SILVIA BAUDINI
Psicanalista membro da EOL e da AMP |
sbaudini@yahoo.com.ar
Resumo: Em um primeiro momento dessa conferência, a autora trabalha as noções de transferência e interpretação quando sustentadas pelo simbólico e pelo analista alojado em uma posição de prestígio pelo suposto saber, para, em seguida, pensá-las em um mundo onde essa suposição tem praticamente desaparecido e o simbólico não é o registro predominante. Através de alguns fragmentos de casos, a autora nos conduz por uma clínica onde o Outro não existe e na qual a leitura do fora do sentido pode dar lugar a invenção de uma nova escrita.
Palavras-chave: Interpretação, transferência, clínica, escrita.
FROM LISTENING TO THE MEANING TO READING THE NONSENSE: OUR SAINT INTERPRETATION
Abstract: In the first part of this conference, the author works on the notions of tranference and interpretation when sustained by the symbolic and by the analyst lodged in a position of prestige by the suppost subject of knowledge, to then think of these notions in a world where this supposition has practically disappeared and the symbolic is no longer the predominat register. Through some fragments of cases, the author leads us through a clinic where the Other does not exist and in which the reading of the nonsense can give way to the invention of a new writing.
Keywords: Interpretation, transference, clinic, writing.
Introdução
Irei começar utilizando uma citação de J.-A Miller que tem me servido de suporte para esta conferência. Miller está trabalhando, em seu curso “El ultimísimo Lacan”, o Seminário “Momento de concluir”, de Jacques Lacan, e cita a seguinte frase: “Por que o desejo se converte em amor? Os fatos não permitem dizê-lo — sem dúvidas há efeitos de prestígio” (LACAN, 1975, tradução nossa).
Sua leitura da frase é a seguinte:
“Dificilmente se pode ir mais longe na degradação discreta da vida amorosa (…). O mesmo acontece, a meu entender, quando se atreve a dizer da interpretação, de nossa santa interpretação, que é tudo o que temos para operar em nossa tradição léxica, ao menos semântica, que depende do peso do analista. Efeito de prestígio ali também. Esse movimento chega até o ponto de dobrar a interpretação sobre a sugestão, horresco referens[2]“ (MILLER, 2012, p. 186, tradução nossa).
Nessa citação de Miller, extraída do seu curso “El ultimísimo Lacan” (2012), se colocam em relação dois rebaixamentos, o do amor e o da interpretação.
No Seminário, livro 8: a transferência, Lacan se pergunta se nosso acesso ao paciente é ou não através do amor e se interroga sobre o estatuto do amor em relação a uma profunda discordância e ruptura que questiona qualquer harmonia (LACAN, 1960-61/2010).
A relação entre transferência e interpretação está colocada na citação de Miller que nos diz que houve em Lacan uma inversão entre transferência e Sujeito Suposto Saber. Primeiro Lacan localizou a relação com o Sujeito Suposto Saber e disse “a quem lhe suponho o saber, eu amo” para logo invertê-lo, e, citando Miller, “o que faz existir o inconsciente como saber é o amor” (MILLER, 2005, p. 18). Não descartamos seu reverso, o ódio. Depois voltarei a esse ponto.
Então, o estatuto da suposição de saber fica afetado. Recordemos que Freud diz: “tem-se de ter cuidado em não fornecer ao paciente a solução de um sintoma ou a tradução de um desejo até que ele esteja tão próximo delas…” ( 1913/1996, p. 87). Vemos aqui que, para Freud, é o próprio sujeito, o inconsciente que faz a interpretação de seu sintoma.
A suposição de saber que alojava o analista em uma posição de prestígio se movimenta. O discurso da ciência e das leis do mercado também tocam a psicanálise. Como responder sem cair nas redes do discurso do mestre moderno? A psicanálise muda e essa mudança mina as raízes do simbólico como registro predominante na sua qualidade dialética e também a relação S1-S2, operação fundamental da interpretação semântica. Aquilo a que podemos chamar de causa significante.
A orientação lacaniana que JAM sustenta há muitos anos nos dá os instrumentos para operar no mundo do Outro que não existe, onde a suposição de saber praticamente desapareceu.
Tradição semântica
O que é a tradição semântica? Em primeiro lugar, tomo o termo tradição, que Miller coloca em oposição à transmissão. A tradição se coloca na linha do NP (Nome-do-Pai) e provém de uma ortodoxia. A transmissão implica o um por um, ou seja, o corpo. O NP não necessita do corpo, é um significante; a transmissão, por outro lado, está encarnada. Por exemplo, o NP se veicula através de uma transmissão e quem encarna essa transmissão fará uma coisa ou outra com esse significante.
Lacan (1955-56/1998) nos apresenta duas modalidades do significante:
1) A cadeia subsiste em uma alteridade em relação ao sujeito, tão radical como os hieróglifos ainda não decifrados na solidão do deserto.
2) Tem a função de induzir no significado, a significação, impondo-lhe sua estrutura. O que conhecemos como significação fálica.
Em relação à semântica, sabemos que esta se refere ao estudo de diversos aspectos do significado, sentido ou interpretação de signos linguísticos.
Se tomamos o primeiro ensino de Lacan, o simbólico se institui como uma ordem, com leis, e o significante se define por seu valor diacrítico, ou seja, é oposto a outro significante. A matriz é S1-S2. Essa ordem simbólica vem para pacificar a desordem no imaginário citando Lacan no Seminário, livro 2: “No simbólico nunca há encontro que seja um choque” (1954-55/1985, p. 332). O significante induz, diz Lacan, no significado a significação, quer dizer que esse significado alcança uma detenção graças à operação do significante. Por isso, nas psicoses, ao não se inscrever um significante especial, o Nome do Pai, essa função de limite não se encontra presente e o que há é significação de significação. Por exemplo: um sujeito vê um carro vermelho e sabe que significa algo para ele, que está dirigido a ele, mas não sabe o que quer dizer, qual é sua significação. Essa significação induzida pela presença do significante tem um caráter mais ou menos universal; por outro lado, a significação de significação implica o que conhecemos como significação pessoal, ou seja, está dirigido ao sujeito, com um caráter mais ou menos ameaçador.
Os anos 1994-1995 são um marco para a orientação lacaniana. Miller ministra seu curso “La fuga del sentido” (1994-95/2012), curso que tive o prazer de traduzir. E também ministra duas conferências, uma em Buenos Aires, nas Jornadas anuais da EOL, intituladas “El tiempo de interpretar”. Essa conferência foi intitulada “Adiós al significante” (MILLER, 1995/2009, p. 278) e Jacques-Alain Miller não quis publicá-la durante muito tempo, até que autorizou sua publicação e atualmente pode ser lida nas “Conferencias porteñas: tomo II” (2009). Essa conferência teve diversos efeitos, perplexidade, mal-estar, entusiasmo. E nela Miller apresentou o interminável de uma cura sustentada no modelo tradicional da interpretação; disse que se a “interpretação se for colocada em continuidade com o inconsciente, não é mais que delirar com o paciente” (MILLER, 1995/2009, p. 278, tradução nossa).
Nas “Journées d’étude da ECF” de 1995, proferiu “A interpretação ao avesso” (MILLER, 1996) e, depois de 27 anos, ainda devemos seguir extraindo consequências desses textos e conferências de Miller.
Em primeiro lugar, na “Conferência sobre a interpretação ao contrário”, ele começa dizendo que a era da interpretação já passou, ou seja, que nós (foi há 27 anos) não estamos na era da interpretação. Parece-me importante ressaltá-lo. Verificamos, por exemplo, nos casos, os próprios ou os que supervisionamos, um desejo, um anseio de ligar S1 e S2: o paciente não associa, fala pouco, não liga o que diz com nada, é o que escutamos de nós mesmos ou de nossos supervisionandos. Então, afirmar que a época da interpretação ficou para trás é fundamental para escutar os sujeitos que vêm nos consultar.
Tomemos agora os dois maiores textos do primeiro ensino de Lacan, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953/1998) e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957-58/1998). O que diz Miller sobre eles? “São iniciativas grandiosas de integrar o gozo à estrutura da linguagem” (MILLER, 1996, p. 97).
Dizê-lo assim nos permite entender que o último ensino e o ultimíssimo ensino de Lacan são muito mais humildes em relação à psicanálise e à ação do analista. O trabalho do analista fica desprovido de qualquer ideia de grandeza e de toda esperança. E, ao mesmo tempo, é muito mais leve, mais eficaz, temperado.
A prática
Vou relatar um fragmento de um caso de uma paciente que atendo há 10 anos; ela é alguém que não acredita no pai, o nomeia “progenitor” esclarecendo que ele não pode, em caso algum, ser chamado de pai. Tem um profundo desejo de morte formulado da seguinte forma: “subir no terraço e me jogar”. Nada do que faz a satisfaz, mas, enquanto isso vive e tem um humor muito particular, faz dela uma amadora do stand up. As entrevistas transcorrem entre sua declaração do sem sentido de sua vida e de seu desejo de dormir e seus relatos humorísticos. Numa ocasião, me entrega um papel no qual escreveu um sonho: “Sonho que entro na minha casa e faço isso abrindo uma fechadura que está na janela da varanda. Não há cortinas, estou exposta, me veem. Os meus vizinhos estão lá. Ontem à tarde perdi a confiança neles”.
Até aqui o que escreveu. Digo: Ah! Mas você tem recursos, quando não pode entrar pela porta, entra pela janela!
Pouco tempo depois, chega, senta-se e me diz: “vê aquela pasta verde” — de fato saía de uma sacola uma pasta dessa cor —, “são os papéis para que assinem a doação da casa de minha avó”, único laço dessa paciente com alguém que respeitava e acabava de falecer. Ela se negava sistematicamente a fazer uso dessa propriedade.
Acrescenta: “Isso, eu tenho que agradecer a você e a Maria” (sua analista anterior). Esse recurso, não sem a psicanálise, torna possível para ela dois movimentos: um de vitalização do mortífero, que tem sido seu laço com o Outro, e outro que inaugura um endereçamento a um Outro a quem possa agradecer.
O sonho diz literalmente e ela passa do desejo de jogar-se no vazio, que indica que não havia para ela a moldura da fantasia, a uma janela que, emoldurada pela análise, já que ela escreve o sonho para sua analista, lhe permite abrir a porta de uma casa que poderia melhorar suas precárias condições de vida.
Uma prática pós joyceana
Se tomamos a citação do texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, que mencionei, o significante tem a função de induzir no significado a significação impondo-lhe sua estrutura. Essa estrutura imposta é a que abreviamos escrevendo S1-S2 e a operação analítica é a pontuação, ou seja, reproduz a estrutura significante, a do significante privilegiado, a do Nome-do-Pai. Por isso Miller diz que entre inconsciente e interpretação há uma equivalência, e isso é o que se diz sob a forma do Sujeito Suposto Saber (MILLER, 1996).
À pontuação se opõe o corte. Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” encontramos uma citação de Lacan que diz que o corte, “a suspensão da sessão, que a técnica atual transforma numa pausa puramente cronométrica […] indica libertar esse termo (o da sessão) de seu contexto rotineiro” (LACAN, 1953/1998, p. 253). Em seu ultimíssimo ensino, Lacan vai dizer que há que elevar o corte à dignidade da cirurgia. Penso que essa passagem em Lacan sobre libertar o final da sessão de seu contexto rotineiro ao corte cirúrgico marca a incidência do corpo no ato analítico.
Que Jacques-Alain Miller diga que a interpretação é tudo o que temos em nossa tradição semântica nos deixa a porta aberta para pensar algo que vai mais além dessa tradição, digamos, religiosa.
Então, pensar a neurose a partir da psicose se torna imprescindível na prática de nosso tempo. A psicose não tem tradição, Lacan diz que não há psicose infantil, marcando, com isso, que não há uma história, um romance. A psicose transcorre em um tempo sem “contexto rotineiro”.
A neurose, com seu romance lido a partir do último ensino de Lacan, nos liberta do contexto rotineiro.
Por outro lado, se a entrada do significante no corpo se faz por efração, de maneira disruptiva, isso nos dá uma relação com o significante que nada tem a ver com a ideia de um simbólico ordenado. O simbólico é então um buraco, o significante perfura, traumatiza o organismo vivo que não será natural nunca mais.
Cito Jacques-Alain Miller:
“O modo de entrada da experiência inesquecível do gozo que será comemorada pela repetição (…) é sempre a efração em todos os casos aos que se acede a ela por meio da análise. A efração não é a dedução, não é a intenção, tampouco a evolução, mas sim a ruptura, a disrupção quanto a um ordenamento prévio, já feito, ou à rotina do discurso, graças ao qual se mantém as significações, ou à rotina que imaginamos como a do corpo animal” (2013, tradução nossa).
Essa leitura da entrada do significante como Um, que ingressa no corpo e o faz gozar, ou seja, que o afeta, também tem consequências no nível da interpretação.
Dizemos que interpretar no sentido S1-S2 é se identificar ao inconsciente, então, qual seria a intervenção analítica se o significante é Um sozinho e procede pela disrupção?
Vou citar três fragmentos de casos que me ensinaram.
1) Um homem delira sentado na cama de um hospital, fala dos horrores que sofre de forma monotônica, delírios cenestésicos, alucinações etc. O escuto e, em um momento, pegando no meu braço, digo “fiquei arrepiada”. Me olha pela primeira vez, cala-se e sorri.
2) Uma jovem que chega depois de um acidente, vem confusa e com certo empuxo às mulheres, dispersa até que algo se localiza em um aplicativo do celular, o Tinder. A partir dali marca encontros com mulheres, homens e casais. Não vem às entrevistas e, quando vem, relata suas atuações, o álcool e as saídas. Intervenho: “M., me dá algo ao que me agarrar, não tenho nada para me agarrar”. Me diz “bom” e, a partir de então, não falta mais a seu tratamento. Embora suas urgências, atuações e seu empuxo persistam, pode registrá-los, freá-los, como ela diz, e também se angustiar frente a uma viagem que planeja sem muita orientação porque quer experimentar, ser livre. A análise a acompanha para localizar um espaço e um tempo, para que seu fazer tome corpo e não fique exposta a uma fuga sem freios.
3) Um homem chega para avaliar a medicação; seu pai acaba de morrer e vários de seus familiares estão gravemente doentes. Nada disso o afeta. Somente o rechaço que tem por si mesmo e que se consuma na recusa a qualquer intervenção médica ou de outra ordem. Meu fracasso é completo e lhe digo que não posso ajudá-lo. Deixa a quem até esse momento é seu analista e pede para vir duas vezes por semana. Segue seu rechaço. Como escreve poemas, lhe digo que os leremos, mais fracasso. Enfim…
Chega a uma entrevista falando de várias coisas e, no final me diz: “Minha amiga me disse para ligar para fulano, que é o analista dela, ligo e ele me diz que não pode me atender, e que vai me dar outro contato, e me deu o seu. É o círculo do inferno de Dante”.
Digo-lhe: “claro, sou sua analista”. Carrego, ali com o inferno, esse real que o deixa em queda livre no buraco e do qual se defende com o rechaço fundamental ao altero. Então, desmontar a defesa é a operação, o inferno é inferno e vamos circunscrevê-lo. O rechaço a todo laço que inclua família, parceira, trabalho, analista, é a defesa do sujeito frente ao real, o real da melancolia, de se fazer o próprio dejeto.
“A desmontagem da defesa supõe que outra construção venha no lugar do que foi esvaziado” (GUÉGUEN, 2014, p. 103) e permita manter o enodamento RSI. A analista marcada pelo inferno permite que o afeto se localize e lhe faça borda ao corpo.
Dias depois disse que, pela primeira vez, chorou a morte do pai, e ele nunca chora. Irrompe um sintoma: a insônia. Então aceitou a medicação, lhe digo “com a insônia não se pode viver”. Consente.
Breton, citado por Jacques-Alain Miller em “La fuga del sentido”, diz que devemos desviar a palavra de seu dever de significar (MILLER, 1995-95/2012, p. 80).
Lacan vai se basear na obra de Joyce para produzir seu conceito de sinthome. A escrita joyceana cumpre com essa indicação de Breton, Joyce desvia a palavra de seu dever de significar e faz ressoar a lalíngua em sua escrita. Não é em vão que Lacan diz que é o melhor que se pode ler e inclui seus Escritos.
Efetivamente, a escrita joyceana é disruptiva, perfura todo o conhecido e faz falar. Lacan postula, no Seminário, livro 23: O sinthome, “um novo tipo de ideia” (1975-76/2007, p. 127), mas o que quer dizer isso? Estamos habituados a pensar as ideias como algo ligado ao sentido, ao imaginário, mas recordemos que Lacan, no Seminário, livro 3, toma o fenómeno anidéico de Clérambault, que é um elemento, estrutura mínima. Lacan esclarece o que quer dizer anidéico, “não conforme a uma sequência de ideias” (1955-56/1985, p. 14), e acrescenta que é algo que se apresenta como ruptura e como incompreensível. Então, esse novo tipo de ideia que é o traumatismo, dado que não é conforme a uma sucessão, é o que vai dar a possibilidade da invenção, a invenção de uma nova escrita, o forçamento de uma nova escrita. Lacan diz que o real é sua invenção e que tê-lo enunciado como uma escrita (do nó borromeano) tem o valor de um traumatismo.
É, então, coerente falar de forçamento, dado que o significante procede por efração, ou seja, rompe, faz disrupção. Portanto, esse forçamento de uma nova escrita é homólogo à irrupção do significante no corpo.
Corpo afetado
Vemos, então, a diferença entre a interpretação orientada pela escuta do sentido ou pela leitura do fora do sentido: essa leitura não é sem um forçamento que pode dar lugar à invenção de uma nova escrita.
Essa orientação também toca a posição do analista e seu semblante de objeto. O analista orientado pelo real empresta o corpo no ato. Tomemos o testemunho de Rosine Lefort na entrevista que Judith Miller lhe faz.
Chega em posição de dejeto e encontra o horror da transferência. Diz que Lacan se queixou uma ou duas vezes da dificuldade do trabalho na transferência com ela. E acrescenta “se ele não tivesse infiltrado simbólico mediante suas palavras, ou nas sessões, jamais teria voltado” (LEFORT, 2013, p. 129, tradução nossa).
Penso que, no caso construído por Rosine Lefort, é claro como o analista cumpre uma função civilizadora da disrupção. Tempera a violência que levava ao sujeito ao encontro com o horror, ao mesmo tempo que dava voz e corpo.
Ela diz também que o analista não deixava de “manter a pressão”, por exemplo, pedindo-lhe que lhe trouxesse os objetos de sua autoagressão ou as provas do maltrato infantil. Máxima redução do imaginário do espelho, que consistia em fenômenos psicossomáticos graves — mutismo, sonambulismo — para produzir um imaginário que inclui o afeto (LACAN, 1975-76/2007) e que a extrai de sua posição de objeto. Ela diz: “o lugar de resto e de dejeto foi o gérmen de meu trabalho como analista… afinal de contas, eu estava lá para voltar (à vida) eficiente” (LEFORT, 2013, p. 133, tradução nossa).
Lacan (1975-76/2007) fala de um imaginário que inclui afeto depois de citar a cena de Joyce, na qual é espancado e amarrado com arame farpado. Seu relato dessa cena é desafetado, não sente nada nem guarda nenhum rancor. Então, Lacan dirá que não há uma relação entre o corpo e o inconsciente, é o significante Um sozinho que permite que o corpo e o inconsciente se enodem. É através da escrita/leitura do significante como pura letra fora do sentido que o corpo se mantém enodado. No caso de Joyce, essa função fracassada é suprida pelo ego, uma megalomania de suplência, ser o escritor que dará o que falar aos universitários por trezentos anos. Essa suplência restitui a unidade do corpo. A invenção, o forçamento de uma nova escrita que dá o que falar é bem capturado nessa suplência joyceana.
Voltando à transferência, pensar a intervenção do analista em relação com a leitura do fora do sentido coloca em jogo a transferência mais além do amor e da suposição de saber. Em seu texto “A negativa”, Freud (1925/1976) dá conta da constituição do eu a partir da expulsão. Trata-se, como diz Éric Laurent em “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência” (2018), da expulsão fora do sujeito, o que constitui o real como o que subsiste fora da simbolização. Essa expulsão constitui aos Uns como outros Uns, e daí a possibilidade de amor e ódio e de sentimento, consequências da separação dos outros Uns. “Aquilo que é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idênticos” (FREUD, 1925/1976, p. 141) e se expulsam, diz Freud. Assim pode constituir-se o ego.
Então, o ódio como afeto primário, o horror de que fala Rosine Lefort, não devem fazer o analista recuar. É nesse horror que o Um sozinho fora de todo sentido joga sua partida. Suportar e manejar o ódio de transferência e sua irrupção na cura é a oportunidade para fazer existir uma satisfação mais suportável para o sujeito.
Uma jovem que atendi durante mais de quinze anos de maneira interrompida, logo após um período de evidente progresso na sua vida, realiza uma passagem ao ato inesperada para mim, levando-me a pensar em não continuar a atendê-la pelas consequências que isso tem a nível do ódio familiar dirigido a mim, mas fundamentalmente dirigido a ela. Faço uma supervisão e recebo o seguinte: vai ter a coragem de deixá-la?
Depois de algum tempo, ela me diz: “você vai ter que procurar um discípulo, já está velha, parece cansada”. É verdade, eu me queixava com ela das minhas costas e sustentava um semblante de cansaço e envelhecimento. Isso produz nela uma visível satisfação e amenizou sua mortificação. Essa contingência transferencial permitiu que ela continuasse mais tempo em sua análise e, consequentemente, com sua vida, da qual sempre recebo notícias.