AGNÈS AFLALO
O Antissemitismo Com A Shoah
À tradição francesa do intelectual engajado, em geral, e daquele que se posicionou contra o antissemitismo, em particular, não faltam nomes de prestígio como os de Victor Hugoi e Zolaii, para citar somente os primeiros. Mas isso fora antes da Shoah. Não faltaram intelectuais sérios que tentassem pensar a Shoah. Entretanto, ela permanece ainda impensável. Aspectos da Shoah não se deixam capturar por nenhuma escrita e não cessam, dessa maneira, de secretar seu próprio desconhecimento, seu próprio recalque.
Negacionismo e revisionismo não são resultados de uma minoria isolável, irresponsável e limitada no tempo. O triplo atentado contra os jornalistas do Charlie, os clientes do Hyper Casher e os policiais de Paris e de Montrouge, que precedeu em poucos dias a data de aniversário da descoberta do campo de Auschwitz, indica outra perspectiva: a rejeição inconsciente da Shoah mostra-se constante desde o seu primeiro dia até o momento atual. Tal rejeição apenas assumiu diferentes formas desde a descoberta oficial do genocídio em 1945 até a forma mais comum do antissemitismo que conhecemos hoje na França, na Europa, e alhures.
Sabemos que os países em guerra, ainda que informados acerca da existência dos campos durante a Segunda Guerra, não eram capazes de acreditar naquela realidade. Outro detalhe dá uma ideia da rejeição imediata da qual a Shoah foi alvo: durante a abertura do campo de Auschwitz, no momento de nomear aqueles que haviam sido deportados para aí serem exterminados, o nome dado às vítimas do suplício fora aquele referente à sua nacionalidade e não o nome que indicava seu pertencimento à religião judaica, nome esse que os levara à condenação à morte. Como reconhecer a singularidade da Solução final se ela é mal nomeada?
O nome comum não é suficiente para designar o acontecimento. Somente o nome próprio ocupa um lugar no real inominável. Churchill, que foi uma exceção no que diz respeito às intenções de Hitler, antecipara precocemente um crime sem nomeiii. O nome próprio Shoah não designa somente um crime de massa ou um genocídio. Designa uma criação inédita na história da humanidade: a produção industrial da morte perpetrada pelos homens. Essa aliança entre a técnica e a economia é impensável se não levarmos em conta as raízes inconscientes da pulsão de morte que habita cada ser falante, tomado no discurso dominante. Ora, esse discurso dominante, que é o discurso capitalista, é também o discurso do inconsciente.
Isso significa dizer que o Iluminismo é indissociável dessa tendência à crueldade mais ou menos recalcada ou sublimada. Desde Lacan lê-se Kant com Sade. O detalhe pode parecer insignificante, no entanto possui consequências importantes, como a concentração de milhões de pessoas reduzidas ao estado de mercadorias para que se pudesse delas extrair uma mais-valia exorbitante a fim de colmatar a ruptura que habita cada um. Ora, se a mais-valia se desloca de uma mercadoria a outra, é também inseparável do corpo mercantilizado. Dois conceitos permitem apreender essa lógica: o conceito da mais-valia de Marx e aquele de extimidade formulado por Lacaniv. Além disso, no discurso dominante, a mais-valia é padronizada enquanto que, no inconsciente, cada um sofre, à revelia de sua vontade, de um gozo singular, conhecido também como “mais-de-gozar”. Nessas condições, torna-se impossível reconciliar a oferta do mercado e a demanda inconsciente do sujeito. Qualquer colocação fora do jogo do desejo acentuará, sobretudo, o sentimento de fissura, causador de angústia e de ódio, que pode se deslocar até a cisão e desnudar o vazio no coração do ser com seu cortejo de desesperança e revolta.
O antissemitismo existente nos dias atuais não está apenas fundamentado na única ignorância que a escola da República poderia reparar. Está também fundamentado na recusa de se crer na Shoah. Há pouco, um jovem aluno advindo de bairros considerados “vulneráveis” respondia a seu professor de história que lhe ensinava sobre a Segunda Guerra Mundial: “chega de falarmos de judeus, não foram somente eles os mortos durante a guerra!”. Mais uma vez – e esse exemplo é apenas mais um entre muitos outros da mesma natureza – o nome das nacionalidades dos mortos da Segunda Guerra tende a recalcar o nome da Shoah e, assim, a aprofundar a vala comum do antissemitismo ordinário.
Setenta anos depois, restam poucos sobreviventes e testemunhas do Holocausto. É por isso, sem dúvida, que o antissemitismo ordinário ganhou terreno. Em janeiro de 2014, uma manifestação ocupava as ruas de Paris aos gritos de “fora judeus, morte aos judeus!”. Não escapava, então, a Robert Badinter, que se tratava de uma première desde a Ocupação. Quanto mais a série de assassinatos de judeus se multiplica e se banaliza na França, na Europa e no mundo, mais a concentração do ódio antissemita tende a fazer endossar aos judeus o traje do bode expiatório. Ora, no discurso do inconsciente, não há bode expiatório sem homem providencial.
O Homem Providencial E O Bode Expiatório
O princípio do homem providencial e do bode expiatório, bastante conhecido dos monoteísmos, pode ser reduzido à estrutura lógica do Universal e do particular, formalizada por Aristóteles, e a partir da qual Lacan expôs as bases inconscientes. Essa lógica demonstra que a exceção confirma a regra.
Os três monoteísmos – judeu, católico e muçulmano – possuem aspectos em comum e também diferenças. Detenhamo-nos aqui sobre dois pontos concernentes às suas diferenças: o clero e o proselitismo. A religião judaica não concede espaço a nenhum dos dois. Converter-se ao judaísmo é um percurso do combatente. Dentre os três monoteísmos, o judaísmo é o único que não tem a pretensão universal. Em compensação, os proselitismos cristão e muçulmano são bem conhecidos. A história das guerras religiosas de uma parte do nosso mundo é testemunha disso. E sabe-se que, na França, a estratégia da espada e do aspersóriov conheceu uma contenção importante no momento da Revolução, quando o rei perdeu a cabeça e, ao mesmo tempo, seu direito divino.
A organização dos doutores da Igreja constituindo o clero é, sem dúvida, o segredo da estabilidade do catolicismo há mais de 2.000 anos. Por isso, pode-se argumentar que o islã é mais aberto à instabilidade experimentada pelas diferentes correntes que se afrontam, pela falta de um clero que estabilizaria a ortodoxia dominante. Essa instabilidade se propaga simultaneamente à sua pretensão universal. Algumas correntes religiosas são ainda mais nefastas e decidem priorizar as injunções, ou seja, uma aplicação do Corão ao pé da letra e sem as interpretações dos doutores do clero que as humanizariam. Ou, ao contrário, privilegiam as interpretações do Corão elaboradas há muitas centenas de anos (Hadith) sem interrogá-las nem colocá-las em discussãovi. E essa é a razão pela qual a criação de um islã na França, se fosse criado, poderia aí remediar.
O judaísmo, por sua vez, por não possuir a qualidade do proselitismo, não se inscreve na mesma lógica do universal e do particular. O povo do Antigo Testamento pretende de fato ocupar o lugar do elemento particular, isto é, da exceção que confirma a regra, do universal. Desse ponto de vista, o povo eleito é indissociável de seu outro lado – povo pária e martirizado ao longo dos séculos.
A psicanálise ensina que o apelo ao pai conduz sempre ao pior. A história do século XX o demonstra de maneira suficiente. O ódio é um afeto ordinário e comum, mas divinizar o mal é uma tendência tão velha quanto a humanidade e tanto mais intensa quanto os ideais de democracia são impotentes para tratar o mal-estar econômico e social. A vida em sociedade permite sublimar e assegura assim a estabilidade do laço social. No entanto, durante uma situação excepcional de crise econômica de grande amplitude, o laço social tende a se desfazer, a sublimação enfraquece e a satisfação inebriante do ódio retoma o que expusemos acima.
No último século, a crise econômica que se abateu sobre a Europa e o novo mundo favoreceu a expansão do nazismo e do antissemitismo. A expansão econômica após a Segunda Guerra – conhecida como Les Trente Glorieuses, ou, em tradução literal, “Os trinta gloriosos”, fazendo menção aos trinta anos de desenvolvimento, de 1945 a 1975 – favoreceu a integração de imigrantes, de maneira geral, e de judeus, em particular. Entretanto, a crise econômica que se alastrou na Europa e alhures desde o primeiro choque do petróleo retardou a integração de emigrações tardias. Hoje os grupos criminosos do Estado Islâmico fazem ressoar um ódio levado tão mais adiante que ressuscita o homem providencial sob a categoria do Califa. Sua propaganda faz crer numa justiça divina distributiva e sua política do terror dá corpo ao bode expiatório que a ela não se submete. Os últimos atentados que acabam de ocorrer em Copenhague, na Dinamarca, dão uma ideia da determinação dessa ideologia totalitária propagada via internet por uma gangue de criminosos.
O laço que cada um estabelece com sua parte sombria e colérica faz sintoma. Isso quer dizer que não é possível se libertar sem decifrar o inconsciente do qual se é sujeito. Com efeito, a crença no homem providencial força a uma escolha imposta entre o ódio de si e aquele dirigido ao outro que faz o leito do comunitarismo, sempre religioso. A submissão devastadora por meio da qual alguém se deixa tratar como um objeto de ódio e a revolta contra essa depreciação para quem prefere o ódio do outro são dois impasses.
O ódio não é a única resposta possível. Há a resposta própria à ética de cada um. Há também aquela da psicanálise de orientação lacaniana. Ela pode abrir outra via para quem decide contornar um gozo sem nome. É também possível renunciar às sirenes do homem providencial e a seu corolário de bode expiatório para fazer parte de uma fraternidade de discurso. A intranquilidade é assegurada, mas não sem a alegria de viver.
(1) O assassinato de Alexandre II em 1881 desencadeia violentos massacres de judeus. Pouco depois, em 1882, Victor Hugo publica um manifesto em favor dos judeus perseguidos da Rússia nos jornais parisienses L’Évenement, Le Temps et Le Rappel.
(2) A carta aberta “J’accuse…!” de Zola, escrita durante o Caso Dreyfus, é publicada no jornal L’Aurore em janeiro de 1898.
(3) Em seu discurso à Nação, no dia 24 de agosto de 1941, Winston Churchill lança uma advertência aos nazistas: “Desde as invasões mongóis do século XII, jamais assistimos na Europa a práticas de assassinato metódico e sem piedade em escala semelhante. Estamos na presença de um crime sem nome”.
(4) Devemos a J.-A. Miller o fato da elevação do termo extimidade à categoria de conceito durante seu Curso de Orientação Lacaniana “Extimité”, 1985-86, inédito em francês.
(5) NT. Existe uma expressão em francês (expression familier) que diz « le sabre et le goupillon » e quer dizer justamente « l’armée et l’Église », ou seja, o exército e a Igreja. Aqui Aflalo parece referir-se a essa expressão.
(6) “Eu percebo que o discurso religioso, em todo mundo islâmico, fez com que o Islã perdesse sua humanidade”. Entrevista concedida por Abd el Fath el Sissi, então candidato à presidência do Egito, realizada em 6 de maio de 2014 pela CBC e ON TV, duas redes egípcias de televisão.
Tradução: Maria das Graças Sena
Revisão da tradução: Clarissa Vieira – TEXTECER