, in which Doolittle strives to convey something of the experience of this encounter in a vivid way. The author highlights the “interpretive atmosphere” and the effect of the impact of the analyst’s gesture and words on the analysand’s body, based on one of the Freudian interventions reported by Doolittle — an exceptional intervention, unorthodox, which continued to resonate for a long time, time after the end of this analysis.
Keywords: Interpretation, body, analyst’s body, jouissance.
Se não existisse a substância gozo, seríamos todos lógicos, uma palavra valeria como outra, não haveria nada parecido com palavra justa, a palavra que ilumina, a palavra que fere, somente haveria palavras que demonstram.
Entretanto, as palavras fazem algo muito diferente do que demonstrar, as palavras furam, emocionam, comovem, se inscrevem e são inesquecíveis. (MILLER, 2009, p. 249, tradução nossa).
Hilda Doolittle, em seu livro Por amor a Freud, quer transmitir algo da sua análise com ele. Podemos deduzir, da leitura de seu texto, o esforço para fazer passar algo da experiência desse encontro: “o impacto de uma língua, bem como o impacto de uma impressão, pode se tornar ‘correto’, se tornar ‘estilizado’, perder sua qualidade viva“ (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 33). “Não quero me envolver na sequência histórica rigorosa. Desejo lembrar as impressões, ou antes, desejo que as impressões me lembrem” (Ibid.).
Escolhe começar por uma intervenção cujo eco, cujo impacto sustenta sua vigência intacta por muito tempo após o fim da análise: “O próprio Professor é pouco canônico; ele bate com a mão, com o punho, no alto do encosto do antiquado sofá de crina… (…). O Professor disse: ‘O problema é — sou um homem velho — você não acha que valha a pena me amar’” (Ibid., p. 34).
Pergunto-me de que se trata essa intervenção. Para onde aponta?
Trata-se da tradução de uma verdade inconsciente? É uma via pela qual a própria mensagem retorna ao sujeito de forma invertida? Revela algo do impossível de dizer? Assinala algo do gozo que está ali em jogo na sessão analítica? A que ponto da estrutura se dirige, ao ponto de repetição ou ao de evitação? E a batida (da mão no encosto do sofá)? O que a batida toca? De que batida se trata? E essas palavras, de onde brotam? Por que são inesquecíveis para Hilda Doolittle?
O contexto da intervenção
Interessa-me situar, em relação ao caso e a essa interpretação, o que Miller chama de “atmosfera interpretativa”, ou seja, o meio no qual a interpretação se produz e tem efeitos.
Hilda Doolittle foi analisante de Freud nos anos de 1933 e 1934. Ela introduz a intervenção que nos convoca relatando o que a levou, pela segunda vez, a retornar ao divã do “Professor”: soube do falecimento do analisante com quem cruzava nas escadas do consultório na entrada da sua sessão. “Voltei a Viena para lhe dizer que sinto muito” (Ibid. p. 28). Freud lhe responde: “Você voltou para tomar o lugar dele” (Ibid.), uma interpretação que parece apontar para localizar a posição do sujeito, pois Hilda Doolittle nos diz que ela andava sem rumo naquela época.
Também há algo que antecede as palavras ditas: Hilda Doolittle relata esse dizer de Freud: “Estive pensando sobre o que você disse, sobre não valer a pena amar um homem velho de 77 anos” (Ibid., p. 115). Ela deixou claro que tinha dito que temia que não valesse a pena, ao que ele respondeu com silêncio e um sorriso irônico.
Do efeito da interpretação
“Conscientemente, eu não percebia ter dito alguma coisa que pudesse explicar a explosão do Professor. E enquanto eu girava, encarando-o, minha mente estava distanciada o suficiente para me perguntar se aquilo era alguma ideia dele para acelerar o conteúdo analítico ou redirecionar o fluxo de imagens associadas. (…).
O impacto de suas palavras foi terrível demais — eu simplesmente não senti nada. Não disse nada. O que ele esperava que eu dissesse? Foi exatamente como se o Ser Supremo tivesse martelado com o punho no encosto do divã onde eu estava deitada. Por que, afinal de contas, ele fez aquilo? Ele devia saber tudo, ou não sabia nada. Ele devia saber o que eu sentia. Talvez soubesse, talvez fosse daquilo que se tratasse. Talvez, no fim das contas, fosse apenas um ardil, algo para me chocar, para quebrar alguma coisa em mim de que eu estava parcialmente consciente — algo que não iria, que não deveria ser quebrado. Eu estava ali porque não deveria ser quebrada” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34).
Recorto: primeiro, um efeito de perplexidade “simplesmente não senti nada”, um vazio, o encontro com algo inesperado.
É em um segundo momento que aparecem as primeiras interpretações da analisante, algo o chateou, era para acelerar a análise, um recurso para impressioná-la. Tal como Freud aponta em “Análise terminável e interminável” (1937/1980), o analista torna-se um homem estranho que dirige propostas desagradáveis e isso está em conexão com o choque dos mecanismos de defesa.
Algo que perturba: “O impacto de suas palavras foi terrível demais” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 34). Algo que impacta o corpo e, portanto, tem valor traumático. Por que essas palavras impactaram desse modo? Nessas palavras se fez presente, de modo contundente, o corpo do analista, “ele bateu no meu travesseiro, ou no suporte para cabeça do velho divã (…)” (Ibid., p. 99).
Trata-se do analista-corpo que encarna algo do não simbolizável do gozo? Um impacto que a força a ocupar seu lugar? Ela nos diz que estava bastante afastada, que se recusava a entregar algo, e o efeito quase imediato foi deslizar-se novamente sobre o divã, “sorrateiramente”. A força a ocupar o seu lugar no próprio tempo da sessão.
Uma interpretação que ressoa no corpo, que faz com que essa seja uma intervenção de exceção. É surpreendente o estilo dessa intervenção, Freud acompanha com o corpo, com o golpe no divã, com um tom inédito, o seu dizer.
Chama a atenção a posição, a atitude de Freud como intérprete, tal como Miller assinala em seu texto “La palabra que hiere” (2009/2018). É a maneira que Freud se propõe como parceiro (partenaire) na experiência analítica. Lá onde Hilda Doolittle se evade, se esquiva, não ocupa seu lugar, Freud a faz presente presentificando-se.
E isso tem ressonâncias indeléveis. No começo de seu texto “Escrito na parede” (DOOLITTLE, 1956/2012, p. 26), nos conta o último contato que teve com Freud. Umas pequenas linhas que ele lhe escreveu em agradecimento por umas flores que ela lhe mandou, mas o detalhe é que ela não assinou o cartão. Freud responde: “Sem assinatura. Desconfio que você seja a responsável pelo presente. (…) Em todo caso, afetuosamente” (Ibid., p. 31). Essa correspondência a remete a essa intervenção pouco ortodoxa e aos seus efeitos; Hilda Doolittle continua a ler um aborrecimento (el enojo) na despedida, o eco do impacto daquelas palavras ressoa.
Tradução: Julia Buére
Revisão: Giselle Moreira
Referências:
FREUD, S. (1937/1980). “Análise terminável e interminável”. Ediçăo standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 23, p. 239-287.
MILLER, J.-A. (2009) “La palabra que hiere”. In: Revista Lacaniana de Psicoanálisis, n. 25, año XIII, Buenos Aires: Escuela de la Orientación Lacaniana, 2018. p. 23-26.
MILLER, J.-A. Sutilezas analiticas. Buenos Aires: Paidós, 2009.
DOOLITTLE, H. (1956) Por amor a Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.