Uma experiência de sorte1
Sérgio de Mattos
Psicanalista, A. E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
E-mail: sergioecmattos@hotmail.com
Resumo: O autor traça a diferença entre o começo de uma análise e a entrada em análise visando, nas entrevistas preliminares, o laço entre analista e analisando. A transferência, portanto, é o que leva o sujeito a amar seu inconsciente e, consequentemente, desejar decifrá-lo. Para que um sujeito possa dar continuidade em uma análise é preciso que o analista provoque, logo de início, que é possível experimentar uma mudança para melhor, que é possível mudar sua sorte, seu destino!
Palavras-chave: análise; entrevistas preliminares; entrada; porta; sorte.
A LUCKY EXPERIENCE
Abstract: The author traces the difference between the start of an analysis and the entry into analysis by looking at the bond between analyst and analysand in the preliminary interviews. The transference, therefore, is what leads the subject to love their unconscious and, consequently, to want to decipher it. In order for a subject to be able to continue with an analysis, the analyst needs to show them, right from the start, that it is possible to experience a change for the better, that it is possible to change their fate, their destiny!
Keywords: analysis; preliminary interviews; entry; door; luck
Estou honrado pelo convite de ser o responsável por esta atividade que é a aula inaugural do IPSM-MG. Agradeço em especial à Lilany e à Diretoria pelo convite.
Esta atividade inaugura o começo dos nossos trabalhos do segundo semestre deste ano. Inaugurar e começar são praticamente sinônimos. Entretanto, a palavra “começar” nos remete a uma continuidade, por isso falamos de começar a analisar-se, e não em inaugurar uma análise. Inauguro, assim, o começo das atividades do Instituto com o assunto que ocupará nossa atenção no X ENAPOL, cujo título é “Começar a analisar-se”. Esse título foi escolhido com cuidado pela sua importância clínica. O começo de uma análise planta as sementes do que poderão vir a ser seus frutos. Nesse percurso também haverá ventos, tempestades, muitas podas, sol, as contingências estarão presentes e nada garante a floração e os frutos. Mas, mesmo sem garantias, um bom começo criará as chances de termos um bom resultado. Esse começo é como uma vela que abrimos para o vento levar nossa embarcação. Se a vela estiver fechada, mesmo que o vento sopre não iremos adiante e nem teremos os meios de dirigir nossa embarcação. Desenho então diante de vocês uma paisagem – duas, a do cultivo e a do barco.
Ambas dependem de um procedimento específico, plantar a semente e abrir as velas e atravessam um limiar, algo que não havia passa a acontecer e a fazer uma diferença: uma começa com um movimento, outra com o rebento da semente. A ideia de ultrapassar um limiar é crucial quando tentamos formular o que é começar a analisar-se. É importante, portanto, diferenciar o começo de uma análise, no sentido mais geral, do termo preciso formulado por Lacan, chamado de entrada em análise. Contudo, devemos nos orientar desde o início no sentido de que o começo, em geral, se dá no interior, ou na perspectiva dessa entrada.
Podemos, assim, para explicitar essa diferença, fazer coincidir o começo dos primeiros encontros com o analista, com o que é chamado de entrevistas preliminares, preliminares à entrada propriamente dita. Elas são “pré”, anteriores a esse limiar que constitui uma entrada na experiencia do inconsciente. É bonito ver essa experiência começar a acontecer, experiência que é muitas vezes para o analisante um pouco assustadora: o que assusta é a percepção de não ser dono de si mesmo. De que ele, seus atos e interpretações do mundo são determinados por forças que ele desconhece e que o dominam sem saber.
É interessante pensar para nosso propósito aqui hoje sobre a palavra entre-vista. Freud chamava esse tempo de “ensaio prévio, tratamento de ensaio”, que visava, além de um possível diagnóstico, justamente ligar o paciente ao seu tratamento. Gosto especialmente da palavra escolhida por Lacan: entrevistas. As propriedades do significante, de produzir várias significações, nos dão com esse termo um alvo preciso, porque entrevista é uma palavra que começa com “entre”, como quando se diz: “entre pela porta!”. Ou: “fique entre isso e aquilo”.
Essa palavra, escolhida para designar esse tempo de começo, tem na língua falada por Lacan, o francês, uma ênfase especial, que é o sentido de manter, sustentar, dar continuidade. Trata-se de sustentar, “entre”. Sustentar mutualmente, “entre-tenir”. Mas a palavra recobre também a ideia da instauração de uma ligação, de um lugar de trocas de palavras e linguagens – um espaço potencial de reunião. Nesse caso, uma entrevista visa, através do laço entre analista e analisando – o qual chamamos de transferência –, incidir na instauração de ligações na estrutura subjetiva do analisando. Ao se endereçar a um destinatário, ao analista, o sujeito pode, nas entrevistas, fazer coexistir em si, ligar, conectar, pôr em cadeia, diversas experiencias esparsas, clivadas, apagadas, desvalorizadas que, pelo endereçamento, pelo poder de evocação das palavras, ressonâncias, padrões, encontra, no endereçamento ao destinatário, um terreno favorável para uma certa “reunião”. Engajados em uma entrevista, existe então a oportunidade de ligar diversas partes de uma vida, de uma história, construindo uma experiencia única, que ganha forma nesse encontro. Em nosso caso, trata-se de, nesse encontro, que se sustente algo que possa fazer justamente acontecer uma análise.
Cabe ao analista ajudar a encontrar, e mesmo a provocar, essa entrada na experiência do inconsciente, dar um empurrãozinho, por meio da sua atenção a significantes importantes que possibilitem essas associações e, claro, por meio de suas interpretações.
Lacan e o limiar
Quando perguntaram a Lacan, na Universidade de Yale, sobre como acolhia seus pacientes de acordo com sua teoria e prática, ele respondeu: é uma questão de os fazer entrar pela porta. Da análise ser um limiar, de haver uma verdadeira procura deles. Procura do que é que eles se querem ver livres. De um sintoma.
Podemos deduzir daí que há um lugar na fala do paciente ao qual devemos dar máxima atenção. É preciso colocar nossa atenção ao que levou o sujeito a procurar uma análise, cernir esse ponto de sofrimento, de embaraço, o que não anda bem. Não é sem consequências buscarmos saber também o que aconteceu em um determinado momento que levou à decisão para essa procura. Certamente ali haverá elementos que, naquela circunstância específica, evocaram traumas, repetições e algo insuportável que desencadeou o desejo de tratar.
O que leva a buscar uma análise, hoje, é em parte o mesmo de antes: um embaraço, um sofrimento, alguma coisa que nunca vai bem repetidamente, a “pedra no caminho”, como disse o poeta Drummond. Mas, hoje, o que faz sofrer aparece às vezes logo de entrada como um excesso, uma adicção, uma questão sobre uma inadequação do corpo biológico e a identificação ou não com ele. No fundo, também podemos colocar essas questões dentro do problema dos excessos. A sexualidade humana é sempre excessiva em relação à possibilidade de representar seus modos de satisfação.
Lacan e a porta
De volta ao “entre”: para Lacan, no Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica, a porta é o símbolo por excelência, aquele pelo qual sempre se reconhecerá a passagem de um homem em algum lugar… ao fazer com que se entrecruzem o acesso e a cerca. Lacan (1954-55/1985, p. 377) chama a atenção para a relação entre o acesso e a cerca: uma porta “deve estar aberta [acesso] e depois fechada [cerca], e depois aberta, e depois fechada”.
Um tempo depois, no Seminário 6, Lacan (1958-59/2016, p. 460) retoma sua referência à metáfora da porta, mas introduz, entre o acesso e a cerca, um novo elemento: um lugar entre portas. Tomando como exemplo o caso Richard, tratado por Melaine Klein, ele mostra como esse abre e fecha da porta tem as mesmas características da nossa relação com a cadeia significante e, desse modo, como o comportamento da criança está imerso nessa estrutura desde os primeiros momentos com a analista. Richard responde às intervenções de Klein de modo exemplar: ele vai se pôr entre as duas portas, a porta interna dos consultórios e a porta externa, num espaço escuro. Espanta a Lacan que Klein, que viu tão bem o limite entre o mundo interno, as “trevas interiores”, e o externo, não tenha enxergado o alcance dessa zona intermediária. Zona que não é nem interior, nem exterior, e que se encontra em certas estruturas da aldeia primitiva como zonas baldias, entre a aldeia propriamente dita e a natureza virgem. Zona do no man’s land, onde, nesse caso, o desejo do pequeno sujeito entra em pane tentando pôr-se ao abrigo do desejo do Outro. Podemos ver nessa zona uma antecipação do que vai ser formulado no Seminário 16 como “o lugar do mais ninguém” (LACAN, 1968-69/2008).
O que podem nos ensinar essas passagens sobre o começo de uma análise senão que desde os primeiros encontros é preciso entrar nos jogos dos significantes, ligá-los, torná-los amigos um do outro, para que possam conversar, mas também jogar com essa zona intermediária, essa terra de ninguém? Não será essa a verdadeira terra de uma análise? Esse lugar vazio, fora dos lugares conhecidos, mas que é o suporte de todos os lugares possíveis? É entre os significantes e o buraco, ligados aos embaraços aos sofrimentos do sujeito, que podemos levá-lo a se interessar, a amar seu inconsciente, desejar decifrá-lo, que é o que chamamos de S.s.S?[2]
Esse “entre” é, portanto, muito importante. Se fecharmos demais a porta da cadeia significante, fechando os sentidos, uma análise terá pouca chance de acontecer, podendo inclusive facilmente se transformar em uma psicoterapia. Por outro lado, aberto demais, não haverá chance de que haja um laço entre analisando e analista, inviabilizando a análise.
Psicanálise ou psicoterapia
Nessa altura, cabe notar que toda psicoterapia oferece, de uma maneira ou de outra, um saber pronto, um sentido. No final das contas, o que ela oferta é uma visão do que é um sujeito ou do que é a saúde mental. Em outras palavras, trata-se da oferta de um ideal! Procura-se o desvio da realidade imaginada e, em seguida, a adequação a ela segundo uma visão de mundo. Toda psicoterapia é uma defesa standard contra o real. No começo de uma análise, é muito importante estar atento para que não haja um desvio para a psicoterapia. Respostas terapêuticas precoces certamente fecharão a porta para analisar-se. Na psicanálise, entra-se pela porta do não saber, que de certo modo se reabre a cada sessão. Mas a cada sessão vai-se também construindo um saber singular sobre o sofrimento daquela pessoa, vão se fechando algumas portas que delimitam os problemas, os programas de gozo do ser falante. Abre-se a porta, fecha-se a porta, abre, fecha.
Entramos aqui em um ponto importante do nosso título: “Começar a analisar-se”. O que pode querer dizer nesse título o “se”, do começo? Trata-se de um “si mesmo”? O que se formula nesse “se analisar”?
É preciso aí não perder o fio da meada concernente ao que somos como efeito de saber. E, como efeito de saber, somos cindidos. No fantasma $<> a, é como se fossemos causa de nós mesmos, como se houvesse um si mesmo que dirige o barco da fantasia. Mas, na verdade, isso seria mais próximo da Nau dos Loucos. Nessa perspectiva, já no começo da experiência trata-se (se estivermos diante de uma neurose, é claro) de interrogarmos esse delírio de identidade, essa crença de ser si mesmo. Porque não existe um si mesmo, o que há é um ser dividido, já que um significante não pode representar a si mesmo. Quando Lacan diz que é preciso definir o significante como aquilo que representa um sujeito para outro significante, isso significa que ninguém saberá nada dele, exceto o outro significante. E o outro significante não tem cabeça, é um significante.
Como é que alguma coisa desse sujeito, que é produzido por um significante para se apagar prontamente em outro, pode se constituir e, no fim, fazer-se tomar por um si mesmo, por uma consciência de si, por algo que se satisfaz por ser idêntico a si mesmo? É justamente isso que se trata de examinar logo, porque é justamente aí que há um “entre”, entre os significantes. O sujeito, seja qual for a forma em que se produza em sua presença, não pode reunir-se em seu representante de significante sem que se produza, na identidade, uma perda, propriamente chamada de objeto a.
Quero chamar a atenção de vocês para isso que encontrei no Seminário 16, De um Outro ao outro. Encontrei Lacan deslocar a ênfase dada aos significantes (significante qualquer, significante da transferência…) em 67, na ”Proposição de 9 de outubro”, para o que ele chamou na ocasião de agalma, esse elemento libidinal em jogo na máquina significante e que é, digamos assim, a energia para fazer o algoritmo funcionar. A importância de passagem é deslocar esse elemento libidinal já para o começo dos tratamentos. Na “Proposição”, podemos dizer que nos encontramos com o agalma no final, a partir de Um Outro ao outro, ele está na partida. Ele é, nos diz Lacan, um dos limites em torno dos quais se articula o vínculo da manutenção da referência ao sujeito suposto saber, como o chamamos na transferência, com esse índice da necessidade repetitiva que decorre daí, que é, logicamente, o objeto pequeno a.
Nesse sentido, qualquer análise começa interrogando esse delírio do eu, delírio de ser idêntico a si mesmo, para conduzir por um caminho no qual o sujeito é um objeto, um resto que se repete incessante entre os significantes, resto de toda tentativa de representação. Salto desesperado em algo de ordem libidinal e que, mesmo ao preço de se apagar, agarra em algo que tem uma fixidez de gozo. Essa dimensão de gozo, localizada em pedaços que chamamos de objeto a, são muito relevantes no momento que vivemos, quando o que encontramos não são sujeitos cheios de palavras e busca de sentido, mas, ao contrário, atolados no gozo e no consumo de todo tipo de objetos ofertados pelo mercado. Jacques Lacan chama o objeto a de “objeto intragável”. Não haveria aí uma boa indicação clínica para esses casos, que parecem estar com o objeto entupindo suas gargantas, impedindo-os de falar? Não seria esse um dos efeitos das condições discursivas regidas hoje pela ciência, enquanto serve ao mercado e a dominância do consumo, que esse objeto esteja, como nunca, atolando o sujeito?
Nessa perspectiva, uma análise segundo Miller começa com um interesse e paixão por objetos brilhantes, que logo se tornam invisíveis, desvanecendo-se, apagando esse fulgor, tornando-se algo duro, como um osso e com o qual nada a mais a fazer – a não ser separar-se dele, digo eu. Tal condensação libidinal cada vez mais compacta é o objeto da construção do fantasma. Se o objeto está desde o princípio, em potência pelo menos, se ele é causa da divisão subjetiva e da pergunta ao Outro sobre o que sou para ele como objeto de valor e de desejo, essa é a verdadeira natureza do laço. A fundamental natureza do laço com o Outro é a do laço entre o sujeito dividido e o objeto a, ou seja, a articulação mesma que constitui o fantasma fundamental de cada um. E então é com isso que dirigimos uma cura.
Do saber ao gozo
Não vou retomar aqui em detalhes a primeira sessão de minha primeira análise (a primeira daquelas duas que me levaram ao final). Já falei bastante sobre isso em meu testemunho (que deve sair publicado na próxima edição da revista Opção Lacaniana). Lembro apenas que, em poucos minutos do encontro com o analista, fui do completo desespero de receber uma “porta na cara” – quando, ao responder sua pergunta sobre o que eu havia produzido de saber em uma análise anterior lhe digo que sabia qual era o desejo de minha mãe, ele vocifera: “se você sabe qual o desejo de sua mãe, uma análise não pode fazer nada por você” – para o oposto: uma porta aberta. O analista, com um pequeno sorriso, me levou até a porta do seu consultório e, com uma mão em meu ombro, marcou a próxima consulta. Lembro ainda que, na noite que precedeu essa sessão, sonhei com a morte de minha mãe, em um cenário de representações que me levou a recordar uma cena traumática infantil, nunca lembrada. Tratava-se de uma cena traumática em que, diante de um episódio de ameaça de autoextermínio de minha mãe, me vejo diante de uma porta fechada, perco os sentidos e apago. É possível ver aí como nesse primeiro encontro com o analista se abriu a dimensão de um gozo mortífero que havia ocupado toda a minha existência. Perturbou fortemente a minha defesa constituída por um saber (“sei tapar o buraco da mãe, digamos assim, vamos entupir logo aquela garganta e a minha também” – fiz, aliás, uma anorexia infantil) e, com essa intervenção, fez cintilar o que eu só pude verificar muitos anos depois, de modo condensado e como “diretor” de minha existência: a presença do objeto nada, como objeto prevalente no meu fantasma, ou seja, do padrão constante de meu laço com o Outro.
Do tempo e da sorte de analisar-se
Quero terminar com um último assunto. É, digamos assim, uma consideração especial à dimensão inventiva e criadora, a qual, como psicanalistas, estamos convidados a responder mesmo no começo de cada experiência que conduzimos. Como acabou meu tempo, vou trazer as coordenadas principais do assunto.
Uma análise começa com um encontro e continua com encontros até seu final. Lacan gostava de usar a expressão francesa “au petit bonheur, la chance”, para falar desse encontro. Essa é uma expressão usada quando se faz algo ao acaso, esperando que, com sorte, vá dar certo. O curioso aí, o crucial, o gênio, é que o analista pode ajudar a encontrar a boa sorte, tornar o encontro mais feliz ali e na vida do analisante.
Esse encontro casual, acidental, era o que Lacan (1964/1988) chamava, no Seminário 11, de tiquê, categoria aristotélica para pensar as causas. Há na contingência, sob uma forma ou outra, o fato de que duas coisas se encontram, “alguma coisa faz um encontro; alguma coisa que poderia não ter feito um encontro, faz um encontro; o que é em geral acompanhado de um espanto” (EBERSOLT, 2021, p. 143). No jogo da contingência, nos interessa particularmente como Aristóteles concebia “a contingência que não parecia contingência” (EBERSOLT, 2021, p. 143), ou seja, nos casos em que o encontro parecia ter uma finalidade, imaginava-se ter acontecido aquele encontro contingente por causa de uma finalidade já dada. Como no exemplo em que o credor encontra por acaso seu devedor a tanto tempo buscado, justo quando sai de casa para passear, e não para receber o dinheiro que lhe era devido. Dizemos: é porque tinha que ser! Estava escrito! Mas não estava escrito. Depois é que se escreveu o que estava antes. Quem é o devedor que tomamos como exemplo acima do texto de Aristóteles, no caso de uma análise? Não seria o gozo que nos é devido? Poder gozar um pouco melhor com nosso sintoma? O paciente sai então para passear na paisagem do analista e, ops! O que ele pode encontrar de novo, entre as repetições e impossibilidades?
Na introdução à primeira edição alemã dos Escritos, Lacan (1973/2002) vai dizer: existe a sorte. De fato, é tudo que existe… O ser falante é heureux, é feliz, isso é tudo que lhe resta. É uma referência ao Eclesiastes, tudo passa e depende pouco de nós, “Vaidade das vaidades”, é uma das traduções. Então vamos ser um pouco mais felizes, comer bem, beber, amar, trabalhar com o que se gosta – é mais ou menos isso que propõe um dos grandes textos sapienciais ao qual Lacan recorre de vez em quando. Será que o discurso analítico não poderia deixá-lo um pouco mais feliz (feliz, com um gozo melhorzinho)?
Miller (2021, p. 234) chama essa possibilidade de intervir na sorte da vida de um analisante de contingência lacaniana, através da qual o analista é “Um parceiro que tem a oportunidade de responder – de um outro modo”. Para ele, em uma análise se trata de pôr em jogo a contingência: “Volto a pôr em jogo a boa sorte, salvo que, nessa oportunidade, essa vez, vem de mim e sou eu que devo proporcioná-la”.
O problema aí é, como já me perguntaram: se se trata de sorte, ou da palavra azar, como é usual utilizar no sentido geral de coisas acidentais, como é possível intervir nisso? É aí que vemos toda a genialidade de Lacan. Lacan se interessa pelo acaso quando ele se transforma em discurso. O que isso quer dizer? Encontrei o melhor esclarecimento desse assunto em um texto de nosso saudoso colega José Attié, sobre Mallarmé, quando ele diz que o acaso que interessa a Lacan é aquele que pode ser interrogado pelo simbólico.
Para ir rapidamente ao assunto, isso quer dizer que, para Lacan, o acaso deve ser restrito à contingência, ou seja, ao acaso enquanto restrito a fatos de linguagem, a rastros que são as pistas, os aluviões que governam o discurso de um ser falante. Em outras palavras, o que Aristóteles sugeria como “a contingência que não parecia contingência”: onde imaginava-se ter acontecido, por causa de uma finalidade já dada, Lacan interpõe a linguagem e a escrita. O que é que estava escrito? As marcas que em cada um de nós são a condição da repetição. Não é, portanto, que o analista possa dominar o acaso, essa é a finalidade da ciência, mas, para nós, o acaso pode ser interrogado a partir da resposta que deu o sujeito a um impacto traumático primordial e de como essa resposta se inscreveu como determinação inconsciente que tem consequências no sofrimento de sua vida.
O analisante, ao submeter-se à regra da associação livre, tenta intencionalmente tanto quanto possível se aproximar de falar ao acaso, e eis que, no meio disso, ele se pega agarrado por significantes que determinam sua vida. O papel do neurótico vai ser o de tentar, por outro lado, abolir todo o acaso, demonstrando, se podemos dizer assim, que sua resposta ao trauma foi a necessária, estava escrito, quer dizer, o reenvio da palavra à escritura, o reenvio daquelas palavras ao lugar desde onde foram escritas como marcas de gozo, enunciação que se apresenta pelo funcionamento do sujeito suposto saber.
Onde entra o analista nessa trama? Laurent (2019) nos mostra que ele guarda desde o começo a referência do efeito S.s.S, como artificio desde onde se revela a potência do “estava escrito” – Maktub –, mas acrescenta o erro de leitura como uma abertura para uma nova chance, uma boa sorte. Como alguém pode dar continuidade em uma análise se não experimenta logo que algo pode mudar para melhor, que o que sempre lhe fez sofrer pode se reescrever de outro modo?
A sorte pode advir quando a enunciação no registro do SsS passa de “estava escrito”, é o destino, para “estava escrito no equívoco”. Isso quer dizer que a contingência lacaniana está no lugar dos equívocos, nesse entre os sentidos. O analista provoca a ocasião de uma nova sorte, quando sua interpretação vai dizer de algum modo, jogando com homofonias, por exemplo, que “você leu mal o que estava escrito”. A interpretação é uma retificação da leitura feita pelo sujeito suposto saber. A interpretação supõe que a palavra já é uma leitura e o sujeito suposto saber não soube ler bem o acontecimento, por isso está sofrendo, tendo tanta má sorte na vida. Essa sensação de maldição que às vezes nos habita é um erro de leitura. Já não é uma sorte termos a psicanálise e os psicanalistas para nos mostrarem isso!
Concluo com uma pequena crônica dessas que hoje em dia viralizam e que, a meu ver, ilustra uma intervenção que provoca a mudança em um destino no meio de uma contingência.
Em uma entrevista, a filha de Zizi Possi, Luiza, também cantora, conta o seguinte: “Eu me casei de manhã e tinha brigado, foi um pau horrível e eu estava arrasada. Cheguei para maquiar arrasada e a primeira pessoa que eu vi foi a Fátima e falei: ‘Ai, briguei’. E ela disse: ‘Menina, você não sabia que dá a maior sorte brigar antes do casamento? Tem que brigar pra tudo acontecer’. E Fátima falou para minha melhor amiga depois: ‘Ainda bem que todo mundo acredita no que eu falo’. Fátima Bernardes mudou meu dia e salvou meu casamento”.[3]