SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicóloga e psicanalista praticante. Membro da EBP-MG/AMP. Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e professora da Faculdade de Psicologia PUC-MINAS |
suzanafaleirobarroso@gmail.com
Resumo: O artigo reúne pontos abordados na XXIV Conversação da Seção Clínica do IPSM-MG, em novembro de 2020. Discute o recurso aos dispositivos virtuais para sustentar a prática analítica com crianças durante a quarentena; articula-os aos aspectos da direção do tratamento, o manejo da transferência, o desejo e a presença do analista; aborda algumas vinhetas da clínica do unheimlich a partir dos relatos de crianças e adolescentes em análise e, por fim, verifica como o discurso analítico é aquele que pode acolher os efeitos do encontro com o estranho junto às crianças e adolescentes.
Palavras-chave: crianças em análise; discurso; Skype; desejo do analista; efeitos clínicos do unheimlich
Abstract: This article gathers some points that were raised in in the XXIV Conversation of the Clinical Section of IPSM-MG in November 2020. It discusses the use of virtual devices to sustain the analytical practice with children during quarantine; it articulates them with aspects of treatment direction, transference management, desire and presence of the analyst; addresses some vignettes of the unheimlich clinic through the reports of children and adolescents under analysis, and verifies how the analytical discourse is one that can accommodate the effects, on children and teenagers, of the encounter with the uncanny.
Keywords: children in analysis; Skype; analyst’s desire; clinical effects of the unheimlich.
Na civilização em que o Nome-do-Pai se evapora, os objetos e as imagens pululam e saturam o cenário subjetivo, muitos dizem que o virtual chegou para ficar e acenam, com certo júbilo, para o “novo mundo” pós-pandemia, no qual a virtualidade reinará. A subserviência do falasser à imagem, descrita na conferência de 1974, “A terceira”, parece se impor como destino. A pergunta de Lacan, não tão familiar à realidade dos anos setenta, torna-se inteiramente afinada com nosso tempo. Referindo-se ao futuro da psicanálise e à ciência, Lacan indagava: “As bugigangas, por exemplo, será que realmente tomarão a dianteira? Chegaremos a nos tornar nós mesmos realmente animados pelas bugigangas”? (LACAN, [1974] 2011, p. 34). Podendo alcançar a dignidade de um sintoma, o fato é que os gadgets constituem recurso para o sujeito contemporâneo desamparado do Outro.
Após um ano de pandemia devastadora, a psicanálise se vê às voltas com sua sobrevivência no mundo em que o futuro suposto por Lacan nos anos setenta parece já ter chegado. Podemos dizer que, não fossem os recursos propiciados pelos dispositivos on-line, o discurso analítico teria cedido ao pior.
A psicanálise com crianças se interroga: quais seriam as condições preliminares para atendermos as crianças on-line? Como podemos considerar o manejo da transferência, a presença do analista?
Nosso setting é o discurso analítico
A psicanálise com crianças, enquanto prática de extensão da psicanálise aplicada, fez das mudanças no setting analítico clássico questões de técnica e de política. Os seguidores de Melanie Klein e de Anna Freud protagonizaram esse debate. Anna Freud, como se sabe, realizava sessões na casa das crianças. Ela tinha uma concepção da especificidade da transferência da criança e tinha lá suas estratégias de manejo da transferência negativa. Por exemplo, ela relata uma fantasia de transferência positiva de um menino obsessivo de seis anos como efeito de uma manobra transferencial, ou seja, visitá-lo em sua própria casa e lá permanecer durante seu banho da tarde. A criança lhe disse: “a senhora me visitou no meu banho e da próxima vez que vier vou visitá-la também no seu banho” (FREUD, A. 1971, p. 57). De fato, o que Anna Freud comemorou foi o sonho diurno que a criança teria feito antes de dormir e após sua visita.
A questão atual, sobre a qual a psicanálise com a criança propõe conversar, não é a especificidade da técnica adaptada à criança, tampouco a questão de um novo setting. Esse último foi um problema dos pós-freudianos, um ponto há muito superado, tal como mostram as palavras de J.-A. Miller em Sutilezas analíticas: “o setting é um conceito barroco, que mistura dados de estrutura e dados secundários como o espaço físico, o número de entrevistas, etc. Não se trata, pois de setting, senão de discurso analítico” (MILLER, J.-A. 2011, p. 30–31).
Uma referência importante para esta conversa é a revista La cause du désir, intitulada Internet avec Lacan. Os artigos ali publicados orientam o psicanalista a se servir do on-line na sua prática quando as circunstâncias assim o requerem. No entanto, indicam que não há razões para nos contentarmos com esses recursos, visto que constituem uma limitação do encontro pela subtração do corpo real na virtualidade. Em uma entrevista, Éric Laurent afirma: “é preciso se servir do Skype para em seguida dispensá-lo” (2017, p. 18). Outras vozes se somam a essa.
No artigo “Lembrar a psicanálise”, Gil Caroz discute essa orientação considerando que ela faz eco com o uso do Nome-do-Pai que Lacan propõe após o desvalorizar e o tornar puro semblante: prescindir do Nome-do-pai com a condição de nos servirmos dele.
Skype e outros meios de comunicação à distância, sinthomas da cultura de nosso tempo, podem ser considerados como uma ponte construída sobre a não-relação sexual, com a condição de que se possa, em seguida, prescindir dela, ou seja, com a condição de que uma presença se torne possível em outro momento (MILLER, J.-A. 2011, p. 250).
A conversa por Skype não equivale ao encontro presencial, ela é a sua evocação. O psicanalista acrescenta que, se “admitimos que o real e o gozo são o resultado de um encontro entre o significante e o corpo falante, somos levados a constatar que a presença é indispensável para tocar o real” (CAROZ, G. 2020). Essas pontuações, que levam em conta a dimensão do falasser, traduzem a orientação de Miller em Sutilezas analíticas: “quando pensamos que são todos sujeitos do significante, resulta simples, se faz análise por telefone” (2011, p. 250).
Consonante com essa ideia, cito palavras de M.-H. Brousse:
(…) certamente, os meios oferecidos pela tecnologia permitem, por certo, e até mesmo encorajam, o recurso a uma densa rede de trocas de palavras virtuais, a um banho de imagens e mensagens proliferentes. Não são mais corpos que falam, é um falado sem corpo. É óbvio que é melhor que nada (BROUSSE, M.H. 2020, p. 26).
Servir-se do Skype para prescindir-se dele pode, portanto, ser articulado a dois operadores do discurso psicanalítico, a saber, o desejo do analista e a presença do analista.
Mesmo durante a guerra, que afetava Freud diretamente, a psicanálise não recuou. Lacan, por sua vez, nos transmitiu, particularmente, no seminário 11, como a abertura do inconsciente depende da presença do analista. Ao falar do inconsciente como pulsação sustentada pela causa do desejo, abertura e fechamento, das resistências que fecham essa hiância podendo obstaculizar a análise, diz: “Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud, é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha dessa perda” (LACAN, [1964] 1985, p. 122). É nesse seminário também que Lacan enuncia o desejo do analista como operador maior da psicanálise. Temos, então, dois operadores colocados no manejo da transferência — o desejo do analista e a presença do analista —, com os quais podemos nos orientar no acolhimento das demandas das crianças, de modo singular, em cada caso.
As demandas que vivificam a psicanálise com crianças
A pandemia afetou a vida das famílias e das crianças. Para alguns pais, tem sido causa de angústia desencadeada pela presença excessiva dos corpos confinados. Para outros, de modo surpreendente, a quarentena tem sido causa de descobertas no convívio com os filhos. Verificamos que a demanda das crianças à psicanálise acontece! Cabe ao discurso analítico reinventar seus meios para acolhê-la. Destacamos a demanda para atendimento de crianças na primeira infância, na aurora da entrada no discurso, com sintomas do corpo sem o Outro, a exemplo de agitações, dificuldade para dormir, gritos, agressão ao próprio corpo e ao corpo materno, irrupção de cólera.
Em alguns desses casos, pude verificar que o que estava em jogo era, fundamentalmente, os impasses na constituição do lugar do Outro como intérprete do que se passava com a criança. O temor maior dos pais era de que estivessem diante de uma criança autista. Estariam as crianças de hoje ficando reais demais para o Outro? Ou as funções de interpretação e de transmissão atribuídas ao Outro parental estariam sendo debilitadas pela intervenção do discurso do mestre contemporâneo? Diante disso, nada melhor do que viabilizar que a criança seja falada por seus pais e que o analista opere viabilizando o enlaçamento do infans a seu Outro.
A condição para a constituição do lugar do Outro é a operação de mutação do real em significante, o que requer a tradução do Outro. Sem a mediação do Outro, a criança permanece no estado de tensão, sem contar com a ação do “nebenmensch freudiano”, a saber, o outro da ação específica, que é ação de linguagem. Freud já nos dizia que o desamparo inicial dos seres humanos, que requer justamente o Outro, é “a fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD, 1895/1976, p. 422).
No caso de Paulinho, o jogo do fort-da sob transferência traduziu seu engajamento nas operações de constituição subjetiva. Aos quinze meses de vida, ele buscava, não sem violência, extrair algo do Outro através de repetitivos atos agressivos contra o corpo do Outro materno, além do uso de pouquíssimas palavras e constantes gritos-demanda à espera da ação específica. Após contato virtual com a criança e a família, na presença da analista, Paulinho inaugurou um movimento de ocultação, de ir e vir, que colocou em jogo o recurso ao objeto olhar. Interessando-se pelos brinquedos que lhe foram oferecidos, ele vai ensaiar um afastamento do Outro materno para se envolver com os objetos, não sem um chorinho endereçado, que claramente podia ser lido como “pode o Outro me perder?”. Em seguida, Paulinho se volta para a analista com um significante: “neném”. Assim como o neto de Freud, o menino ilustra, com seu fort-da, como a castração impõe a articulação da linguagem e faz com que uma palavra tenha que se articular a outra para produzir sentido, não sem uma perda de seu valor de gozo autoerótico.
O caso de Paulinho vivifica a psicanálise ao nos remeter ao capítulo de “Além do Princípio do Prazer” (1920) no qual Freud discutiu a observação de seu neto de um ano e meio de idade. Ao situar-se como falasser na linguagem, o infans deve consentir com um primeiro modo de exílio, a saber, a perda da sua simples natureza de um ser vivo. Para se constituir enquanto ser falante, inserido num discurso e num laço social, há que se renunciar ao gozo primitivo do ser em troca da representação pelas palavras do Outro. O exílio inerente à entrada na linguagem implica que o Outro primordial, que transmite a língua e, com ela, a interpretação das necessidades do infans, transmite também um furo, ou um mal-entendido estrutural ligado à própria operação de tradução. A própria equivocidade do significante introduz o mal-entendido no diálogo entre os seres falantes, o mal-entendido próprio da ação específica do Outro.
É bastante significativo o modo de Freud definir esse jogo infantil: “grande realização cultural da criança, a renúncia pulsional (isto é, a renúncia à satisfação pulsional) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar” (FREUD, 1920/1976, p. 27). A observação freudiana é ilustrativa do acesso do falasser ao saber através da incorporação da estrutura da linguagem, segundo a qual a oposição de dois significantes, S1 e S2, inscreve repetidamente a perda do objeto inaugural do sujeito dividido. Trata-se do momento da humanização do desejo, aquele no qual a criança nasce para a linguagem.
“O jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio — a borda do seu berço — isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto” (LACAN, 1964/1985, p. 63). É tomando apoio sobre os objetos da pulsão que a criança salta as fronteiras de seu domínio, seja a com a voz, seja com o olhar, seja com objetos dos quais o sujeito poderá fazer uma causa. É com essa pequena coisa que se destaca do corpo, que o carretel representa, que o ser falante opera a separação: “aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura — onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a auto-mutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva” (LACAN, 1964/1985, p. 63).
Disso decorre a importância de uma clínica do fort-da, isto é, uma clínica das relações do sujeito com o significante e com o objeto, particularmente, ali onde irrompe a angústia de separação junto às crianças na primeira infância. Para algumas crianças, o discurso psicanalítico permite inscrever o S2 a partir do enlaçamento transferencial. Para as famílias confinadas, o fort/da não seria orientador do tratamento da relação da criança ao espaço, ao Outro? Esse jogo não seria operador ali, onde, devido ao confinamento dos corpos, o objeto a pode invadir a cena fantasmática, desconfigurando-a e desencadeando a angústia? Considerando, sobretudo, a criança tomada no autismo do gozo, isto é, crianças sem o Outro, o fort/da pode constituir uma orientação.
Vinhetas da clínica do unheimlich
Falar de uma clínica do unheimlich em tempo de pandemia parece até redundante, visto que estamos cotidianamente expostos aos efeitos do estranho. Tomando como referência a leitura do artigo de Freud “O estranho” (1919), com Lacan, no seminário 10, podemos ordenar os acontecimentos clínicos em jogo no unheimlich. Tal como proposto em Os objetos a na experiência psicanalítica, trata-se de abordar “a relação objeto a-unheimlich” (FURMAN, M. 2008, p. 347).
Os efeitos de unheimlich surgem quando o objeto a, que já estava domesticado, enquadrado pelo cenário da fantasia — e que implica o que não pode ser dito pelo significante, o que carece de imagem especular — faz sua aparição. Essa presença revela o que a preferência pela imagem junto ao falasser costuma esconder. O objeto pulsional, separado do corpo e situado no campo do Outro, retorna ao campo do sujeito fazendo sua aparição ali onde deveria estar a castração. Ocorre então um prejuízo da topologia da extimidade do objeto com relação ao Outro, segundo a qual o objeto é interior e exterior ao Outro, um furo. A perda da extimidade é responsável por uma série de perturbações na relação com o corpo, com o espaço e com o outro, que produzem efeitos de estranheza.
Considerando que o objeto olhar se encontra, de maneira privilegiada, no âmago do campo virtual, recolho algumas vinhetas da clínica do unheimlich para a conversação.
A menina do “coronavista”
No princípio da quarentena, tendo sua análise interrompida, Ana se entristece. Não queria frequentar as aulas on-line. Curiosamente, essa recusa emerge no cenário o mais familiar de Ana, pois, aos 7 anos, ela já tinha seu canal no YouTube e cerca de 4.000 seguidores no Instagram. Nesse canal, ela apresenta receitas para um tipo de intolerância alimentar. Desde bebê, esse sintoma a colocou sob o olhar vigilante da mãe, devido aos riscos das iminentes crises de intoxicação. Na sessão on-line, Ana reclama de não poder sair, ir à escola, ver as amigas. Ela diz: “não aguento mais esse ‘coronavista’”. Para Ana, o olhar tratado pela fantasia e enlaçado ao Ideal do Outro foi uma construção de sua análise. Ao retomar o trabalho, ela segue projetando sua carreira futura ao dizer que se prepara para ser uma influenciadora.
O encontro unheimlich no autismo
Sem a inserção num discurso estabelecido, a realidade é, constantemente, uma inquietante estranheza para os autistas. A linguagem os inquieta e lhes é absolutamente estranha. Vou destacar, no caso de João, onze anos, os impasses de um autista com os encontros virtuais. Apesar da transferência ao lugar de suas sessões, nomeado por João “lar doce lar”, na quarentena, o trabalho sofreu impasses. No primeiro contato no Skype, ele ficou conectado por pouquíssimos minutos, aparelhando-se por meio de outra tela, a da TV, compartilhando um desenho animado. O segundo durou o tempo suficiente para uma pergunta sobre como estavam seus animais, referindo-se aos objetos-duplos que, no consultório, promovem a mediação e a animação de sua fala. Sem os recursos disponíveis antes da quarentena, o encontro virtual suscitou, de início, efeitos de unheimlich. O espelho do autista é unheimlich devido à não extração do objeto olhar e à falta da montagem do circuito da pulsão escópica, o que compromete a relação ao virtual.
Superadas as primeiras dificuldades, João consentiu com as sessões on-line. De maneira surpreendente, ele se serviu do Skype para falar dos seus “segredos”, a saber, histórias do seu “mundo escondido”. Até que, mediante seu pedido, a presença do analista foi reintroduzida.
Conclusão
Nem todo tratamento analítico é possível através dos dispositivos tecnológicos de conexões, visto que o real da psicanálise não é o real da ciência. Mas o encontro analítico é sempre uma possibilidade! O que se escreve mediante a contingência dos encontros se torna decisivo para o manejo do desejo do analista e de sua presença em cada caso. Por fim, verificamos como o discurso analítico é aquele que pode acolher os efeitos do encontro com o estranho junto às crianças e a suas famílias.