SOPHIE MARRET-MALEVAL
Psicanalista, membro da Escola da Causa Freudiana/AMP |
Resumo: A prática analítica se estabelece entre o que se lê e o que se escreve, ancora-se numa decifração que não visa o sentido e se regula pelo corte que separa S1 e S2, bem ali onde a palavra mostra o seu limite.
Palavras-chave: interpretação, leitura, escrita, inconsciente
INTERPRETATION AND BEYOND
Abstract: The analytical practice is established between what is read and what is written, anchored in a decipherment that does not aim at meaning and is regulated by the cut that separates S1 and S2 right where the word shows its limit.
Keywords: interpretation, reading, writing, unconscious
“O de que se trata no discurso analítico é sempre isto — ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa”. Esse enunciado de Jacques Lacan aparece na terceira lição do Seminário Mais, ainda, intitulada “a função da escrita” (LACAN, 1972-73/2008, p. 43): quase da ordem do óbvio, ele lembra que a experiência analítica tem sua origem na interpretação, ou seja, em um uso do significante. Suas implicações são, entretanto, maiores quando Lacan precisa a distinção entre letra e significante abrindo-se para uma prática de interpretação que vai além do alcance freudiano.
O que se lê e o que se escreve
“No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler” (Ibid., p. 43), continua Lacan, mas ele acrescenta: “Só que, o que vocês ensinam a ler, não tem, absolutamente, nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito” (Ibid.). A experiência analítica é, desde então, situada entre a leitura e a escrita. A leitura é aqui colocada em relação ao significado, “o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante” (Ibid., p. 39), enquanto a escrita é referida à letra. Lacan revisita os termos da linguística saussuriana afastando-se da abordagem do significante como “imagem acústica do signo”. Ele descarta a noção de referência que religaria a linguagem a uma realidade pré-discursiva lembrando, aliás, que “os homens, as mulheres (…) não são mais do que significantes” (Ibid., p. 38): “A palavra referência, na ocasião, só se pode situar pelo que constitui como liame o discurso. O significante como tal não se refere a nada, a não ser (…) a uma utilização da linguagem como liame” (Ibid., p. 36). Ele privilegia, então, a noção de “discurso”, da linguagem como laço, no qual se localizam dois efeitos: o significado de uma parte (“O significado é efeito do significante. Distingue-se aí algo que não passa de efeito do discurso […], quer dizer, de algo que já funciona como liame” [Ibid., p. 39]), a letra e a escrita de outra (“A letra, radicalmente, é efeito de discurso. […] É que, o que eu digo anteriormente ganha sentido depois” [Ibid., p. 41]), mas também “tudo que é escrito parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual. É daí que há um certo efeito do discurso que se chama a escrita” (Ibid., p. 40). A impossível escrita da relação sexual se segura, por um lado, ao que “Um homem procura uma mulher (…) a título do que se situa pelo discurso” (Ibid., p. 38), quer dizer, que ele não goza do corpo de sua parceira como tal, mas que o gozo parte dos traços sobre o corpo, do significante fálico, e que ela depende do objeto a que a causa, assim como Lacan o precisa no início desse Seminário. Por outro lado, ela se segura à inexistência do significante de A mulher, que torna impossível a escrita de uma relação lógica entre os sexos (ou seja, entre dois significantes se o segundo existisse).
A letra é efeito de discurso. Lacan situa sua função na barra entre o significante e o significado, sem a qual “nada, dos efeitos do inconsciente, tem suporte” (Ibid., p. 40). “A barra é precisamente o ponto onde, em qualquer uso da língua, se dá a oportunidade de que se produza o escrito” (Ibid., p. 40). Se seguirmos a lógica desse capítulo, dois eixos vêm à tona. A primeira: o que se lê, o significado como efeito do significante e que se baseia de uma ausência de relação com o significante, o que se materializa pela barra da arbitrariedade saussuriana, do qual é deduzida também a impossível escrita da relação sexual, que se situa no registro dos efeitos do discurso corrente, do laço entre os significantes. O segundo: o que se escreve, o que não é para ser compreendido, e “parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual” (Ibid., p. 40), o que marca também a materialidade da barra.
Uma outra leitura
Dar “uma leitura outra que não o que significa” ao “que se enuncia de significante” (Ibid., p. 43) não pode mais se orientar, portanto, a uma prática de interpretação que visaria à verdade, à reabsorção da barra, do que se escreve. A prática da interpretação convoca, sobretudo, a inexistência da relação sexual, que não cessa de não se escrever. O enunciado convida para uma compreensão quase literal. Trata-se de se abrir a outra leitura que não uma prática de sentido, que leve em conta os efeitos da barra. Quando Lacan aponta ainda a disjunção entre leitura e escrita, ele parte da constatação de um hiato entre o que se enuncia da construção na prática analítica e as letras com as quais ele convida para escrever a teoria (nesse caso, S(Ⱥ), a e Φ). O que se pode escrever sobre isso está além do sentido. Se ele permanece movido pela esperança de um apoio possível na matemática para escrever a teoria analítica, nesse momento, ele faz, no entanto, claramente aparecer, situando a escrita como efeito de dizer, uma outra dimensão da prática analítica, aquela do sentido, sensível no que se escreve sobre isso. A práxis analítica se situa entre o que se lê e o que se escreve, entre a abordagem da inexistência da relação sexual e a incidência da letra. A ênfase é deslocada sobre a função de borda de certos significantes que apontam em direção ao objeto, como Lacan o evoca alguns meses mais cedo em “Lituraterra” (LACAN, 2003).
Assim ele indica, no capítulo seguinte:
“Seguir o fio do discurso analítico não tende para nada menos do que refraturar, encurvar, marcar com uma curvatura própria, e por uma curvatura que não poderia nem mesmo ser mantida como sendo como a das linhas de força, aquilo que produz como tal a falha, a descontinuidade. Nosso recurso é, na alíngua, o que a fratura” (LACAN, 1972-73/2008, p. 50).
Ou seja, a letra que ele indica que ela “revela (…) a gramática”. Uma concepção da interpretação se deduz disso que não negligencia a referência à escrita porque, sublinha, “recusar-se à referência à escrita é proibir-se aquilo que, de todos os efeitos da linguagem, pode chegar a se articular” (Ibid., p. 50). Por um lado, é necessário visar o que se pode articular, por outro, como ele aponta, “Esta articulação se faz naquilo que resulta da linguagem o que quer que façamos, isto é, um suposto aquém, e um além” (Ibid., p. 50). Isso quer dizer que o uso da letra nos leva à via do real, de acordo com as coordenadas que ele dá anteriormente: o objeto a e a inexistência da relação sexual.
“Se trata de ler o quê?”, ele precisa ainda um pouco mais longe, “nada, senão os efeitos desses dizeres. Esses efeitos, bem vemos no que é que isto agita, comove, atormenta os seres falantes” (Ibid., p. 51). É preciso ainda que a leitura desses efeitos sirva “a dar uma sombra de vidinha a esse sentimento dito de amor” (Ibid., p. 51). Ele precisa “outra leitura” que ele convoca: trata-se de fazer uso dos efeitos dos ditos para “civilizar” o gozo pelo amor, que é o que permite “fazer sentido” (MILLER, 2004, inédito, tradução nossa), mas também de visar um desejo vivo. “É preciso que, por intermédio desse sentimento, isso chegue (…) à reprodução dos corpos” (LACAN, 1972-73/2008, p. 51-52).
Interpretação pelo avesso
Para esse fim, Lacan sublinha de que uso do sentido depende o discurso analítico:
“com efeito, um discurso como o analítico visa ao sentido. (…) O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a ideia de que esse sentido é aparência. Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do seu limite. Não há, em parte alguma, última palavra, se não for no sentido em que última palavra é nem palavra, caluda — já insisti nisto. Sem resposta, nem palavra, diz em algum lugar La Fontaine. O sentido indica a direção na qual ele fracassa” (Ibid., p. 85).
Ele precisa além disso: “o gozo só se interpela, só se evoca, só se suprema, só se elabora a partir de um semblante, de uma aparência” (Ibid., p. 99). É por isso que a prática lacaniana continua sendo prática do significante.
No entanto, Jacques-Alain Miller nos lembra que “O tempo da interpretação ficou para trás. Isso Lacan sabia, mas não o dizia: ele o deixava entender e só agora começamos a ler” (1996, p. 96) especificando que “a interpretação não é outra coisa que o inconsciente, a interpretação é o próprio inconsciente” (Ibid., p. 96), o que quer dizer que “o inconsciente fica (…) inteirinho na defasagem (…) que se repete no que quero dizer ao que digo” (Ibid.), a interpretação analítica vem em segundo lugar. Não obstante, ele fala “o inconsciente quer ser interpretado. Oferece-se para tanto. Se não o quisesse, se o desejo inconsciente do sonho não fosse, em sua fase mais profunda, desejo de ser interpretado (…), desejo de fazer sentido, não haveria analista” (Ibid., p. 97). Ele sugere compreender a interpretação como decifração. “Mas, decifrar é cifrar novamente. O movimento para somente numa satisfação” (Ibid.). Uma prática do sentido que não ficaria “a serviço do princípio do prazer” (Ibid.), ou seja, que visa o sinthoma, o ponto de conexão entre linguagem e gozo, deve-se, portanto, distinguir de uma interpretação do inconsciente. Ele propõe uma outra via, aquela da “interpretação pelo avesso”, que “na outra via o S2 fica retido, para não ser acrescido ao objetivo de cercear S1. Trata-se de reconduzir o sujeito aos significantes propriamente elementares, com os quais delirou em sua neurose” (Ibid., p. 98). Convém apoiar-se sobre uma “decifração que não produz sentido” (Ibid.) sobre o corte que separa S1 e S2, lá onde a palavra designa o seu limite e conduz pela via do objeto, como uma janela sobre os limites do dizer. É ainda pela via de uma leitura que visa o que se escreve que se alcança o que não cessa de não se escrever, a inexistência da relação sexual na medida em que resulta de uma precisão das coordenadas do sintoma, ou seja, do que cada um goza.
Podemos ainda enfatizar como, ao destacar a leitura do único sentido para pontuar os limites, Lacan abria a via para a prática analítica das psicoses. J.-A. Miller e É. Laurent lembram que o inconsciente interpreta muito particularmente na psicose e que se trata, na maioria das vezes, de visar os pontos onde o sentido se interrompe, de “estabilização da metáfora”, ou seja, como propõe Laurent, de introduzir vírgulas, de isolar, de separar os significantes (LAURENT, 2005, tradução nossa). Como tantos grampos de gozo, os significantes podem igualmente servir a fins de nomeação e permitir uma amarração, uma resolução[2] desta pelo sentido.