MARIA AMÉLIA TOSTES
Da Histeria Ao Feminino: O Desafio Que Dora Nos Propõe
“A histeria não se manifesta apenas como uma neurose, mas, também, como uma maneira de colocar a problemática da feminilidade” (ANDRÉ, 1991, p. 114). Fazer conversar em uma mulher a histeria com o feminino é o desafio que Dora[1] nos requisita desde quando, aos 18 anos de idade, em 31 de dezembro de 1901, em plena virada para o século XX, ela comunica a Freud que vai lhe deixar, e esse seu gesto provoca a pergunta: o que quer uma mulher?
No vigor do ideário iluminista, quando o papel social da mulher estava sendo fortemente alinhavado ao da “boa mãe” e ao da competente dona de casa (ANDERSON e ZINSSER, 2009), Dora é conduzida por seu pai até Freud para que este a colocasse “no bom caminho” (FREUD, 1989, p. 33). Dora não vinha se mostrando uma moça de bom comportamento, pois estava irredutível na exigência de que seu pai rompesse o relacionamento que mantinha com o Sr. e a Sra. K, dois antigos amigos de sua família. Sem contar que já fazia algum tempo que Dora começara a dar sinais de “abatimento, irritabilidade e ideias suicidas” (Ibidem, p. 32).
Dora é diagnosticada por Freud como uma histérica, mas uma histérica diferente das outras. Em correspondência a Wilhelm Fliess[2], quando Freud rascunhava o que é hoje conhecido mais como Caso Dora, ele diz: “de qualquer forma, é a coisa mais sutil que já escrevi, e produzirá um efeito ainda mais aterrador que de hábito” (Ibidem, p. 13).
A novidade que Freud percebe em Dora, inicialmente, tem a ver com a simplicidade de sua histeria que, ao invés dos clássicos “estigmas de sensibilidade cutânea, limitação do campo visual ou coisas semelhantes”, apresenta-se carregada de manifestações corriqueiras do cotidiano que se prestarão ao esclarecimento dos fatos “mais comuns” e “sintomas mais frequentes e típicos” da doença (Ibidem, p. 31).
Freud só se dá conta de que a simplicidade sintomática de sua paciente escamoteava, na verdade, uma complexidade inédita em sua clínica de histeria quando, com cerca de três meses de tratamento, Dora lhe comunica sua decisão de abandonar a análise – “hoje estou aqui pela última vez” (Ibidem, p. 101), – frustrando as expectativas de Freud, que previa que seu “pleno restabelecimento talvez requeresse um ano” (Ibidem, p. 113).
A saída de Dora “em circunstâncias peculiares” de seu processo analítico (Ibidem, p. 92) vai merecer de Freud algumas elaborações, as quais seguirão basicamente por dois vieses: o transferencial – “fui surpreendido pela transferência” – e o que ele chamou de seu “erro técnico”, que estaria relacionado à sua demora em notar a “moção amorosa homossexual pela Sra. K” por parte de Dora (Ibidem, p. 113).
Ambos os caminhos trilhados por Freud para tentar entender por que Dora o abandona demonstram que sua paciente lhe apresentara em análise questões que lhe demandavam novas ferramentas de trabalho. A moça não desmaiava nem se contorcia como as outras da sua época e sua rebeldia se deslocava do corpo todo para se concentrar, sobretudo, na língua – uma língua afiada. Dora desdenhava das laboriosas interpretações de Freud: “ora, será que apareceu tanta coisa assim?”, perguntou ela depois que Freud lhe esmiuçara, durante duas sessões inteiras, ponto por ponto do seu segundo sonho (Ibidem, p. 101).
Mas é justo nas interpretações que Freud faz à sua paciente sobre esse seu segundo sonho que ele expõe a sua dificuldade em perceber que a pergunta que Dora dirigia ao dicionário, após a morte do pai, no sonho, era a mesma que ela encaminhava a Sra. K e demandava saber de Freud: “o que é uma mulher?” (LACAN, 1956-57/1995, p. 144). Assim é que a pergunta fundamental de uma mulher fora formulada, em análise, por uma histérica – aquela que está mais para o masculino do que para o feminino.
Dora É Aquela Que Ama Seu Pai
Ao interrogar sobre o seu sexo, Dora expõe a insuficiência do falo paterno para lhe dar o que lhe falta. No caso de seu pai, tratava-se de uma impotência concreta. “O pai, que é feito para ser aquele que dá, simbolicamente, esse objeto faltoso, aqui, no caso de Dora, ele não o dá, porque não o tem” (LACAN, 1956-57, 1995, p. 142). Contudo, Dora destina um amor a seu pai “correlativo e coextensivo à diminuição deste (dom viril)” (Idem). Ou seja, quanto menos seu pai podia lhe oferecer como falo, mais Dora encobria essa impotência com o seu amor, como é próprio da relação amorosa na qual o falo, tal como o dom, é dado em troca de nada. “A carência fálica do pai atravessa todo o caso como uma nota fundamental”, e Dora ama seu pai “precisamente pelo que ele não lhe dá” (Ibidem, p. 143).
Ocorre que Dora não sabe “o que ela é, não sabe onde se situar, nem onde está, nem para o que serve, nem para que serve o amor” (Ibidem, p. 149). Sua posição é daquela que possui uma questão: “o que é que meu pai ama na Sra. K?” (Ibidem, p. 143). Dora se situa em algum ponto entre seu pai e a Sra. K. Mas existe ainda a figura do Sr. K, que é com quem Dora se identifica, enxergando nele a sua própria condição: a de ponte para um mais além do amor – do pai, no caso de Dora, e da Sra. K, no caso do Sr. K. A triangulação se dá, então, entre Dora, o Sr. K e a Sra. K. O pai de Dora fica de fora, na condição de Outro por excelência (Ibidem, p. 145-46).
A situação permanece equilibrada até que o Sr. K diz a Dora, na “aventura do lago”, que ele não tinha mais nada com sua mulher, e Dora lhe esbofeteia o rosto (FREUD, 1989). Para Lacan (1956-57/1995), essa atitude de Dora é da ordem do insuportável de ser tolerado por ela, pois, ao se identificar com o mesmo lugar ocupado pelo Sr. K, de forma invertida, ela se vê não sendo nada, igualmente, para seu pai. Dora, conforme diz Lacan, é aquela “que ama seu pai” (Ibidem, p. 143). Ela o ama em troca de nada, como é próprio do amor em seu sentido mais primitivo, mas ela não pode se imaginar não significando nada para ele.
Dora, uma histérica, inaugura o século XX perguntando o que é ser uma mulher a partir de um amor endereçado ao pai. É por amor, então, que Dora quis saber sobre o seu sexo, no século passado, em um tempo em que as mulheres enfrentavam pesados obstáculos quando não se contentavam em ocupar apenas a sala de estar. O cenário feminino global mudou desde então, e o tradicional “sexo frágil” se impõe hoje como força motriz fundamental da vida social, política e econômica das sociedades ocidentais, podendo-se constatar, sem nenhuma estranheza, que, atualmente, “o mundo é das mulheres[3]”.
As “Maridas” E A Falência Do Pai
É em meio a essa feminização atual que nos deparamos com um comportamento que nos chama a atenção: elas são vistas sempre em par – onde uma está, a outra está por perto. São inseparáveis. Frequentam a night, mas também curtem os parques, os saraus, as feiras, a rua. Estão em dia com a moda e com o mundo fashion. São absolutamente contemporâneas: ficam à vontade com seus corpos e transitam com desenvoltura pelos espaços urbanos. Elas são amigas de todas as horas e ocasiões. Sentem-se protegidas e confiantes quando estão juntas. São companheiras, cúmplices, confidentes, sedutoras e carinhosas uma com a outra. São namoradas? Não. Elas são heterossexuais e fazem sexo com parceiros de ocasião. Às vezes elas dividem o mesmo parceiro, quando ele cai nas graças de ambas. Atestam não competir entre si nem sentir ciúmes uma da outra. Os homens são coadjuvantes nessa relação de “maridas” – como elas definem esse tipo de compromisso com a melhor amiga.
Nessa suposta divisão de funções – amorosa e sexual –, as “maridas” são enfáticas ao afirmar que “pegam, mas não se apegam” aos homens, pelo menos facilmente. Elas podem se desgrudar uma da outra quando surge um namoro sério que acaba em casamento. Mas garantem que nunca se desvencilham por completo, porque felicidade mesmo é ser casada com a melhor amiga[4].
As “maridas” exibem uma atuação feminina da ordem do dia, em que a parceria entre as duas mulheres aparenta se estabelecer pelo viés afetivo desvinculado do sexual e dos homens. Uma clivagem entre amor e sexo, bem conhecida do universo masculino, que agora ganha valor junto a um tipo de público feminino. Não deixa de ser curioso que, no limiar do século XXI, a pergunta “o que é uma mulher” seja feita de mulher para mulher, prescindindo de um Sr. K como intermediário, como no caso de Dora.
Marie Hélène Brousse considera que, tradicionalmente, as histéricas nunca foram as mais adequadas para irem mais além do pai, mas, na sua opinião, o fator decisivo para a variedade contemporânea de atuações entre mulheres com aspectos homossexuais se concentra na queda da figura paterna. Segundo Brousse, o pai, hoje, deixou de ser a figura identificatória fundamental da histérica que, mesmo quando ainda consegue amá-lo, não é um amor capaz de sustentar a impotência paterna como no século passado[5].
Para Lacan, o pai é sempre aquele que possui uma função simbólica, ostenta uma titulação de ex-combatente (ex-genitor) e, ao mesmo tempo, nunca perde a sua condição de “potência de criação”, seja esse pai um doente ou não. No discurso da histérica, o pai desempenha o “papel-pivô, maiúsculo, o papel-mestre” (LACAN, 1992, p. 89) e, mesmo fora de forma, esse pai é capaz de sustentar, “sob esse ângulo da potência de criação, sua posição em relação à mulher” (Idem). É o que Lacan designa como “o pai idealizado” da histérica. O pai de Dora era um pai castrado em sua condição de potência sexual, mas que desempenhava o papel-pivô de toda a estória. Segundo Lacan, todos os casos freudianos de histeria exibem um pai deficiente e, no entanto, completamente atuante sob o ponto de vista da sua função simbólica (Idem).
Considerações Finais
As “maridas” explicitam o quão fora de combate estão os homens de uma forma geral, especialmente no quesito amoroso. Dora amava e idealizava um pai ex-combatente e impotente – como diz Lacan –, e esse amor lhe sinalizava com o lugar da mulher diante do falo como dom em suas parcerias amorosas. Se as “maridas” atestam que, melhor do que amar um homem é amar sua melhor amiga e fazer sexo com um homem, elas talvez estejam mais interessadas em revelar do que encobrir a falta do falo paterno, numa demonstração de que um falo em potencial, como o do pai, não lhes tem mais nenhuma serventia.
Amar uma igual a si e fazer sexo com um diferente de si: eis o que as “maridas” postulam. Estaríamos diante de uma lógica funcional que visa ao melhor custo-benefício de cada gênero? A especialização-setorização-classificação-cientifização da relação amorosa seria o traço moderno desse comportamento de “maridas”? O amor fundamental e nobre, como “coisa de mulheres”, e o sexo desejável, casual e desclassificado, como “coisa de homens”, apontaria para um paradigma de mercado e de consumo no qual se deve buscar no outro apenas o que ele pode oferecer de melhor, uma vez que o sujeito contemporâneo é aquele que não deve se contentar com nada menos do que “o melhor”?
Dora, no século XX, demandava saber sobre o seu sexo pelo viés do amor ao pai como aquele que, potencialmente, poderia lhe dar o que lhe faltava. Tratava-se de um amor na qualidade de um “devir”, portanto – um amor no qual a histérica normalmente acredita como sendo capaz de encobrir a sua falta tal como ela encobre a impotência do pai para si mesma. As “maridas”, nossas contemporâneas, sinalizam que, ao invés de apostarem suas fichas em um falo capenga, que falha e frustra, como é o caso do falo paterno, elas preferem potencializar, por si mesmas, as suas relações com os dois sexos – da melhor amiga elas obtêm o amor; dos homens, o sexo.
Mas, se as “maridas” podem ser tomadas como um desdobramento da falência paterna na contemporaneidade, a ponto de prescindirem da figura masculina para indagar sobre o feminino, não seria o caso de considerarmos o que Lacan nos apresenta, ou seja, de que o pai continua exibindo a sua condição de potência criadora e, como tal, ostentando a sua tradicional condição de figura pivô da estória das histéricas? Isto é: pela via do pai idealizado ou do pai desfalicizado e fragilizado, as histéricas ainda formulariam suas estratégias amorosas a partir do pai?
Por outro lado, esse amor “puro” entre duas amigas “maridas”, no sentido de um sentimento desvencilhado do sexo e da diferença sexual, nos suscita uma outra pergunta: o que é um homem para uma mulher, em nossos dias?
[1] Faz-se referência aqui ao nome escolhido por Freud para designar a sua paciente no relato que ele formula em 1901, mas que é publicado em 1905, sob o título “Fragmento da análise de um caso de histeria”.
[2] Conforme Carta 140, de 25 de janeiro de 1901 (Freud, 1901-05, p. 13).
[3] O mundo é das mulheres foi o primeiro programa feminino da TV brasileira realizado na década de 60, pelo canal 5 da antiga TV Paulista, atual TV Globo, que lançou com sucesso a apresentadora Hebe Camargo, já falecida. (http://www.youtube.com/watch?v=cv40-tcU-RQ) Por sua vez, o ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva fora ovacionado quando, em junho de 2011, expressou essa frase durante uma cerimônia, em Curitiba, se referenciando ao incremento da presença feminina no Planalto Central. (http://oglobo.globo.com/politica/o-mundo-das-mulheres-diz-lula-2877204)
[4] As “maridas” foram tema da revista Marie Claire número 289, de abril de 2015: uma edição comemorativa dos 24 anos da chegada da revista ao Brasil.
[5] Entrevista disponível em: http://moviepsi.blogspot.com.br/2013/05/entrevista-marie-helene-brousse.html.