CRISTIANE DE FREITAS CUNHA
POR GIULIA PUNTEL
O relato de Sérgio de Mattos nos instiga a percorrer suas referências. Com Viveiros de Castro, aprendemos a perspectiva ameríndia de construção do corpo, no processo de reclusão, exibição e metamorfose. Na cultura yawalapíti, o social constitui o corpo, não é algo externo que se deposita sobre ele. Nesse processo de fabricação, há uma dialética entre a reclusão e a exibição do corpo. A fabricação dos corpos, com a tecnologia da reclusão, tem início com as relações sexuais com a finalidade de procriação. Na puberdade, o corpo é recluso por um tempo, durante o qual o púbere depende da comunidade para sua sobrevivência, e os pais se abstém das relações sexuais. A reclusão da puberdade é marcada pela fragilidade e pela vergonha. Depois, há a exibição do corpo nos rituais comunitários, nos quais o corpo é marcado. A reclusão envolve, por fim, a morte e o luto. A fabricação produz seres humanos que acedem à vida, adquirem a capacidade de perpetuá-la e morrem. Há também a metamorfose, algo da ordem do excesso, do imprevisível, que pode transformar os homens em espíritos ou em plantas, como na experiência do xamanismo (CASTRO, 2002).
Um fragmento de uma entrevista do relatório de Mattos evoca também a modificação corporal para produzir um ser humano, ao dizer que “a pele é sua história: não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.
Seguimos Gustavo Dessal, em suas viagens e meditações sobre a vida amorosa. Em Boston, no verão de 2012, ele se depara com um encontro de cosplay[i]. Dessal captura imagens dessas identidades flexíveis, apartadas do encontro com o sexo, com o real, com a castração, com o desejo. Personagens que posam para a sua câmera e o ignoram. De Tóquio, ele nos fala da concretude da inexistência da relação sexual, materializada no deslocamento do encontro com o parceiro para a aquisição das bonecas infláveis – que não demandam nada, conforme o anúncio do fabricante –; no caminho para casa, evitando o encontro com o parceiro que demanda, quando há um; no trajeto pelas casas de massagens; nos aparatos que assessoram a masturbação. E, para saciar o desejo do encontro com um corpo vivo, há os bares onde os gatos podem ser acariciados. E, mais além do desejo, a reclusão dos hikikomori, adolescentes enclausurados em seus quartos. Em Nova Iorque, na primavera de 2013, Dessal visita lojas cenográficas onde se podem comprar corpos e pedaços de corpos. Ele observa que em Nova Iorque há lugar para a estranheza, desde que a diferença continue inserida no sistema produtivo, na lógica do empreendedorismo de si mesmo (DESSAL, 2013).
Continuamos pelo fio do empreendedorismo de si com Safatle, que nos fala da plasticidade mercantil do corpo (2015, p. 193). O capítulo que trata desse tema é aberto com duas citações: “eu creio que o corpo é obsoleto”, de Orlan, e outra, “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”, de Margaret Thatcher.
O corpo se torna obsoleto, o risco se torna obsoleto. Convocados a uma mutação e reconfiguração contínuas, a sociedade e os indivíduos assumem o estatuto de uma empresa. As técnicas de gestão e de intervenção terapêutica, a administração e a psicologia convergem para fornecer o arcabouço desse projeto de humanização do capitalismo e ajudam a gerir o medo do fracasso e a insegurança, inadmissíveis em uma sociedade flexível. Nesta, as normas não são transgredidas, são flexibilizadas em um cálculo preciso dos custos e resultados (SAFATLE, 2015).
No projeto da mutação corporal, as dietas, fármacos e cirurgias prometem uma configuração de si a baixo custo. E, no mercado do corpo, a mídia é um instrumento privilegiado de expansão, incorporando qualquer resistência. Nos anos 90 do século passado, observa-se um processo de reconfiguração de representações midiáticas relacionadas ao corpo. A Benetton lança uma campanha publicitária na qual corpos marcados pela aids são expostos. Calvin Klein e Versace investem na erotização de corpos doentes, mortificados, portadores de uma sexualidade ambígua. Os consumidores são convocados a um papel de cidadão diante do revestimento da mídia como forma de conscientização e provocação. E em uma perspectiva inclusiva dos consumidores, a mídia investe também na exposição dos corpos saudáveis e harmônicos, simultaneamente, expondo a bipolaridade das marcas (SAFATLE, 2015).
Uma peça publicitária da PlayStation apresenta o corpo com interface de conexão, um corpo protético e reconfigurável. Vemos um corpo diante da prateleira de cabeças, disponíveis para escolha e uso, como na loja de corpos e pedaços de corpos de Dessal. Uma outra peça contrapõe o tédio da vida cotidiana e a aventura da vida virtual (SAFATLE, 2015). Na vida cotidiana, a morosidade do trabalho; na virtual, a conquista de impérios com exércitos numerosos, que atesta o valor da existência.
O capitalismo avançado, humanizado, inclusivo, deixa à margem a experiência da estranheza, da fissura (LACAN, 1962-1963). Os mercados comuns tornam cada vez mais duros os processos de segregação (LACAN, 1968).
E são seres humanos à margem, segregados, que podem se aventurar na experiência analítica. Corpos marcados pelos significantes do Outro, que testemunham um mal-estar inerente ao ser humano. Que podem se permitir falar de modo precário sobre esse mal-estar no corpo que não se é, mas se tem. Um dos entrevistados por Sérgio de Mattos (2015) diz: “são coisas que remetem a algo que vivi (…) tinha problemas com o corpo e ainda tenho”. Ainda, apesar das modificações, suspensões, elevações, tentativas de sair do corpo. Ele atesta o fracasso da técnica, da ciência, para curar o mal-estar. E conclui: “não julgue minha modificação, só entenda que é ser humano”.
[1] Cosplay: Segundo Dessal, condensação do inglês costume, disfarce; display, exibição; play, jogo.